sábado, 29 de dezembro de 2012

mergulharam no sol

correu para o verão. O sol cantava um quente morno que lhe refrescava a pele. Assim era o calor, arrepiantemente refrescante. Ele olhava-a, olho guloso-pasmado, encostado na quebra da página, quase sem respirar, não fosse perder dela, o fogo.
precipitou-se no verão. cada raio de sol a morder-lhe a pele. Assim era a paixão, ardentemente solar. Ele devorava-a, olho de brilho lunar, o sol a morder-lhe desejos, reais.
mergulharam no sol.
Na outra página Basil sorria e acariciava o longo cabelo de Sindala.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

quase quasar

não gostava de quases. gostava que quase fosse imediatamente antes de ser. é verdade que às vezes o quase parecia um amuleto libertador mas era nessas circunstâncias um quase. quase seria entre tempos e momentos...era aquilo que não tinha sido e aquilo que podia ser.
mas gostava de quases, quando quase ela lhe tocava, ou quase o beijava. gostava de quases que acendiam fogos, que abriam trilhos misteriosos na floresta.
gostava de quase a amar, para quase a poder ter.
Basil quase sorriu quando o quasar latejou, mesmo ali à sua frente. talvez ela lá estivesse, quase pronta, quase estrela, quase sua...do outro lado.
Balbuína viu-o chegar e quase o beijou. Em Tempo um raio de sol rasgou a manhã cinzenta.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

na terra quente e húmida

cheiro-te. arfo nos cheiros que procuro no teu corpo.
é terra quente e húmida e nela me envolvo.
ah cheiro-te como se aí estivesse a vida.
respiro-te quando te olho.
olha-me, respira-me.
inala-me

cheiro-te. arfo nos cheiros que procuro no teu corpo
descanso-me nos regos dos teus dedos
ah, por onde me inalaste
respira-me

arfo. por fim ficamos cheiros

domingo, 9 de dezembro de 2012

apetecia-lhe apetecer

apeteciam-lhe pêssegos, daqueles sumarentos, que a cada mordida se entornam pela boca e pelo queixo e, num assomo de delícia, a língua  lambe e os lábios sugam.
apetecia-lhe estar sentada sob aquela árvore que lhe acariciava a pele quando a ponta dos galhos, das folhas se alijava, quase junto ao chão, empurrada por ventos quentes.
apeteciam-lhe carícias mil, húmidas e secas, sobre o rosto, entre as coxas, por todo o ventre, um contínuo roçar de lábios desde os ombros à linha curva das nádegas.
apetecia-lhe desgaranhar o corpo, tirar-lhe a dormência do frio e, romã, arregoar-se em bagos doces e macios.
apetecia-lhe apetecer!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

para sempre

fugimos, eu e tu.
só os corpos, nus
um apego quente
para sempre, para sempre
fugimos, eu e tu,
só os corpos, crus
em paixão ardente
para sempre, para sempre
fugimos, eu e tu,
só os corpos, luz
que o universo sente
para sempre, para sempre

fugimos, eu e tu,
para sempre, eternamente

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

o sítio da ternura

decidiu tocar no sítio da ternura, a pontinha do seu nariz e, mal o fez, ficou menina...saia branca plissada, jaqueta azul forte e um chapéu de palha a esconder-lhe a face do sol. Embalou Ângela, a boneca de papelão que lhe tinham dado na escola e que não podia tomar banho. Duvidava. Havia de experimentar sem a mãe  dar conta, mas agora, só agora, encostava Ângela à sua cara e mimava-a com a pontinha do seu nariz.
Benedita decidiu tocar no sítio da ternura, a pontinha do seu nariz e disse - Ai!
caiu-lhe uma grossa lágrima quando Ângela se desfez naquele banho de imersão. Guardou-a então na pontinha do seu nariz....o seu sítio da ternura!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

