terça-feira, 20 de setembro de 2011

soubera eu, de Judas...

...e Judas enforcou-se num ramo de uma figueira....

a quinta exibia a luxuria da fruta de fim de Setembro que obrigava a uma apanha sistemática para não se perderem os sabores e os odores que o calor gordo do início de Outono soprava para dentro do povo. Maçãs, pêras, pêssegos, uvas, figos...marmelos de um ou outro marmeleiro, explodiam por entre a folhagem em cores fortes e cheiros açucarados, aguardando gulosamente poderem soltar-se em madurez absoluta, cheios, túrgidos e sumarentos! Bicados pelos pássaros, os mais doces, e exibindo o veio de saída de algumas lagartas, eram estes que tantas vezes acabavam num suave mastigar de quem os apanhava, ou na cesta que se podia levar até casa, por lhes faltar alguma da beleza para a venda.
Claro que com as uvas a conversa era outra. A vindima era quase um acto de fé, uma labuta dura ainda que suavizada pelo bago que na sombra da parra refrescava a boca seca da jorna de sol a sol.
Naquele dia, a apanha era da avelã. As fiadas de avelaneiras carregadas dos casulos em coroa da avelã, largavam-nos em chuva por sobre os toldos, que no Inverno recolhiam também a azeitona, logo após o forte varejamento feito por alguns dos homens da equipa. Ficavam as mulheres na apanha das que, mais ladinas, tinham caído fora dos toldos e se escondiam por entre uma erva fina e restolhada, já meio seca, que enfeitava o ondulado da terra lavrada. Faltava a esta apanha a frescura do morder da fruta, porque precisa do partir da casca e a semente é quente e oleaginosa mas, também se mordiscava.
E a jorna era de sol a sol. O nascer do sol soprava uma brisa que exigia já um agasalho leve, mas o meio do dia era de calor, quente e seco e obrigava a abrigo sob a copa das avelaneiras e a um breve descanso na altura das buchas e no aguadar da garganta.
Tínhamos uma vantagem, não cumpríamos horários escrupulosos, por isso quase em tom de brincadeira chegávamos quase a meio da jorna da manhã, mas juntávamo-nos depois ao rancho com quase o mesmo fervor que os movia. Gostávamos de ouvir as chacotas e os ditos, alguma má língua e também "estórias" de verosimilidade questionável. E ali era passado o dia, porque o campo tem lá tudo, até o espaço para as aflições.
As aflições não são frequentes na jorna do campo, normalmente aguentam até ao tempo de estar em casa. Naquele dia a aflição não aguentou sequer a corrida que podia ser feita até casa. Meu pai lá me indicou o espaço por trás de uma fiada de videiras. Pareceu-me a mim que havia aí demasiada exposição e fui-me chegando a um espaço mais recatado de olhares, abrigado pela folhagem de uma frondosa figueira que crescera junto à mina. Foi rápido o passar da aflição, mas a pressa impedira a recolha das folhas de couve necessárias que cresciam no pequeno lameiro da quinta. Esse inconveniente foi rapidamente reparado com um suspiro de alívio por estar tão próxima a folhagem grande da figueira. A higiene foi rápida. Era muito mais importante voltar para o ajuntamento de mulheres e homens que apanhavam avelãs. Mas, ao chegar, um ardor violento obrigou a uma dança de pernas e a um lacrimejar cheio de ais a que meu pai procurou dar a resposta, mandando-me de imediato para casa para que minha mãe me ajudasse com o castigo da folha da figueira.
Foi grande a humilhação por ter pensado ser tão esperta! Ninguém na aldeia usa a folha da figueira para fins de higiene, todos o sabem...Judas lá se enforcou por ter traído Cristo e a folha tornou-se acre e azeda e nunca, nunca mais pode servir para qualquer bem humano...soubera eu!
É que nem aprecio figos, mas antes de Cristo era seguro despejar aflições sob a folha da figueira.

