terça-feira, 24 de abril de 2012

...e decidiu existir!

fragmentou-se. no vazio explodiu em pontos de luz. deu conta que era o universo, sem o saber por infinito. esqueceu-se da existência, por eterna.
cruzou as pernas longas e nuas, recostou-se na cadeira da esplanada. bebeu o tango, fresco e vivo. lambeu a breve espuma que lhe delineou os lábios.
o sol bailou-lhe no castanho avelã do olhar. tinha gostado daquele fragmento e decidiu existir.
atravessou o areal e deixou os pés desenhados na areia molhada.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

chocolate mousse ou pé de feijão

apeteceu-lhe a voluptuosidade da mousse. aquela espuma envolvida em chocolate, em tempo morno, que lentamente se espraia no céu da boca e desagua sob a língua, tão doce e tão leve.
apeteceu-lhe a colher de pau, as lambidelas dum lado e doutro, o castanho na ponta do nariz, o rapar guloso do tacho. e a corrida rápida e gargalhada do segredo da doçura.
apeteceu-lhe o tempo do chocolate mousse, tão fantástico quanto o gigante pé de feijão.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

jogar às escondidas, em azul e rosa

o sonho estava escondido dentro do sonho. tinham acordado jogar às escondidas, à vez, de forma a que nunca se encontrassem mas se descobrissem. Um era azul e o outro rosa, por isso os personagens, à vez, ora azulavam ora rosavam quando partiam à procura do outro, sonho. Um dia um sonho encontrou o outro, mesmo atrás de uma montanha encolhida.
Abriu os olhos num repente e piscou-os. De repente não havia rosa, nem azul, eram as cores do mundo, e estava ali mesmo, multidimensional. O sonho doeu-lhe.
 Era preciso voltar ao lugar dele, atrás da montanha.
Os sonhos têm que saber jogar às escondidas, em azul e rosa!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

e não se olharam...(intimidade)

não se olharam e despiram-se, de costas. O olhar em viagem frequente sobre o corpo, dele e dela, no virar do rosto sobre o ombro, desejando-o, desejando-a.
caminharam e encontraram os corpos, nas costas, nas nádegas, nas mãos que em carícias subiram pelas coxas.
e descansaram os rostos no ombro um do outro e arquearam os dorsos deixando os corpos em toque quente e lento e profundo, nas espáduas.
as mãos enlaçaram-se, elevaram os braços e prenderam-nas em afagos, pelos cabelos, pelos rostos que se iam aninhando na cova dos pescoços. Humedeceram os lábios e suspiraram, desde o baixo ventre.
beijou-a naquele sítio onde começa de um lado a linha do pescoço, do outro a linha do ombro e no tremor do corpo ela tocou-lhe os quadris, intensa.
E não se olharam, apenas se imaginaram nos olhares.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

o odor do alecrim

não queria ter a posse de coisa nenhuma.
"as terras médias são desconfortáveis, falta-lhes a multidão que desenha os universos que desejava ser e têm aquele número de pessoas que a tornavam impessoal." (pensava)
Comprou por isso o vagão a que atrelou os machos e seguiu para nascente. Tinha tido tempo para o pintar, ao vagão, de um amarelo forte onde afoitara as palavras da sua demanda: terras estreitas, do lado esquerdo, e megaterras, do lado direito.
Saiu, mesmo antes de poder ter desaparecido no meio da gente. Para trás ficavam as terras médias, agora ia em busca de coisa nenhuma, (como chamava ao universo que desejava ser). Cortou uma penca do alecrim que  despontava do vaso pendurado no tejadilho e colocou-a sobre a orelha, poisou a cabeça sobre o ombro dele e abraçou-o pela cintura enquanto ele sacudia com vigor as rédeas que orientavam os passos dos animais.
No horizonte nascia o Sol, na caravana o odor do alecrim.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Eus

eu sou eu e todas as outras que se querem outras mas tão eu

recopio-me em centenas e milhares, um universo de eus tão iguais e tão diferentes

buracos negros e supernovas, fins  e príncípios finitos pela sua infinitude

por isso não sei se me quero eu se me quero eus, se me quero percebida se me quero mistérios

mas eis-me agora mistérios de mins num eu que se quer em universo!

o luar no teu corpo




banhou-se em luz prateada 
e enluarou o corpo
coberta de pós de lua,
entrou-lhe pela nesga da janela
um pedacinho de luar
cheirava-lhe ao corpo dela
sabia-lhe à boca dela
sentia-lhe a alma bela.
abriu-lhe os linhos da cama
deixou-a invadir-lhe o peito
e derramar-se no leito
.................................................
e ela,  brilho de prata no olhar
no corpo dele foi noite de luar


quinta-feira, 5 de abril de 2012

Ah, pois! não tinham nomes.