a novena

a capela ecoava uma avé maria feminina, uma novena de partida, hipnótica pela cadência: a voz átona da guia no desfilar dos mistérios, seguida pela santa maria de um coro de intensa contenção e a glória ao filho e ao espírito santo mesmo antes do 2º mistério.
Quase sem querer a comunidade cristã estava no deserto, envolta no calor seco dos ventos de oriente e continuava a entoar a novena no ocaso, num louvor ao Sol, ao mistério da sua redenção. Entrou-me a avé maria no peito, fumarola alucinante de uma capela, que perdia as paredes e se adensava pelos céus.
 Orei, sem me embrenhar em excesso, não queria embarcar na histeria de mistérios que já não compreendia, mas queria passar às areias do deserto.
O rosário não deixava soar o tom masculino, diluía-se naquele tom esganado e lento de um caminho até à salvação. E os mistérios continuavam dolorosos...
Tinha já muitos invernos em cima, quando entrou e se sentou bem lá à frente, fora do redil de machos, e num anonimato destempo, como uma sombra de som, agrega-se à novena no flanco da voz da guia, dando-lhe um novo alento, mais hipnótico...poderosamente astral.
não orei, passei a oração e o meu passo encontrou a areia do deserto. ao longe, distante no horizonte ouvia-se ainda: 4º mistério e o burburinho de vozes cantantes.

Saí do deserto quando me esqueci de ser crente. Por vezes, muitas vezes, apetece-me lá regressar.
Ali, atrás, era um funeral. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

tinha um vestido de esperas

tinha um vestido de esperas, feito de remendos vários, sinais das estações em  que se perdia.
naquele dia a carruagem deixou-a em Cuzcar. Sentiu-se em casa. a estação estava recheada de recantos de memórias que lhe preenchiam os dedos.
Balbuína espreitou o Sol que se perdia por um beco azul e decidiu que ali era o tempo de se encontrar.
Havia um recanto estranhamente atraente, um eco de uma árvore casa que lhe cantava um breve solo de violoncelo.
encantava-a o cheiro e o som da madeira, um seco adocicado ternamente quente, ternamente áspero. seduzia-a a macieza, quase seda, da madeira que constantemente se acaricia. Então escolheu-o, àquele recanto, para si. Envolveu-se nos seus braços e, num abraço apertado, rodopiou no átrio da estação.
O beco azul ladeado de hortenses lilases convidou-a a seguir o Sol. Espreguiçou o andar pela colina, que lhe fechava o horizonte, num carreiro ondulante. No cimo, já quase na descida do lado de lá, encontrou-a, a árvore casa. Tocou-lhe o tronco, rugoso e firme e disse-lhe o nome - Balbuína - num sussurro. - De Cuzcar, respondeu-lhe a casarvore, agitando as ralas folhas, e abriu-lhe a porta.
tinha um vestido de esperas, feito de remendos vários, sinais das memórias que recolhia.
E por dentro como era macia!

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

doce áspero


apetecia-lhe a aspereza dele, da barba por fazer que lhe tocasse o corpo, lhe acariciasse o dorso e num sussurro quente lhe beijasse a nuca.
apetecia-lhe inundar-se de paixão, sôfrega de mil abraços. queria-o, áspero e rude no seu colo, segurar-lhe o rosto sobre o seu e beijá-lo de doçura.
queria-o doce áspero sobre si, para respirar a vida.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A loba do tempo fosco

o silêncio surgiu-lhe aterrador, por tão sonoro. Tornou-se o eco contínuo da desordem. Foi assim quando parou pela primeira vez no silêncio. Desejou então as vozes, mas naquele corredor, entre Tempo e Cuzcar, o silêncio húmido da neblina obrigava-o a ter pensamento. Parou sob um castanheiro e descansou o corpo num pequeno barroco. Permitiu-se percorrer as pautas silenciosas daquele momento.
Os uivos surgiram do fundo do tempo fosco e invadiram Basil. Agitaram-lhe memórias de batidas nas serranias de uma vila escondida.
Só um uivo permanecia. Era de fêmea. Não sabia como o sabia, apenas sabia. A Loba procurava-o.
O silêncio agora fascinava-o.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Ugardila, a águia de Tempo

ugardila lançou-se sobre o vale, rasgou o vento soprado em trinado quente sobre o planalto.
Zi tinha batido as asas e ela sabia que tinha chegado o momento da grande viagem. Cumpria-se o destino das histórias de Tempo: um dia chegaria uma princesa que crescia com as plantas e entendia as vozes dos seres de Tempo.
Ela, Ugardila e grande águia era a sua guardiã. O bico tremeu-lhe a este pensamento. - E se falhasse?-  pensou, - como iria explicar-se a Zi? e aos seres de Tempo?
Engoliu em seco e olhou incisivamente as águas do rio que corria manso no fundo do vale. Precisava molhar o bico, tirar aquela secura da incerteza. Pousou bem perto da linha de água e pata ante pata foi-se deixando refrescar nas águas frias...Com o coração a bater mais de mansinho, foi relembrando os contos de Zi. Foi quando Balbuína de Cuzcar lhe pediu remendos de memórias.

