sábado, 30 de março de 2013

melancolia

envolvo-me com a melancolia, uma profunda ausência de sentir o teu corpo enroscado no meu, assim como se a procissão  do Senhor dos Passos, invadisse a minha alma e o olhar triste da Senhora me levasse ao suspiro último.
a aragem que sopra cresce no tremeluzir das velas. aconchego a minha ao peito e a luz brinca com as sombras do meu rosto. A Senhora segue-me ou eu sigo a Senhora; o andor acompanha-me, Ela vestida de roxo, ardente de dor, eu vestida de melancolia, ardente de paixão (e era ainda menina naquele tremeluzir). Os cânticos entoam-se iguais, tristemente lamuriosos, ardentemente apaixonados. Prepara-se a ressurreição.
envolvo-me com a melancolia, um tempo de desejo incompleto. amanhã quero o teu corpo no meu.

sexta-feira, 29 de março de 2013

sussurro

respiro, resgato, revivo
rapto o que rasgo, retorno
renovo, resigno
rebato o que rogo, rezo
rumo ao recato,
sussurro

respira-me, resgata-me, revive-me...


quinta-feira, 28 de março de 2013

o grilo e a primavera e a cigarra

não sei porque naquele tempo tinham uma gaiola com um grilo, mas  tinham. Todos os anos naquele tempo havia o dia de apanhar grilos. Era antecedido da compra da pequenina gaiola plástica, por norma vermelha e amarela, no dia da feira. No dia da caçada, desandavam em bandos pelos campos e montavam umas pequenas armadilhas com caixas de fósforos e folhas de alface e com paciência esperavam que os grilos caíssem no logro. Os gaiatos mais expeditos apanhavam-nos com as mãos, mas eram poucos os que o conseguiam.
Grilo apanhado, caminhada de regresso a casa. instalava-se então o bicho na gaiola e durante uns dias a gaiola era espaço de romaria quando o grilo cantava, quando o grilo comia, quando o grilo se agitava
Benedita não achava grande piada ao insecto preto, que também ao fim de poucos dias acabava por morrer, nem dava tempo de gostar dele. Um ano o grilo passou com eles todo o tempo do Verão. extraordinariamente não morreu depressa. Cantava todos os dias, parecia feliz em cativeiro, foi até preciso levá-lo na viagem até à aldeia. e foi, na sua gaiola muito compenetrado, no porta chapéus do carro, nem cantou. Benedita gostou dele, era tão resistente aquele grilo, ultrapassou o tempo dos outros grilos todos e cantava todos os dias. E todos os dias comia da alface que Benedita lhe dava através das grades.
Ainda que encantador continuava a ser aquele insecto preto pouco convidativo que de dentro da gaiola lhe sussurrava gri-gris de amor. Era sempre primavera no tempo do grilo cantante...Até morrer! Benedita ficou triste e, pela primeira e última vez fez o enterro do grilo.
Numa certa altura deixaram de ter grilos.Assim como gaiolas.
E a primavera distraiu-se.
Sem tempo  do canto da cigarra  Benedita procura o grilo que atravessa o Verão, a ver se chega a Primavera. é sempre bem vindo, sem gaiola.

terça-feira, 26 de março de 2013

o talo de couve

escorregou pelo talo da couve.
o tempo de Tempo tinha madurado a menina princesa. Zi cuidara que os ventos soprassem zelosos de lhe amaciar a pele e refrescar o rosto. Ugardila trazia-lhe as sementes e as gotas de orvalho que as plantas lhe ofertavam. Lia sorrira, balbuciara, acordara e sentara e começara a abrir as folhas da couve galega. e Tempo estava triste, só a couve protegia Lia do cinzento mundo de fora.
-Oo..lá, balbuciou Lia, e agitou os braços em alegre contentamento. - Olá, disseram-lhe Zi e Ugardila. - É tempo, Lia, de viajar, disse-lhe Zi. - Xim, disse Lia, voá, xim.
Aproximou-se da beira e escorregou pelo talo da couve. Em voo Ugardila acoitou Lia no dorso, e partiram rumo ao centro de Tempo. Zi foi acordar as fadas.
No talo de couve nasceu um pedacinho de sol.

