domingo, 18 de agosto de 2013

Pias, a chegada

a carreira chegou,  pontualmente atrasada. O ronco forte do motor parou com o estertor final da volta da chave na ignição e o veículo abanou como se se fosse partir.
o motorista,  Abílio Passarinho, girou o corpo para os passageiros e passando um lenço amarelado sobre o pescoço suado, arranhou com voz pastosa, de intenso sotaque alentejano:
- "Senhores passageiros estamos chegados a Pias. Quem s`apeia e tem carga venha comigo a levantá-la". Içou o corpo do banco e numa camisa encharcada em suor lá desceu os degraus da camioneta, bufando quase como se arejasse o rosto.
Lúcia esticou as pernas, agarrou o apoio de braço do lugar e puxando o corpo pôs-se em posição de tirar o malote pequeno que colocara na rede sobre os bancos. O vestido branco de saia pregueada que levava, adornado de uns botões grandes, pretos e pérola, colara-se-lhe nas pernas. Soltou-o do corpo e deixou que essa ligeira aragem do movimento do tecido lho refrescasse . Agarrou o chapéu de palhinha, que a mãe lhe tinha arranjado junto dos despojos das filhas dos Manatas. Ficava-lhe bem, e a fita preta que lhe tinha acrescido dava-lhe o ar chique e novo que lhe protegeria o rosto do Sol, no quente Alentejo.
A rádio tocava uma melodia da Maria Clara de que conhecia o refrão, mas o calor seco do meio da tarde e a vontade de esticar as pernas nem à memória lhe trouxeram qualquer vogal. Também se apeavam o senhor padre e o Ernesto da mercearia. Já os conhecia do primeiro ano  que ali passara, "e que ano! Deus meu", pensou Lúcia.
-Então Lucinha - assim lhe chamava o senhor padre - preparada para mais uma etapa? E olhe que agora o calor não deixa muito tempo para a cabeça pensar, verdade não é Ernesto?
- Pois então senhor padre, muitos caldos me arrochou o meu pai à conta do calor...
Lúcia sorriu e retorquiu: - pois senhor padre, o calor convida à sorna, mas eu trago umas ideias, quem sabe não preciso da sua ajuda e os pequenos vão andar mais acordados e...O calor  apertou-lhe o peito, entrava em golfadas pela porta da camioneta e parava ali, denso e rude. Pôs o lenço de mão sobre os lábios para evitar o pó, ainda no ar, que o rodado do veículo levantara e desceu os degraus.
Pias, lá estava, mesmo ali à sua frente, mesmo nos confins da nação, quente e fria. E a vida andava devagarinho.
- Senhora professora Lúcia, disse-lhe Abilio Passarinho que fazia parte dos seus alunos adultos da noite, aqui tem a sua mala. A minha piquena já há-de estar chegando para a ajudar até casa.
- Obrigada Abílio, é muito gentil a sua Amélia.
- Ora, senhora professora, nada de mais e este calor matava a senhora.
Lúcia sentou-se no banco de ferro sob a cobertura da paragem. Estava com o coração acalentado por ter conhecido na viagem tão simpáticas colegas de Beja que logo a convidaram para o fim de semana seguinte. Claro que iria, que em Pias não tinha muito com quem conversar. Brilhou-lhe o olho escuro. Abriu a mala de mão e passou o baton vermelho sobre os lábios. A cor dobrava o calor bravo do horizonte e sexta feira já estava próxima.

noutro lugar (1980)

eu, naquele outro
e a ponta do cigarro ardendo
pensando-me do outro lado
vendo-me, sem me ver
a minha masturbação desgozante
o filtro que me não coa
aquele verde escuro de um céu negro
os outros meus olhos fitando-me
estremecendo-me
o medo da imagem, que eu sou outra
escondida pela cortina de fumo

sábado, 17 de agosto de 2013

a flor distraída

procurou os cachos sob as parras. queria-os de bagos sumarentos e doces, daqueles que se trincam e estalam nos beiços e logo refrescam a boca.
cabia-lhe na palma da mão. era um cacho bem apessoado, quase elegante. desatracou-o da vide, um golpe seco com a navalha, e amparou-o com a mão.
aberto o tapete de plantas verdes por onde passeavam umas cabra-cegas, mergulhou o cacho no fresco frio das águas da mina. e a água dançou ao sabor dos bagos...
Maria mostrava-lhe uma nesga das coxas por entre as folhas desordenadas da hera que enredava o tronco da cerejeira grande. sabia-a recostada na manta a dormitar a languidez, a pele sedosa a aguardar-lhe o toque.
Sorriu. Envolveu o cacho em duas parras e colheu a flor distraída de uma planta que não conhecia o nome. Maria dormia, envolveu-a com o olhar quente e de manso aconchegou-se pertinho dos ombros dela.
-Maria..-sussurrou-lhe- e devagarinho passou-lhe o cacho fresco sobre os lábios.
Partiram de mãos dadas. Maria levava no decote a flor distraída de que Luis não conhecia o nome.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