sábado, 17 de setembro de 2011

do cheiro da terra ao cheiro da alma: era uma vez um jardineiro

o sol tinha-o tornado escuro, de um castanho terra onde os olhos miúdos, e ainda mais escuros, brilhavam ao falar dos bichos. Estranhamente eram poucas as rugas na pele tisnada. As faces encovadas pela falta de dentes abriam-se num estranho sorriso sempre que as crianças lhe falavam. Tirava logo o boné e procurava compor a alça da jardineira, que com o constante cavar descaía sobre o braço. Então pousava o metal da enxada e com as mãos entrelaçadas sobre o cabo, aguardava as perguntas, por vezes tontas, dos garotos, aproveitando para limpar o suor que lhe escorregava pelas têmporas.
Encontrava sempre um lugar para os bichinhos, mesmo os da peçonha, como os sapos. Todos eram precisos, dizia, e todos têm um cantar próprio.
Aprendemos o cantar da minhoca, do rendilhado que sob a terra escura e húmida tece arejando o solo, sempre que nelas pegava e abrindo-nos a palma da mão, as lá colocava para sentirmos uma leve viscosidade de ruído cocegante. Os bichos de conta já os exibíamos nas mãos, enroscados como pequenas bolas, e ele como por magia, com um pequeno toque com a ponta dos dedos fazia-os desenrolar e deslizar sobre as múltiplas "patas". Mostrou-nos como os rabos das sardaniscas, cresciam depois de cortados e disse-nos que tínhamos era de ter cuidado com os alacraus, muitas vezes escondidos debaixo das pedras. E sorria, aquela boca desdentada onde despontava um incisivo grande e meio podre, falando pouco, ensinando sempre e ouvindo a terra.
Ainda o ouço, no shlap, shlap das galochas com as chuvas do outono, e no criic, criic do arrastar do ancinho sobre a terra revolvida. Na rua, no reservado do jardim, sempre que podia, aquele cheiro da terra acompanhava as nossas aventuras com os bichos que ele tão bem explicava.
O sr. Aurélio, jardineiro, rejubilava de prazer por ter o mesmo nome do menino da casa. Já não era o jardineiro, era o contador das histórias do jardim e entrou na nossa casa de afectos.
Mesmo assim, precisei de cortar um rabo de sardanisca, para me certificar que a magia acontecia.