Oasiana

movia-se na rua, ondulava as ancas numa dança moura e sorria.
olhava em sedutor jeito as portadas das janelas e...movia-se.
o vestido leve a esvoaçar desenhando-lhe as coxas, as nádegas, os seios...
o cabelo em trança incerta soprava-lhe umas farripas por sobre os olhos.
afastava-as com as mãos e assim espreguiçava o corpo e desnudava a nuca.
Movia-se na rua e o mundo parava.
exalava cheiro de sal e aguçava as sedes.
Oasiana, se chamava. Oasiana se deitava nas areias quentes dos desertos.
da sede curava....
Olhou-o no cimo da rua, imenso e sedento.
Ondulou as ancas e nele se enlaçou, regato fresco de braços e encostos.
- Oasiana! - disse-lhe.
e por ela penetrou em doce encanto.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

e no gemer de um guizo

o meu amor ciranda, em dança na areia
e eu em-lua-arada desenho-me sombra
pelas tendas brancas de errante feira
e no gemer dum guizo
que o meu amor persegue
gazela corro em fuga
em busca do meu amor
que ele em mim ciranda
que ele em mim demanda

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tango

gingou um passo e ela seguiu-o. Tocou-lhe o ombro e ele avançou, três tempos fortes que ela marcou. (pausa)
galgou-lhe o ombro e a segurou travado o encosto por firme mão....e...temmmpo...temmmpo...sentir o mar no ondular. E...sai! (pausa) Gingou mil passos e ela seguiu-o, sentido o frémito da intenção. galgado o espaço da contenção, na rua o tango se comoveu.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

o passarinho branco

passeou a mão na penugem do pardalito, que tinha acomodado sobre a colcha da cama. subia-lhe e descia-lhe o peito num arfar forte em busca da vida. Benedita sentia-lhe o coração em desenfreada batida, numa corrida sem tempo. Passeou-lhe os dedos sobre as penas, no corpo ainda quente e ajeitou-se estendida ao seu lado. Cantou-lhe uma música secreta, tão secreta que só o coração a sabia entoar. Lailai, lailai lirai, falavam encantos no ar para a asa reparar; lirai, lailai, lailai sopravam notas soltas pelo ar para o pardalito voar. No embalo feneceu, e Benedita entristeceu. Alcançou a caixinha que a mãe lhe tinha dado e o rolo branco de algodão. Fez-lhe uma linda cama com um malmequer ao lado e no quintal o adormeceu.
lailai, lailai, lirai lirai lailailailai, entoou a mágica melodia e agitou os braços como se voasse.
Sindala sentou-se sobre as rosas abriu os braços e acolheu o voo de Benedita no seu colo. Encostou-lhe o rosto ao peito, levantou-lhe o queixo e disse-lhe: "Benedita, vês aquele passarinho branco? escuta como canta!"
-"lirailailailiarailirai" cantou o passarinho branco e soltou-se num voo sem fim.
Benedita desatou numa corrida gargalhada atrás do gato pintado.

domingo, 21 de outubro de 2012

segredo ;)

faz um estranho brilho no olhar ter um segredo que não é segredo. E, ter um segredo destes, sabe a chocolate derretido envolvido num porto vintage.

sem saída

a sala de espera abria-se numa portada larga para um páteo, aparentemente ajardinado. Mas só isso, aparentemente. A luz ali entrada era cinzenta, baça, tornando o espaço, lúgubre, triste e a fervilhar de culpas. Estavam sentadas numa banqueta almofadada encostada à parede, à espera. E enquanto esperavam, os múltiplos olhares de fotos de famílias, a preto e branco, recheadas de rechonchudos bébés, penduradas nas paredes, em todas as paredes da sala, murmuravam segredos e censuras.
Era um Julho quente, e o princípio da tarde estava sufocante.
A sala não era desconhecida, já por lá tinha passado para contratar o serviço, mas contratar podia ser não acontecer. Agora as fotos mordiam-lhe a culpa e o silêncio agigantava-se no diálogo em tom insonoro que trocava com a amiga. Estranhamente, as crianças das fotos não a deixavam sair!
Assim começava a história que Catalia trazia a Balbuína, de Cuzcar. Tinha acabado o tempo da toma do chá de folha de oliveira e Balbuína precisava de cerzir os primeiros retalhos da sua manta.