não sei porquê, mas não tinham nomes: a minha gata, a minha rola, as minhas granizés! que nem eram minhas...
A gata era vadia, aninhava-se no meu colo e deixava que as minhas mãos lhe percorressem o pelo fofo enquanto arqueava o lombo e ronronava dolentemente. Á conta de uns bifes gamados da despensa pariu lá por casa uma ninhada arisca e não voltou ao meu colo. Era parda, a gata.
As granizés acasalaram na aldeia, andavam à solta no pátio com um bando de pequeninos granizés a saltitar bem alinhados atrás da mãe. Naquela Páscoa mais fria, as raposas filaram-nas. Mais tarde descobri que a fêmea e algumas crias ficaram-se atrás dos molhes de vides onde se esconderam das predadoras.
E a rola morreu de tristeza na gaiola que lá em casa lhe servia de ninho. Ela bem que arrulhava todas as manhãs mas também não tinha nome. E eu não gostava muito da gaiola.
lembro-me bem dos não meus bichos sem nome: o pelo pardo e quentinho da gata; os filhotes das granizés e os esqueletos por trás das vides; a gaiola sem a rola mas com os arrulhos que lá ficaram.
Tinham portanto os mais belos nomes: Gata, Granizé e Rola e foram únicas.
Ah, pois! Já todos os meus bonecos e bonecas tinham nomes, alguns já não lembro.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

bolas de sabão



a película de sabão pintalgava-se de uns azuis translúcidos escorregadios, e deixava-se atravessar pelos raios de sol do meio da manhã, quase ofuscando o olhar vivo de Benedita que colocava os lábios em ponta de sopro para atirar pelo ar rodopiantes bolas de sabão que haviam de se desfazer sobre os seus cabelos em saltitantes flops.
Quatro, duas, três, dez...pequeninas ou um pouco maiores, luziam por todo o páteo e iam saltitando pelo empedrado encharcando-o num brilho húmido por onde Benedita deslizava os pés e soltava gargalhadas vivas nos desequilíbrios da brincadeira.
Agitou com o aro a água ensopada em sabão, pô-lo sobre os lábios, a leve distância, fechou os olhos e soprou, sem pressa.
Abriu os olhos e fez Oh!!!!, com a boca e os olhos. O pátio estava lá longe e ela vogava na bola de sabão.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

São ramos, senhores, são ramos


gosto dos ramos do domingo de ramos. Da oliveira embonecada de alecrim, camélias e papoilas, no esvoaçar dos ramos na descida da calçada da capela. Escuto-me nos cânticos em notas agitadas de alegria no esganiçado tom das catequistas e no entoar do refrão dos crentes e dos meninos e meninas que abrem a procissão.
O Sol abre-se às vestes mais leves, e solta os aromas dos ramos, cada qual mais belo, mais cheiroso, mais colorido. Não se assiste, está-se.
Os cheiros dos ramos inebriam o cortejo, e no fundo da calçada entra-se em Jerusalém, no mistério da salvação. Os ramos agitam-se e refrescam personagens invisíveis e os cheiros navegam em barcas solares: alecrins, camélias e papoilas em mares de flores.
-Hossaaaaaana! Hossaaaana! Cantam os crentes. Os meus sapatos de verniz branco pisam a terra seca do largo da aldeia, que não é Jerusalém.
O meu ramo continua a dar-me sombra, as camélias a ficarem ligeiramente desidratadas, urge chegar ao fresco da igreja. E os crentes apressam o passo e os cânticos ficam mais rápidos.
O incenso cerca os cheiros do campo que invadem o templo, é tempo de benção e aspersão. Os ramos poisam no chão, inclinam-se dóceis e revigoram-se na frescura da água benta, reparando as rugas das flores que os adornam.
No adro trocam-se as bençãos, os galhos com pontas floridas ofertam-se pelos folares.
Eu não tenho padrinhos, visíveis, são personagens invisíveis, como as de Jerusalém, de que sei o nome, mas não conheço as caras. Tenho por isso o poder de trocar bençãos com quem me emociona. É o que faço com os meus pequenos ramos floridos.
Em casa está sempre um enorme caixote que é o folar do meu padrinho. Nas casas da aldeia estão sempre as emoções e ainda que as camélias estejam amarelecidas o alecrim tem vigoroso odor.
No Domingo da Páscoa, depois da paixão, hei-de recolher a minha benção.