memória 24

abriu a porta da memória 24.
O azul forte dos vasos da entrada quase lhe magoou o olhar de tão intenso. tocou de leve nas folhas verdes da planta que nunca dava flores e sentiu-as frescas. a passadeira de sisal vermelho debruada a azul estendeu-se pelos degraus e Benedita subiu: um, dois, três, quatro, cinco e ali estava a porta de vidrlhos a separá-la do imenso hall. encostou a testa à pequena vidraça, lá dentro fervia vida. a criada de servir cantava uma moda minhota enquanto esfregava o chão acompanhada por uma pequena imitação de pessoa grande que a par com ela passava a escova no soalho.
era cedo de mais para entrar, não fosse ficar presa na memória 24, e havia muitas outras para reencontrar.
o passadiço devolveu-lhe o som dos passos das brincadeiras que sozinha ali tecera. sentou-se no degrau e encostou ao peito a boneca princesa que costumava enfeitar a cama da mãe. Era a boneca dos dias de brincar sózinha às bonecas porque tinha sempre que voltar a sentar-se no meio da grande cama dos pais. Por isso só saía até ali, à entrada atrás da porta. Nessa altura as folhas verdes das plantas dos vasos azuis cresciam pelas paredes e pelas portas, que nunca abriam, dos salões dos dias diferentes.
Chamava-se Odete a boneca princesa, não era o nome mais apropriado mas era porque era uma boneca crescida e tinha que ter nome de gente grande. Falou com Odete, a ela podia contar-lhe coisas, ficavam com ela, atrás dos seus olhos azuis que fechavam quando a embalava, bem guardadas no sorriso que lhe atirava da colcha de tecido fresco e macio onde se sentava.
O tule da saia comprida de Odete cocegou-lhe o nariz. afastou-o com os dedos e deixou que o raio de sol das cinco horas, das tardes de Inverno, pintasse aquele caminho de partículas  soltas pelo ar e por ali escorregasse o príncipe de Odete.
O pó da memória 24 fê-la espirrar. Fechou a porta e pôs a chave no seu sítio secreto.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

fez-se flor

agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!

---------o postigo batia lento na portada, era o silêncio do tempo quente que o alentava. dir-se -ia que esperava gente. aguardava que o viajante se lhe acercasse, espreitasse e gentilmente levantasse e lingueta do trinco.
o fresco da sombra de dentro puxou-o para o átrio forrado de madeiras claras. o postigo bateu lento. passou-lhe no olhar o eco rubro de um tecido e no rosto a macieza branca da pele. trancou-se o postigo, trancou-o com o corpo na porta.
o postigo bateu lento na portada.o viajante adormeceu os sentidos na manta de trapos sobre o soalho de cheiro a pinho. levantou a lingueta, soltou a sombra fresca na rua e saiu.-------------------------------------

agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

a tempestade

ousava ousar a tempestade. sem ela morria-lhe o corpo, apodrecia-lhe a mente. ousava acontecer-se.  vagueava  nua e, descalça, pisava a terra, a lama. logrou chegar ao sagrado quando o corpo, suado, gemeu de prazer e a névoa a envolveu num lençol aveludado. e adormeceu, assim mesmo, bem dentro da tempestade que ousou.
Cresceu uma folha verde água no ramo solar da casárvore. Balbuína tinha acontecido.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

caminho

envolve-me a emoção de sombras que o sol afaga. a carícia sopra-me a face e os teus dedos percorrem-me o peito. o mar encharca-me a alma e mareja-me o olhar. navego no sopro que os teus lábios desenham no meu ventre, nas vagas que as tuas mãos soltam no meu corpo. o mar alcança-me, belisca-me os pés e faz de mim sereia. Ah! meu amor, meu amado leva-me contigo, caminha comigo. abraça-me na areia, refesca-me a pele e faz de mim amada.  o sol volta amanhã e eu quero caminhar contigo.