sábado, 10 de setembro de 2011

1969, 28 de Fevereiro: terramotos e uma pensão

a minha casa era uma pensão e viver numa pensão era estar no lado dos bastidores: permitia conhecer os segredos que os pensionistas ocasionais apenas sonhavam. Havia outros que também lá viviam, mas não com a mesma perpetuidade. A nossa permanência era permanente, de segunda a domingo sem interrupções.
Para além de nós havia então os semi-permanentes que se ausentavam ao fim de semana, os periódicos que ali passavam determinados dias da semana ou do mês, os ocasionais para breves fins de semana ou uma ou duas noites e os de passagem que apenas almoçavam. Eram os clientes!
Extraordinariamente, e sempre aos Domingos, os casamentos preenchiam com a boda toda a sala de refeições da pensão. Nesses dias não havia lugar para os clientes, mas nós tínhamos um canto da cozinha e, ao fim do dia sempre se comiam os restos do bolo de noiva com o seu glacé encimado por múltiplas bolas prateadas e se apanhavam os confetis desleixadamente largados pela sala.
O salão de refeições era em T, abrindo-se em três varandins, no topo mais largo, para a rua. A nossa mesa era no canto direito do ângulo interno do topo mais alto do T, por isso víamos toda a sala, e a mim permitia-me sentir-me uma quase anfitriã, com direito a tomar posse das histórias dos clientes.
A minha refeição favorita, sempre ao almoço por haver mais clientes, era polvo cozido com todos. Serviam-me as ventosas dos tentáculos para saborear contactos com outros convivas, por mostrar as mesmas, coladas na ponta da língua, saracoteando-me ao longo da sala, como artista de um teatro inventado.
A base do T da sala tinha duas janelas sobre a varanda corrida das traseiras da pensão que era sobranceira a um largo quintal com parreiras onde se lavava e estendia a roupa em uso na pensão. Do lado esquerdo a porta larga abria o espaço ao corredor e ficava frente a frente com a porta da cozinha, onde só os residentes tinham acesso.
A cozinha tinha duas residentes permanentes: a dona da pensão, mulher pequena e magra como um pau de virar tripas, que fazia uma gestão completa do processo, nunca estando quieta, cirandando pela sala para melhor acolher os clientes; e a cozinheira, mais velhota, de permanente roupagem escura: de poucas falas era a eficiência do processo, as batatas estavam sempre descascadas na altura e quantidade certas, as saladas lavadas e cortadas os peixes e as carnes prontos para o cocção. Sem pressas, em contraste absoluto com a dona existia para ter tudo pronto. Uma ou outra ocasional ali acorriam em dias de maior agitação para dar uma mão nas louças e no serviço de mesa. Dois cheiros permaneciam na cozinha que se expandiam com maior ou menor acuidade pelo salão: o da sopa e o da cozedura de um arroz que ficava escuro e solto e quase se desfazia na boca...cheirava a casa!
A varanda exterior traseira rodeava todo o edifício da pensão e permitia o acesso aos aposentos privados dos donos. A mim permitia-me navegar nessa sensação de fazer parte da família porque podia partilhar os momentos dos penteados da filha mais velha, que enrolava o longo cabelo numa banana interiormente ripada e cheia de laca e colocava um longo risco preto de eye liner nas pálpebras, bem junto às pestanas, fazendo-me pensar estar junto de uma bela estrela de cinema italiana.
O corredor de onde se salientavam a cozinha e o salão de refeições era encimado por um hall que cortava, em tom de descanso, a comprida escadaria, dois lances para baixo e dois lances para cima desembocando num corredor largo, onde ficavam os quartos de hóspedes e a casa de banho comum. Para a direita era encimado por dois varandins estreitos, abertos sobre a rua, ficando o nosso quarto do lado esquerdo desse corredor. Para a esquerda ficava o maior número de quartos, que no total não passava de oito, e a casa de banho que apenas lembro ser grande.
O nosso quarto era o nosso lar. Na cama grande de casal dormia com a minha mãe que estava em tempo de fim de gravidez, sendo de lá expulsa quando ao fim de semana meu pai nos visitava. Encostado à parede e colado ao guarda fatos, um divã acolhia o meu irmão. Algumas malas pelo chão, um roupeiro cheio davam uma impressão de barraca de feira, onde a roupa, por todo o lado, nos invadia de uma suave langura como se estivéssemos numa permanente alcova em constante mudança. O nosso quarto era quente e cheirava a algodão.
Os outros quartos eram habitações insípidas, mais ou menos marcadas pelos clientes semipermanentes e ocasionais: o advogado; o notário; os caixeiros-viajantes; o estagiário, uma ou outra familia a que inventava o histórico...
Enamorei-me do estagiário, e fiz roupa de bonecas com as amostras de tecidos dos caixeiros-viajantes. Os outros eram uma espécie de tios.
Não sei bem em que altura do ano fomos viver para a pensão, sei que era Inverno e sei que em Fevereiro desse ano já éramos "os residentes", quase família. O Carnaval já tinha sido ou ia ser e a epidemia era de papeira...O meu irmão estava com papeira que eu lhe tinha passado, na fase de um inchaço ainda forte e ainda ligeiramente febril e eu já na verdadeira convalescença.
