sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

a semente



Era uma vez uma semente redondinha de cor castanha. A semente queria ser semeada, ficar aconchegada nos grãos de terra quente e entrar em amena cavaqueira com as sementes suas vizinhas. agradava-lhe o banho refrescante do fim do dia, hora em que relaxava a pele e podia dar aqueles guinchos loucos de euforia. as outras sementes suas vizinhas também se agitavam, loucas. os grãos de terra começavam um samba que acabava em tango e abriam pequenos espaços em volta da semente. algo crescia, germinava uma pequena vírgula que fazia sorrir a semente. quando as sementes sorriram todas, a terra encheu-se de virgulas. dali nasceria a revolução.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

a travessa cor de prata

a mãe tinha um malote de verga, como um baú e, por isso, cheio de improváveis delírios. a proibição de lá mexer fazia-lhe uma terrível comichão nos dedos curiosos, por isso o dia da limpeza do malote era extraordinário. Naquele dia foram para a saleta rodeada de janelas onde encostavam umas banquetas, como divãs, com almofadas largas. a mãe começou, meticulosa, a separar objectos: o monte dos deita fora, o monte dos ver como fazer e finalmente o dos para voltar a guardar, iam-se organizando sobre a almofada e Benedita podia remirá-los, tocar-lhes e fascinar-se com aquelas coisas belas da mãe.
como era bom experimentar o baton bem vermelho que todos os dias a mãe usava! e abrir a bolsa prateada das moedas que tilintava como uma caixa de música e o pequeno frasquinho de perfume...
"- Mãe! põe mãe para eu cheirar bem!" e a mãe sorria e com o dedo passava-lhe um leve odor por trás das orelhas e ela ficava logo com cheiro de mãe.
Nesse dia, já de lábios carregados em vermelho forte e cheiro de Tabu, descobriu um estranho pente, que  a mãe lhe disse chamar-se travessa e que lhe segurava o encaracolado dos cabelos pretos. Era uma bela travessa cor de prata, com uma flor desenhada. Encostou-se à mãe, de pé sobre o divã, e desatou a passar-lhe a travessa nos cabelos, deixando que se soltassem ondas fortes dos caracóis largos do cabelo da mãe. e a travessa ia e vinha numa lenta dança no cabelo da mãe. de vez em quando Benedita parava, puxava o rosto da mãe para si e dizia: "ainda não estás mesmo linda mãe, vou pentear outra vez." E a mãe pespegava-lhe uma beijoca rechonchuda e doce.
Foi naquele dia também, que a avó, aquela personagem estranha, sempre de preto, lhe deu uma caixa de música já esventrada e fascinante, porque se via o som da música.Tocava uma Avé Maria que ia bem com os caracóis da mãe e com o remendar das roupas da avó.
Foi a caixa de música, o mistério que guardou. a travessa voltou ao malote-baú.
O cheiro do cabelo da mãe solta-se com a Avé Maria de Schubert. Nesses dias os cabelos de Benedita enchem-se de belas e largas ondas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

no labirinto do milho

um dia falei com ela.
foi no dia em que acreditei que o vento de gelo, velado, existia e me queimava o rosto nas manhãs pardas dos invernos da vila. Só se fala com ela quando sabemos que há vento, e a pele se avermelha, nas bochechas e na ponta do nariz, e nos sai um bafo quente que se perde no ar. Ela era estranha, quase não existia, pelo menos nunca lhe vi a bochecha vermelha do frio e isso  era como não existir. Mas estava lá, atrás da parede da Casa Grande, no sítio das perguntas.
Não lhe queria perguntar nada, porque nada se pergunta a quem quase não existe, por isso falei com ela, como se existisse. Gostou de mim, ela. É que eu disse-lhe que até podia existir desde que ficasse com a bochecha e a ponta do nariz vermelha.
Nesse dia não me entrou o frio na alma nem a manhã parda me escondeu no labirinto do milho.
Esqueci-me de lhe perguntar o nome...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

dá-me a mão

dá-me a mão, entrelaça os teus dedos nos meus, e fecha forte os teus dedos com os meus.
abre a mão devagar, escorrega os teus dedos nos meus e deixa que aí nasçam suaves ondas do mar.
dá-me as mãos, prende-mas nas tuas e escorrega os teus dedos sobre a pele dos meus braços.
deixa que os meus dedos, bem devagar, se demorem na palma da tua mão.
dá-me a mão e deixa que o ruído do silêncio se encha do som das tuas mãos.