pérola de mim

larguei-me de mim. assim, sem mais nem menos, larguei-me.
 Puff! assim soou quando me larguei de mim e acordei pérola numa concha. soltei-me da concha e puff! acordei donzela envolta num manto. despi-me do manto e escolhi-me a mim de quem me tinha largado. encontro-me largada de mim, pérola e donzela.

domingo, 24 de março de 2013

e foi no barco grande

e foi no barco grande.
À saída do cais a chuva caía, miúda e revolvida nas rajadas curtas dos ventos marinhos. Ao longe, bem fundeado, o navio aguardava sob um céu cinzento a carga que havia de lhe chegar, da ilha.
Entraram no barco pequeno. O malote vermelho e o senhor do bote esperavam-nos. dentro do barco   formava-se um pequeno lago, sob as traves grossas da base.
- a menina ponha os pézinhos aqui, para não se molhar, e a senhora agarre-se bem com as cordas e encoste os meninos a si, que a viagem ainda é comprida e as vagas estão picadas! disse o timoneiro.
o barco arrancou, motor em cadência lenta, a singrar as ondas em jogo de curvas que o mar estava fresquinho. a chuva envolveu-se com os salpicos do mar e fustigou-lhes os rostos e as mãos sob a capa de um resguardo plástico. Benedita escondeu a cara no peito da mãe para afastar o medo e só pensava na sua casa de armários vermelhos...
Chegaram lá, a uma parede preta imensa no meio do mar, o navio. Benedita estremeceu, encostou-se no calor da mãe que lhe dizia "vai minha filha, passa para lá" e, olhando o abanar agitado da beira do bote, bem encostado à escada de ferro daquele muro preto achou que não queria ir.
Um ligeiro toque da mãe e a mão estendida do marinheiro de farda preta e, zááás, ficou com os pés sobre o primeiro degrau, da escada de ferro, o maior deles todos. por baixo, no espaço vazio entre os degraus dançava um mar picado que parecia puxá-la para o abismo.
ao rosto chegavam-lhe os salpicos de chuva e de mar que lhe davam um gosto salgado nos lábios e lhe empapavam os cabelitos curtos. Concentrou-se na saia de pregas e nos sapatos de verniz pretos, deixando que o marinheiro a guiasse pé atrás de pé, até estar segura no convés.
Quando olhou a ilha tinha ficado, presa no fundo do mar, a baloiçar com as vagas em dança com o Infante.
E Benedita foi, o mar picado no intervalo dos seus passos.
Meia terra, meia mar foi, com gosto de sal, no barco grande.

sexta-feira, 22 de março de 2013

síndrome

quando ele chegou ainda não era Primavera
e a primavera que ele era entrou na primavera da rua como um vento frio
e essa primavera que soprou um gelo duro nos corações que o amavam
fez-se doce primavera do sorriso aberto que ele era
e o que ele era,  poesia pura
era
um manso vento por ramos verdes
um ser diferente por tão igual
uma ternura

ele era poesia, magia encantada de peças de teatro
folha verde da floresta antiga, menino de encanto tão breve

meu breve irmão amado, síndrome da mais doce primavera

quinta-feira, 21 de março de 2013

o navio


chegou-se à beira do recorte do retrato, estendeu a mão e os dedos mergulharam no vai vem das ondas. o navio apitou grave e prolongadamente, partia para o continente. a ilha mergulhava na sua própria história esperando as novas na volta do Santa Maria.
Benedita pulou a cerca da fotografia mergulhou os pés na areia da praia e perdeu o olhar no barco grande... o pai sorriu-lhe, o navio apitou de novo, e Benedita decidiu ficar, por ali.

