sábado, 17 de setembro de 2011

do cheiro da terra ao cheiro da alma: era uma vez um jardineiro

o sol tinha-o tornado escuro, de um castanho terra onde os olhos miúdos, e ainda mais escuros, brilhavam ao falar dos bichos. Estranhamente eram poucas as rugas na pele tisnada. As faces encovadas pela falta de dentes abriam-se num estranho sorriso sempre que as crianças lhe falavam. Tirava logo o boné e procurava compor a alça da jardineira, que com o constante cavar descaía sobre o braço. Então pousava o metal da enxada e com as mãos entrelaçadas sobre o cabo, aguardava as perguntas, por vezes tontas, dos garotos, aproveitando para limpar o suor que lhe escorregava pelas têmporas.
Encontrava sempre um lugar para os bichinhos, mesmo os da peçonha, como os sapos. Todos eram precisos, dizia, e todos têm um cantar próprio.
Aprendemos o cantar da minhoca, do rendilhado que sob a terra escura e húmida tece arejando o solo, sempre que nelas pegava e abrindo-nos a palma da mão, as lá colocava para sentirmos uma leve viscosidade de ruído cocegante. Os bichos de conta já os exibíamos nas mãos, enroscados como pequenas bolas, e ele como por magia, com um pequeno toque com a ponta dos dedos fazia-os desenrolar e deslizar sobre as múltiplas "patas". Mostrou-nos como os rabos das sardaniscas, cresciam depois de cortados e disse-nos que tínhamos era de ter cuidado com os alacraus, muitas vezes escondidos debaixo das pedras. E sorria, aquela boca desdentada onde despontava um incisivo grande e meio podre, falando pouco, ensinando sempre e ouvindo a terra.
Ainda o ouço, no shlap, shlap das galochas com as chuvas do outono, e no criic, criic do arrastar do ancinho sobre a terra revolvida. Na rua, no reservado do jardim, sempre que podia, aquele cheiro da terra acompanhava as nossas aventuras com os bichos que ele tão bem explicava.
O sr. Aurélio, jardineiro, rejubilava de prazer por ter o mesmo nome do menino da casa. Já não era o jardineiro, era o contador das histórias do jardim e entrou na nossa casa de afectos.
Mesmo assim, precisei de cortar um rabo de sardanisca, para me certificar que a magia acontecia.

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