terça-feira, 31 de maio de 2011

um pedacinho de manhã

era uma daquelas manhãs em que a névoa decidia fazer-nos companhia e nos acariciava o rosto, deixando um leve véu de humidade que acordava o sono que teimava ainda em seguir-nos até à escola. Os pescoços aninhavam-se, pelos colarinhos, golas ou decotes, encaixando-se nos ombros, procurando manter ainda aquele morno quente dos cobertores mais ou menos ralos, mais ou menos serapilhados ou fofos a que cada um de nós tinha direito. Um, de vez em quando, abanar e reaconchegar de cabeça, revelava o pequeno incómodo de umas "gotas" de névoa terem penetrado para aquele refúgio quente e provocado o arrepio despertador de um suspiro do "lá tem que ser". E estava frio, e as bochechas e os narizes revelavam um colorido que decididamente contaminava o cinzento da manhã, apesar dos passos sonolentos de pés atamancados. Aqui e ali evolavam bafos quentes a substituir aquecedores, inexistentes, e a dar movimento a uns dedos que não estavam preparados para pegar na lousa e no giz, que a sacola de serapilheira protegia. Aqui e ali, esfregavam-se os joelhos, gelados, que a calçoneta não tapava. E, estava frio, e a humidade teimava naquelas carícias de um misto prazer desprazer, tornando ainda mais untuosos, mas também mais frescos,os cabelos que se lavavam pouco em casa. E os ombros mais encolhidos, para nos guardar o ainda quente da cama e da preguiça.
O pátio era pelado, de uma cor de terra amarela esmaecida, rodeado de parreiras altas que no verão albergavam uns bons cachos a que se desejava deitar a mão. A neblina escorregava por ali, quase escondendo a escada que levava à escola, uma sala pequena, com duas fiadas de carteiras e a secretária da professora, emoldurada pelo quadro preto e os mapas de Portugal e das colónias. Mais acima os retratos dos "presidentes" eram só presenças, menos presentes que o crucifixo que os encimava.
E, estava frio. Os tamancos iam soando pelo bater de aquecer os pés, que continuavam frios, e os corpos encostando na escada e na parede esperando a professora para o primeiro dia de escola.

