sexta-feira, 30 de novembro de 2012

o sítio da ternura

decidiu tocar no sítio da ternura, a pontinha do seu nariz e, mal o fez, ficou menina...saia branca plissada, jaqueta azul forte e um chapéu de palha a esconder-lhe a face do sol. Embalou Ângela, a boneca de papelão que lhe tinham dado na escola e que não podia tomar banho. Duvidava. Havia de experimentar sem a mãe  dar conta, mas agora, só agora, encostava Ângela à sua cara e mimava-a com a pontinha do seu nariz.
Benedita decidiu tocar no sítio da ternura, a pontinha do seu nariz e disse - Ai!
caiu-lhe uma grossa lágrima quando Ângela se desfez naquele banho de imersão. Guardou-a então na pontinha do seu nariz....o seu sítio da ternura!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

a novena

a capela ecoava uma avé maria feminina, uma novena de partida, hipnótica pela cadência: a voz átona da guia no desfilar dos mistérios, seguida pela santa maria de um coro de intensa contenção e a glória ao filho e ao espírito santo mesmo antes do 2º mistério.
Quase sem querer a comunidade cristã estava no deserto, envolta no calor seco dos ventos de oriente e continuava a entoar a novena no ocaso, num louvor ao Sol, ao mistério da sua redenção. Entrou-me a avé maria no peito, fumarola alucinante de uma capela, que perdia as paredes e se adensava pelos céus.
 Orei, sem me embrenhar em excesso, não queria embarcar na histeria de mistérios que já não compreendia, mas queria passar às areias do deserto.
O rosário não deixava soar o tom masculino, diluía-se naquele tom esganado e lento de um caminho até à salvação. E os mistérios continuavam dolorosos...
Tinha já muitos invernos em cima, quando entrou e se sentou bem lá à frente, fora do redil de machos, e num anonimato destempo, como uma sombra de som, agrega-se à novena no flanco da voz da guia, dando-lhe um novo alento, mais hipnótico...poderosamente astral.
não orei, passei a oração e o meu passo encontrou a areia do deserto. ao longe, distante no horizonte ouvia-se ainda: 4º mistério e o burburinho de vozes cantantes.

Saí do deserto quando me esqueci de ser crente. Por vezes, muitas vezes, apetece-me lá regressar.
Ali, atrás, era um funeral. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

tinha um vestido de esperas

tinha um vestido de esperas, feito de remendos vários, sinais das estações em  que se perdia.
naquele dia a carruagem deixou-a em Cuzcar. Sentiu-se em casa. a estação estava recheada de recantos de memórias que lhe preenchiam os dedos.
Balbuína espreitou o Sol que se perdia por um beco azul e decidiu que ali era o tempo de se encontrar.
Havia um recanto estranhamente atraente, um eco de uma árvore casa que lhe cantava um breve solo de violoncelo.
encantava-a o cheiro e o som da madeira, um seco adocicado ternamente quente, ternamente áspero. seduzia-a a macieza, quase seda, da madeira que constantemente se acaricia. Então escolheu-o, àquele recanto, para si. Envolveu-se nos seus braços e, num abraço apertado, rodopiou no átrio da estação.
O beco azul ladeado de hortenses lilases convidou-a a seguir o Sol. Espreguiçou o andar pela colina, que lhe fechava o horizonte, num carreiro ondulante. No cimo, já quase na descida do lado de lá, encontrou-a, a árvore casa. Tocou-lhe o tronco, rugoso e firme e disse-lhe o nome - Balbuína - num sussurro. - De Cuzcar, respondeu-lhe a casarvore, agitando as ralas folhas, e abriu-lhe a porta.
tinha um vestido de esperas, feito de remendos vários, sinais das memórias que recolhia.
E por dentro como era macia!

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

doce áspero


apetecia-lhe a aspereza dele, da barba por fazer que lhe tocasse o corpo, lhe acariciasse o dorso e num sussurro quente lhe beijasse a nuca.
apetecia-lhe inundar-se de paixão, sôfrega de mil abraços. queria-o, áspero e rude no seu colo, segurar-lhe o rosto sobre o seu e beijá-lo de doçura.
queria-o doce áspero sobre si, para respirar a vida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A loba do tempo fosco

o silêncio surgiu-lhe aterrador, por tão sonoro. Tornou-se o eco contínuo da desordem. Foi assim quando parou pela primeira vez no silêncio. Desejou então as vozes, mas naquele corredor, entre Tempo e Cuzcar, o silêncio húmido da neblina obrigava-o a ter pensamento. Parou sob um castanheiro e descansou o corpo num pequeno barroco. Permitiu-se percorrer as pautas silenciosas daquele momento.
Os uivos surgiram do fundo do tempo fosco e invadiram Basil. Agitaram-lhe memórias de batidas nas serranias de uma vila escondida.
Só um uivo permanecia. Era de fêmea. Não sabia como o sabia, apenas sabia. A Loba procurava-o.
O silêncio agora fascinava-o.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Ugardila, a águia de Tempo

ugardila lançou-se sobre o vale, rasgou o vento soprado em trinado quente sobre o planalto.
Zi tinha batido as asas e ela sabia que tinha chegado o momento da grande viagem. Cumpria-se o destino das histórias de Tempo: um dia chegaria uma princesa que crescia com as plantas e entendia as vozes dos seres de Tempo.
Ela, Ugardila e grande águia era a sua guardiã. O bico tremeu-lhe a este pensamento. - E se falhasse?-  pensou, - como iria explicar-se a Zi? e aos seres de Tempo?
Engoliu em seco e olhou incisivamente as águas do rio que corria manso no fundo do vale. Precisava molhar o bico, tirar aquela secura da incerteza. Pousou bem perto da linha de água e pata ante pata foi-se deixando refrescar nas águas frias...Com o coração a bater mais de mansinho, foi relembrando os contos de Zi. Foi quando Balbuína de Cuzcar lhe pediu remendos de memórias.

Oasiana

movia-se na rua, ondulava as ancas numa dança moura e sorria.
olhava em sedutor jeito as portadas das janelas e...movia-se.
o vestido leve a esvoaçar desenhando-lhe as coxas, as nádegas, os seios...
o cabelo em trança incerta soprava-lhe umas farripas por sobre os olhos.
afastava-as com as mãos e assim espreguiçava o corpo e desnudava a nuca.
Movia-se na rua e o mundo parava.
exalava cheiro de sal e aguçava as sedes.
Oasiana, se chamava. Oasiana se deitava nas areias quentes dos desertos.
da sede curava....
Olhou-o no cimo da rua, imenso e sedento.
Ondulou as ancas e nele se enlaçou, regato fresco de braços e encostos.
- Oasiana! - disse-lhe.
e por ela penetrou em doce encanto.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

e no gemer de um guizo

o meu amor ciranda, em dança na areia
e eu em-lua-arada desenho-me sombra
pelas tendas brancas de errante feira
e no gemer dum guizo
que o meu amor persegue
gazela corro em fuga
em busca do meu amor
que ele em mim ciranda
que ele em mim demanda