o intervalo da banda desenhada

abriu a porta e o ar chegou-lhe, quadriculado. Rompeu-lhe o rosto e rasgou-lhe a roupa. Entrou-lhe então um frio fino por cada rasgo. Perdeu-se nas quadriculas do ar do dia, como se fosse ela própria uma banda desenhada. Experimentou os saltos no empedrado, fora da porta, e soou-lhe a quadriculas. Precisava de mudar de página. A banda desenhada estilizara-a, mas doía-lhe no corpo.
Os saltos soavam secos em todos os quadrados da manhã de névoa. É verdade que o procurava mas a banda desenhada atraiçoava a sua busca e, a verdade, é que o queria inteiro.
Por isso saíra do sonho e ousara abrir a porta.  Precisava apenas de aprender a chave dos intervalos da banda desenhada. Ele estava lá, inteiro.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Teimosias :)

escanchou-se no burrico, ajeitando-se na albarda meia solta. agarrou-se-lhe nas crinas, que curtas não lhe garantiam grande segurança. Morria de medo de cair e morria de vergonha de não conseguir montar.
Por algum motivo, os burros não andavam quando Benedita neles se escanchava. teimosamente fincavam os cascos ferrados na pedra da estrada e...nada! Decidiam,umas vezes zurrar e abanar a cabeça e outras baixá-la como se houvera manjedoura cheia de rico manjar.
Por mais que desse aos pés para picar o jerico, este não arredava pata. Às vezes uns puxões nas rédeas dados pelo primo permitiam-lhe curtas viagens nas quais o desequilíbrio do escorregar da albarda no pelo do  "Malhado", só lhe aumentava o pavor. Por isso morria de medo de cair e de vergonha por não conseguir montar.
 É que um burro não era um cavalo, e não havia na aldeia quem fosse incapaz de se transportar de burro...Era ver no dia da feira na vila os burros albardados, com gigas e alforges recheados de hortaliças, ou frutas e cereais e, bem sentadinhas, de lado, lá iam as aldeãs, novas e velhas em calma burricada estrada acima. Portanto, assim pensava Benedita, ninguém aprendia a andar de burro, só ela, e mesmo assim a odisseia parecia não ter fim.
Escanchou-se no burro, e logo se esticou sobre o pescoço, agarrada ao pêlo, que a albarda descaía. Nas mãos prendia as rédeas que mais a prendiam a ela, e fechou os olhos (aquela mania do jumento baixar a cabeça era temível). Apertou os joelhos nas ilhargas do Malhado e estalou a língua: "Anda, Malhado, xôôô"... E nada, fincou-se na terra do caminho e nem um passo.
Rolou-lhe uma lágrima que não conseguia limpar, não fosse cair.
Não caiu, mas também não foi à feira escanchada no burrico!


domingo, 7 de outubro de 2012

a sombra do corpo

quando olhou, a parede branca pintava-se de sombras.
O véu tapava-lhe as formas e disfarçava-se na alvura da parede. Quando olhou, a parede branca pintava-se de sombras. uma das sombras era do véu que ela não conhecia. quando olhou, porque nunca tinha olhado, soltou-se dos véus e desnuda pintou a parede de sombras, sem nela se perder.
a existência tinha passado e ela tinha-se esquecido, de si, na parede branca.
o corpo desenhou-se nas sombras, da parede branca. Com a mão rodou o trinco e a janela abriu-se para o azul. Largou o corpo sombra e apaixonou-se pela sombra do seu corpo. 
Sindala estava pronta para amar a vida!

domingo, 30 de setembro de 2012

e na areia amo


ali, onde me deleito, naquele berço de águas verdes
em voluptuosa dança com as ondas do mar
a desejar que o desejo se prolongue