domingo, 17 de março de 2013

tombaram no cetim

sussurrou-lhe atrás da orelha "quero passear os meus lábios sobre os teus".
e passeou, num toque húmido, logo de seguida seco,
um beber de frescura de um oásis no deserto.
e prendeu-lhe os lábios entre os seus, e num aveludado quente
sussurrou-lhe sobre os lábios "quero-te no meu corpo"
e tomou-lhe as coxas sobre os flancos,
prisioneiro dos braços dela, do sopro dela
do arfar dela
sudados de paixão, corpos nus e quentes
tombaram no cetim.

sussurou-lhe atrás da orelha "quero assim a eternidade"
ele murmurou-lhe "sim".

sábado, 16 de março de 2013

quando quiser

queria, quando puder
poder partir,
quando quiser
levar corpo e tudo
e não perder
o que sei de mim

domingo, 10 de março de 2013

o sol azul

um dia o sol nasceu em cor azul e os homens espantados ficaram a olhar para um sol azul no céu azul!
-azxul, avó!? e Lia sorria.
- Sim, princesa, azul, tão azul que o céu ficou cor de prata. Então as cores começaram a mudar e os homens ficaram esquisitos porque já nada era certo. Começaram por ter fome e depois sede porque já não sabiam como era a cor do trigo e a cor da água.
-Aba, avó, vem com a Lia à aba.
- Sim, flor, vamos.
- E depois, avó?
- Pois, depois os homens não sabiam o que fazer, tinham medo de tudo e não sabiam como viver sob um céu azul. precisavam de um aventureiro para experimentar, assim como tu fazes, meu amor, a brincar!
- a Lia gota de brincá, pode ser a Lia vó, pode? - Pode sim, Lia, mas os homens demoraram muito tempo a encontrar o aventureiro, porque se tinham esquecido dos meninos e das meninas e, entre os homens ninguém se quis aventurar. Foi quase no fim do dia de azul que repararam que as crianças pareciam chapinhar no que parecia ser um regato e lambiam nos lábios umas coisas estranhas.
"Elas sabem, as crianças sabem" correu o segredo pelo mundo e os homens voltaram a conhecer o trigo e a água nos sorrisos das crianças. Ah! e o Sol voltou a ser dourado.
- Poquê, avó?
- por ser o teu sorriso, Lia. o Sol é o sorriso dos meninos e das meninas.
Lia, deitou-lhe os braços roliços no pescoço, deu-lhe uma beijoca e desatou em corrida na areia dourada.
O sol pulsou um raio azul, de feliz.

sexta-feira, 8 de março de 2013

as magas

conheci-as já velhas. a curandeira e a bruxa. a doce e a agreste.
"Esmelindra", complicavam-lhe o nome na aldeia, dura e seca. Tinha sido mãe menina, analfabeta, criadora de sete dos doze filhos. Amou, amou tanto que nem sabia deixar-se amar.
Adelaide, a doce e risonha curandeira. escritora de longas cartas à minha mãe, escrita de fim de século, letra de caligrafia desenhada. Amou, amou tanto e sabia deixar-se amar.
Não dei conta delas durante, pelo menos não tanto quanto hoje queria.
Existiam, tinham saberes exóticos e excêntricas formas de vida.
São magas da minha vida, nas histórias que me deixaram.
Deusas de um tempo breve agora eterno.
"Esmelindra" a bruxa, Adelaide a curandeira, deixaram-me poderes mágicos.
a viagem com Lia é numa vassoura. Até à eternidade

deusas

 deusas da terra, deusas do sol
deusas do ventre, deusas da lua
ágeis serpentes de sedução
moiras ardentes na devoção
frágeis meninas de força dura
belas mulheres de esperança crua
deusas de terra, deusas da lua
mater eternas de bens maiores
mulheres de esperança
mulheres de sol
dançai na luta
bailai no amor

um tempo quente

aquece-me como o sol, torna o meu corpo um tempo quente,
aquece-me como a neve, torna o meu corpo um tempo branco
aviva-me a pele. Fá-la roçar-se leve com a tua e abrir um universo.
veste-me de espigas e coroa-me de papoilas, ama-me como à terra
abre-me regos, rega-me de orvalhos...