sábado, 28 de maio de 2011

a avó, a menina e o peru

Nem era hábito comer peru, mas naquele ano a minha avó tinha-os criado, e ia ser o nosso almoço de Natal, um peru.
A meio da tarde preparou-se o alguidar grande de latão, e quase ao lado um mais pequeno onde a minha avó tinha já colocado uma boa dose de vinagre. A banqueta estava preparada, mais ao menos entre os dois recipientes, e atrás ardia um fogo de vime intenso que aquecia quase de repente a grande cozinha e puxava um bom lume aos cavacos que haviam de fazer ferver a água do caldeirão.
- Oh Maria Eufêmia, chamou a minha avó a mulher que há uns meses a ajudava, vá-me a pegar o garrafão da aguardente e um copo dos pequenos, e não se esqueça da funila.
- Sim Dona, respondeu a Eufêmia, tragola já.
- Então vá, avie-se que eu vou a buscar o peru. Ouviste Maria Adelaide, não te ponhas a mexer em nada! Até estremeci, que a minha avó era de poucas falas, por vezes parecia que nem existíamos. Mas na minha cabeça ruminava uma grande inquietação. Só me lembrava do frango que tinha corrido sem cabeça por toda a cozinha, por eu ter assustado a empregada com os meus gritos de pena.
Eis que chega a minha avó a arfar, o peru, enorme, bem agarrado pelas asas, com um farrapo enfiado na cabeça. Como a minha avó era bem pequenina, o peru quase lhe chegava ao pescoço, e era estranho aquele desafio de forças, as penas pretas e as vestes pretas, uns meio grunhidos e uns "glu-glus" pouco nítidos, que a minha avó com a outra mão bem que lhe apertava o gargalo.
- Oh Maria Eufêmia, então a aguardente ainda se está a fazer? Avie-se mulher que já aqui está a pirua, dizia a minha avó num grito meio guinchado, e logo se calou dirigindo-se para o banco com o peru a estrebuchar de tal maneira que pensei que ela ia parar ao chão antes de se sentar.
- Estou a ir Dona, lá se ouviu a Eufêmia num sonoro grito desnecessário porque acabava mesmo de passar a porta da cozinha.
- Vá pouse aqui tudo e agarre-me o peru, ordenou a minha avó passando para a Eufêmia aquela tarefa meio louca e começou a encher o copo com aguardente enquanto falava entre dentes para ela própria. Sentou-se naquele banco baixinho e enquanto a Eufêmia, com uma mão, agarrava as asas do peru e o entalava com as pernas, com a outra mão ajeitava a base daquele pescoço enorme e vermelho onde se destacava o pendente, para que a minha avó quase docemente lhe forçasse a abertura do bico, entre o indicador e o polegar, e pela goela foi-lhe vertendo a aguardente até o pequeno copo esvaziar.
Estava tão espantada que me atrevi a perguntar; porquê? E era mesmo, era mesmo para o peru ficar tão, mas tão bêbedo, que quando começasse a matança tudo acontecesse com imensa tranquilidade. Dizia a Eufêmia que as piruas não são como as galinhas, a força é tanta e têm o pressentimento, que bicam e estrebucham e fogem, assim quando estão atontados fica tudo mais fácil. E no meio destas explicações e de mais uns copos sorvidos pelo peru, ao qual a minha avó tinha também tirado o fiapo que lhe tapava os olhos, terá a Eufêmia lassado a força que com as mão e as pernas segurava o peru, saltando este, literalmente para o meio da cozinha e entre glu-glus insanos com soluços entrecortados da bebedeira começa a zigazear pela casa em velocidade feroz, batendo nas paredes escorregando pelo chão de madeira à procura da primeira oportunidade de saída.
- Vá a fechar a porta, gritava a minha avó, agarre-o. E a Eufêmia corria esbaforida pelo corredor, com o peru a conseguir fintá-la ainda que com a dificuldade da tonteria vinícola. Eu, a desejar que o pássaro ganhasse, mas sem saber como, que ele era mesmo maior que eu. E o cansaço e o alcóol tomaram conta do bicho que finalmente acabou nas mãos da Eufêmia, que arfava e mostrava uma cara tão ou mais vermelha que o pescoço do peru.- Dê-mo cá, ruminou a minha avó, já com um facalhão na mão, as pernas abertas para aí o apertar. - Segure aí o alguidarzito e apare-me o sangue.
O peru já mal se mexia, nem um glu-glu lhe soava quando a faca fez o corte profundo, que lhe agitou fortemente o corpo e lhe fez entoar uns glu-glus molhados e esmaecidos. Aquele poderoso bicho morria sem sentir a dor, dizia a minha avó, por estar bêbedo, e era assim que tinha que se fazer.
Escaldado na grande tina, depenado com a minha ajuda, passou a ser imaginado como o apetitoso e tostado naco que no dia seguinte ia ser o nosso assado, e só quando no corredor juntei algumas das penas que lhe tinham fugido no insane desatino, me apeteceu ter tido a altura suficiente para ter fechado as portas à Eufêmia e deixá-lo encontrar a oportunidade de escapar.
No dia seguinte achei o peru delicioso.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

os meninos verdes faziam risos

faziam risos, os meninos verdes. A primeira vez que os vi, rebolava na erva macia e orvalhada, de uma manhã de primavera, que desembocava no milheiral que frente à minha porta se estendia como um tapete sem fim.
Primeiro um, depois outro e mais outro até que à minha frente, de cada cana de milho, vi mil sorrisos, tão brancos, com tanto brilho que o verde quase desaparecia. E aí soaram as gargalhadas, tão vivas, tão frescas como o orvalho por onde tinha quase esvoaçado. Espantei-me, de olhos esbugalhados, a mordiscar os meus lábios, e assim fiquei, sentada, esperando por breves segundos as respostas que apenas continuaram com tantos, mas tantos risos, que desatei a rebolar, e a rebolar sobre a erva, e a rir, a rir de paixão.
Há muito tempo que não os vejo, aos meninos verdes, e é certo que já há muito que não rebolo por um prado orvalhado, numa tépida manhã de primavera.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

momento

o corpo arqueou deixando-a submergir na sensação dos dedos, que da nuca ao suave emergir da anca lhe arrancavam leves espasmos, longos, sedutores, inebriantes. As coxas apertaram-se antecipando, quase com gula, o orgasmo, controlando, quase com desprazer, o prolongar eterno desse breve momento. E os dedos percorreram-lhe o púbis eriçando toda a suave penugem que a envolvia. O corpo alongou-se e de novo se arqueou, a nuca parecendo vibrar numa almofada fugidia, e uns gemidos contidos soltaram-se no escuro visível da janela aberta. E amar amou o momento, o amante, a sombra de uma paixão eterna.