terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tango

gingou um passo e ela seguiu-o. Tocou-lhe o ombro e ele avançou, três tempos fortes que ela marcou. (pausa)
galgou-lhe o ombro e a segurou travado o encosto por firme mão....e...temmmpo...temmmpo...sentir o mar no ondular. E...sai! (pausa) Gingou mil passos e ela seguiu-o, sentido o frémito da intenção. galgado o espaço da contenção, na rua o tango se comoveu.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

o passarinho branco

passeou a mão na penugem do pardalito, que tinha acomodado sobre a colcha da cama. subia-lhe e descia-lhe o peito num arfar forte em busca da vida. Benedita sentia-lhe o coração em desenfreada batida, numa corrida sem tempo. Passeou-lhe os dedos sobre as penas, no corpo ainda quente e ajeitou-se estendida ao seu lado. Cantou-lhe uma música secreta, tão secreta que só o coração a sabia entoar. Lailai, lailai lirai, falavam encantos no ar para a asa reparar; lirai, lailai, lailai sopravam notas soltas pelo ar para o pardalito voar. No embalo feneceu, e Benedita entristeceu. Alcançou a caixinha que a mãe lhe tinha dado e o rolo branco de algodão. Fez-lhe uma linda cama com um malmequer ao lado e no quintal o adormeceu.
lailai, lailai, lirai lirai lailailailai, entoou a mágica melodia e agitou os braços como se voasse.
Sindala sentou-se sobre as rosas abriu os braços e acolheu o voo de Benedita no seu colo. Encostou-lhe o rosto ao peito, levantou-lhe o queixo e disse-lhe: "Benedita, vês aquele passarinho branco? escuta como canta!"
-"lirailailailiarailirai" cantou o passarinho branco e soltou-se num voo sem fim.
Benedita desatou numa corrida gargalhada atrás do gato pintado.

domingo, 21 de outubro de 2012

segredo ;)

faz um estranho brilho no olhar ter um segredo que não é segredo. E, ter um segredo destes, sabe a chocolate derretido envolvido num porto vintage.

sem saída

a sala de espera abria-se numa portada larga para um páteo, aparentemente ajardinado. Mas só isso, aparentemente. A luz ali entrada era cinzenta, baça, tornando o espaço, lúgubre, triste e a fervilhar de culpas. Estavam sentadas numa banqueta almofadada encostada à parede, à espera. E enquanto esperavam, os múltiplos olhares de fotos de famílias, a preto e branco, recheadas de rechonchudos bébés, penduradas nas paredes, em todas as paredes da sala, murmuravam segredos e censuras.
Era um Julho quente, e o princípio da tarde estava sufocante.
A sala não era desconhecida, já por lá tinha passado para contratar o serviço, mas contratar podia ser não acontecer. Agora as fotos mordiam-lhe a culpa e o silêncio agigantava-se no diálogo em tom insonoro que trocava com a amiga. Estranhamente, as crianças das fotos não a deixavam sair!
Assim começava a história que Catalia trazia a Balbuína, de Cuzcar. Tinha acabado o tempo da toma do chá de folha de oliveira e Balbuína precisava de cerzir os primeiros retalhos da sua manta.

o intervalo da banda desenhada

abriu a porta e o ar chegou-lhe, quadriculado. Rompeu-lhe o rosto e rasgou-lhe a roupa. Entrou-lhe então um frio fino por cada rasgo. Perdeu-se nas quadriculas do ar do dia, como se fosse ela própria uma banda desenhada. Experimentou os saltos no empedrado, fora da porta, e soou-lhe a quadriculas. Precisava de mudar de página. A banda desenhada estilizara-a, mas doía-lhe no corpo.
Os saltos soavam secos em todos os quadrados da manhã de névoa. É verdade que o procurava mas a banda desenhada atraiçoava a sua busca e, a verdade, é que o queria inteiro.
Por isso saíra do sonho e ousara abrir a porta.  Precisava apenas de aprender a chave dos intervalos da banda desenhada. Ele estava lá, inteiro.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Teimosias :)

escanchou-se no burrico, ajeitando-se na albarda meia solta. agarrou-se-lhe nas crinas, que curtas não lhe garantiam grande segurança. Morria de medo de cair e morria de vergonha de não conseguir montar.
Por algum motivo, os burros não andavam quando Benedita neles se escanchava. teimosamente fincavam os cascos ferrados na pedra da estrada e...nada! Decidiam,umas vezes zurrar e abanar a cabeça e outras baixá-la como se houvera manjedoura cheia de rico manjar.
Por mais que desse aos pés para picar o jerico, este não arredava pata. Às vezes uns puxões nas rédeas dados pelo primo permitiam-lhe curtas viagens nas quais o desequilíbrio do escorregar da albarda no pelo do  "Malhado", só lhe aumentava o pavor. Por isso morria de medo de cair e de vergonha por não conseguir montar.
 É que um burro não era um cavalo, e não havia na aldeia quem fosse incapaz de se transportar de burro...Era ver no dia da feira na vila os burros albardados, com gigas e alforges recheados de hortaliças, ou frutas e cereais e, bem sentadinhas, de lado, lá iam as aldeãs, novas e velhas em calma burricada estrada acima. Portanto, assim pensava Benedita, ninguém aprendia a andar de burro, só ela, e mesmo assim a odisseia parecia não ter fim.
Escanchou-se no burro, e logo se esticou sobre o pescoço, agarrada ao pêlo, que a albarda descaía. Nas mãos prendia as rédeas que mais a prendiam a ela, e fechou os olhos (aquela mania do jumento baixar a cabeça era temível). Apertou os joelhos nas ilhargas do Malhado e estalou a língua: "Anda, Malhado, xôôô"... E nada, fincou-se na terra do caminho e nem um passo.
Rolou-lhe uma lágrima que não conseguia limpar, não fosse cair.
Não caiu, mas também não foi à feira escanchada no burrico!


domingo, 7 de outubro de 2012

a sombra do corpo

quando olhou, a parede branca pintava-se de sombras.
O véu tapava-lhe as formas e disfarçava-se na alvura da parede. Quando olhou, a parede branca pintava-se de sombras. uma das sombras era do véu que ela não conhecia. quando olhou, porque nunca tinha olhado, soltou-se dos véus e desnuda pintou a parede de sombras, sem nela se perder.
a existência tinha passado e ela tinha-se esquecido, de si, na parede branca.
o corpo desenhou-se nas sombras, da parede branca. Com a mão rodou o trinco e a janela abriu-se para o azul. Largou o corpo sombra e apaixonou-se pela sombra do seu corpo. 
Sindala estava pronta para amar a vida!