aquece-me como o sol, torna o meu corpo um tempo quente

quinta-feira, 7 de março de 2013

a peregrinação: é bom ser longe

era longe, mas era bom ser longe. Ser perto perdia o encanto da paciência, perdia a essência da peregrinação.
Em Cuzcar todos os lugares eram longe. Cada partida era antecedida de mil preparos. No mínimo havia uma merenda e sempre um agasalho para a manhã mais fresca ou aconchegos de fim de tarde. no caminho cruzavam-se sempre viajantes e, na estrada até Balbuína, trocavam-se histórias, por vezes em silêncios, na procura da manta das memórias.
Basil descobriu-se na viagem. Ainda não sabia para onde ia, mas começou a seguir os trilhos de outros caminhantes. Reparou que não tinha alforge quando a fome lhe segredou que os viajantes iam merendando.
Sentou-se na berma, sobre um tronco onde tamborilou os dedos. Havia um malmequer a desabrochar na ponta e Basil sentiu-se acompanhado. Contou-lhe a história do caminho que tinha feito e percebeu que era tempo de ter companheiros. Foi quando eles passaram, um grupo de viajantes. trocavam palavras e risos e ali junto ao tronco abrandaram o passo e olharam-no: - Olá companheiro, disse-lhe um sorriso aberto de um rosto de mulher, podemos juntar-nos no seu espaço e repousar o corpo? - Claro, respondeu Basil. Chegou-se ao malmequer e a fome voltou a apertar-lhe o estômago ao ver os nacos da pão e queijo que os viajantes merendavam e receoso perguntou: poderão dar-me um pouco de pão e queijo? A mulher de sorriso no rosto logo lhe deu e perguntou: Não se preparou para a viagem, caro companheiro? - Pensei que era perto, quando entrei em Cuzcar, disse Basil enquanto dentava sôfrego o pão com queijo, mas já percebi que é longe. Já fiz um longo caminho, senhora de sorriso no rosto!
-Sindala, disse-lhe a senhora de sorriso no rosto, sou Sindala. Fez uma breve pausa olhou Basil segurou-lhe na mão e disse-lhe: queres acompanhar-nos na viagem?
Basil sorriu e partiu, com eles. Sabia-lhe bem ser longe, estava em peregrinação.

domingo, 3 de março de 2013

dançaram de paixão

o horizonte corria à sua frente. a noite era escura e a rua alaranjava com o reflexo dos candeeiros no piso molhado. Aconchegou-se, na breve separação do frio e da humidade, no casaco astrakan comprido, herdado da sua mãe.
os saltos batiam no empedrado e corriam a par do horizonte. era uma cidade escura numa noite escura. a chuva parara mas as nuvens teimavam em esconder a lua, e a cidade era escura.
o horizonte tinha-se mexido de novo e deixara uma nesga no céu escuro. escapou-se por ali um riacho de luar.
os passos soaram mais rápidos e o horizonte corria. a rua chegou a uma praça e aí desaguava o riacho de luar. o piso era de prata, luzidio.
do outro lado, do horizonte, soaram outros passos e ele surgiu, casaco escuro solto sobre as ancas, chapéu de aba descida sobre o olhar.
escorregou-lhe o astrakan. o vestido de cetim vermelho humedeceu-lhe a pele. deu passos com o horizonte no riacho de prata enluarado. levantou o braço rodeou-lhe o pescoço e encostou-se-lhe bem no peito. Caminharam  em andamento tenso ao contrário do horizonte.
Dançaram de paixão.
Ainda hoje lá estão, no riacho de prata do luar, na noite da paixão