Não me lembro de estar frio, foi como se o clima se tivesse apagado nessa noite e nesse dia. Dormíamos quando de repente fui acordada por minha mãe. O candeeiro aceso e uma fosca luminosidade amarela fizeram-me ver o balancear do espelho do guarda fatos que parecia fugir e quase cair da parede sobre nós. Minha mãe procurava ansiosa acordar meu irmão que ferrado no sono de ligeira febre se recusava a abrir os olhos.
- Mãmã, o guarda fatos está a mexer - comentei sem medo e sem perceber.
- Filha sai da cama, veste o teu roupão temos que ir para a rua, dizia minha mãe e continuava a abanar o meu irmão e a chamá-lo, conseguindo finalmente acordá~lo e levantá~lo quase no mesmo instante em que parámos de abanar.
- Depressa, vamos, disse minha mãe enrolando-nos nos cobertores e enxotando-nos porta fora aos encontrões de sono, sem sapatos.
No corredor a agitação era grande, os hóspedes tinham quase todos saído dos quartos e, esparvoados agitavam-se à volta da pergunta - O que foi isto? e pareciam não saber o que fazer.
-Temos que descer, sair da pensão, dizia minha mãe. E todos se foram aproximando do topo da escadaria.
-Mas falta o notário, comentou um hóspede, será que lhe aconteceu alguma coisa?
- Vou lá ver, disse o estagiário, que correu para bater à porta do quarto do notário.
Nessa corrida e nesse bater agitaram-se as paredes, falhou a luz e um crassh sibilou no edifício. Alguns gritos, sumidos. Minha mãe agarrou-nos numa braçada e segurando-se ao corrimão da escadaria, disse - Temos que descer...
O abalo parou, foi curto e a luz pareceu voltar de forma intermitente.
O estagiário aproximou-se do grupo e disse:
- O notário está-se a calçar, diz para irmos andando que está bem.
A parede oposta à escada estalou, a brecha era tão estranha quanto o comentário do notário mas, sem mais delongas o grupo iniciou a descida das escadas, agarrado ao corrimão.
No meio da viagem novo abalo, longo, agarrei-me ao balaústre do corrimão, sentindo minha mãe bem atrás de mim a segurar fortemente o meu irmão. Aí aconteceu a escuridão. Sem luz, nem um grito, nem um som, só um forte tom cavo do fundo da terra, e a ofegância de múltiplas respirações.
Parou. Do cimo da escadaria o notário disse, abrindo a grata luz de uma lanterna: - agora para baixo todos, depressa.
Assim fizémos. O hall de baixo reencontrou-nos com a família da pensão e com o cheiro da sopa e do arroz solto, estávamos em casa!
Estava tudo vivo e inteiro, estava tudo de pijama com roupões e cobertores, menos o notário, sobriamente vestido de fato, gravata e sapatos, com lanterna. O dono da pensão com um candeeiro de caça mostrou alguns sorrisos em lábios trémulos e guiou-nos para a rua, para fora do edifício, onde as gentes da vila se aglomeravam e se procuravam para descansar os medos.
Estávamos descalços, de cobertores enrolados, sem frio e a tiritar de emoção. O tempo tinha parado. Os cães e as galinhas acompanharam-nos com latidos e grasnidos aliviados. Comentaram-se os abalos, os pratos que se partiram, os relógios que pararam, as cadeiras que deslizaram, os uivos que uivaram e o silêncio do ribombar do terramoto.
E os risos gargalhados, nervosos e incrédulos por o notário ter aparecido completamente vestido e, bem vestido, soaram estranhos nos medos despejados a eito pela noite fora.
No dia seguinte não houve escola. As carteiras tinham deslizado e os armários tombado e eu apreciei o terramoto.
Era 28 de Fevereiro de 1969. O meu irmão nasceu a 6 de Março, com trissomia 21, outro terramoto.
Sobrevivemos todos, felizes e mais fortes, aos terramotos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Berenice, guardadora de fogo

Da lareira saltitavam labaredas brincalhonas que preenchiam as paredes de uma coloração quente, como se o sol ali tivesse deixado os seus vermelhos dourados de fim de dia. De vez em quando uma agitação mais vigorosa, precedida de um vento quase brando, levantava um lume intenso, logo morno de seguida, que acordava a sombra de Berenice e lampejava um sacudir intenso de pestanas.

- Será que acorda? Perguntavam-se as saltitantes labaredas, dançando mais alguns passos entre as lajes vigorosas da lareira, será que acorda? E numa doce audácia crepitavam em gélidas pontas azuladas que lambiam os dedos soltos de Berenice, buscando o cuidado que tinha em as proteger.

Berenice era guardadora de fogo. Comprometera-se, ainda ladina, em nunca deixar esmorecer o lume sagrado. A verdade é que lhe saltara para o regaço, numa noite fria, uma pequena labareda que lhe acariciara a face e lhe aquecera a alma, numa noite em que procurava apenas um abrigo quente. E, o fogo sussurrara-lhe de mansinho: Berenice, estamos a deixar o mundo, não há quem nos cuide, não há quem nos ame… Berenice acariciara então a pequena labareda e prometera ser uma eterna cuidadora do calor do mundo.