(e a brisa sopra-me carícias de maresia)


renasço, em pele doce de menina
e na areia amo e na água embarco
e na brisa chego ao teu peito largo

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Balbuína de Cuzcar

Balbuína vivia na terra onde todos, mesmo todos os lugares eram sagrados e alguns tornavam-se míticos.
Adorava a coscuvilhice. cerzir ditos e mexericos em belas mantas de retalhos que vendia à soleira da porta. Era sabido que quem se acachava com as suas mantas era feliz. Parece que as mesmas no silêncio das noites ecoavam em murmúrios de histórias que faziam sorrir.
Iam pois, por ali muito, as pessoas tristes e muito tristes e muito muito tristes.
Contavam-lhe histórias, e assim lhe pagavam as mantas. E ela, Balbuína Cigarra, logo fazia novelos de ditos e mexericos para cerzir as sua mantas.
Havia apenas uma condição. as pessoas tristes tinham que saber uma história feliz.
Basil abanou a cabeça, e encolheu os ombros. Não sabia se sabia alguma história feliz, talvez até soubesse, mas que raio! - pensou - agora tinha um pensamento.
A sombra oscilou.
Cuzcar, pensou Basil, é este o caminho até Cuzcar, a terra onde até alguns lugares se tornavam míticos. E sentiu Tempo.
Ugardila aguçou o olhar. Em Tempo as sombras tinham tremido. era o momento de transportar Lia.

domingo, 23 de setembro de 2012

rumo aos sonhos

não era de lugar algum.
Pertencia a lugares onde atracava na memória.
vagueava por cais de cheiros de maresia iluminados por sombras
ecoava passos secos por entre caixas empilhadas em docas enevoadas
e da memória desatracava, rumo aos sonhos
era de todos os lugares


sábado, 22 de setembro de 2012

olha-me, guarda-me

olha-me como se me olhasses pela primeira vez,
guarda-me os brilhos e as cores que eu quero sempre em ti, de mim.
Intemporais.
olha-me com o olhar onde baila uma nascente
guarda-me o corpo húmido e lânguido em ti, de mim.
eterno.
olha-me, guarda-me
e assim me solto em danças dentro de mim...

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

às vezes dói, na saudade!

às vezes a saudade doía-lhe.
É, a saudade quando é saudade parece que tem uma dor, a dor de nunca mais encontrar, de nunca mais tocar, de nunca mais sorrir o olhar. Esta saudade é uma saudade tão grande que não pode existir. Por isso quando a saudade lhe doía, Benedita brincava com um elástico nas mãos. Aí a saudade ia e vinha e Benedita quase que tocava, quase que encontrava...por isso sorria...aquele sorriso que a saudade lhe transpirava no rosto e no olhar.
às vezes, então, a saudade sorria-lhe porque a fazia tocar, porque a fazia encontrar quando lhe doía de saudade a ponta do coração

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

...num segredo de frutos maduros...

no fim do verão está um segredo.
parece-se com o fim do arco-irís e tem o cheiro do sol nas ervas amareladas e secas que povoam as terras.
no fim do verão está um calor quente que humedece a pele e lhe cola a poeira da terra do fim das colheitas.
no fim do verão caem aquelas gotas grossas de chuva que penetram o solo e o soltam em orgasmos de cheiros.
no fim do verão há intensos vermelhos no azul do céu de todos os ocasos que invadem bagos e frutos de sabores astrais.
no fim do verão quero que percorras a minha pele com pincéis de feno, algures deitados na pedra quente de uma eira onde se malhou o trigo
no fim do verão a noite quente inebria-se de estrelas cadentes pedacinhos do universo a semearem-se na terra-mãe
no fim do verão há uma bênção de terna loucura nas colheitas, há cânticos a magas deusas das terras e danças de gratidão
no fim do verão não quero o fim do verão. quero um eterno fim de verão onde me encontro contigo sobre a eira, na ponta do arco íris, e tu me envolves num segredo de frutos maduros antes de viajarmos por entre as estrelas cadentes...
no fim do verão quero-nos, sem fim.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

o primeiro pecado

vestiu-se de Eva, sem roupa. Quis aprender o primeiro...
Na sombra da macieira o doce acre da maçã cingiu-lhe o corpo. Quando ele chegou mordeu-lhe o corpo, sorveu-lhe a seiva. Vestida de Eva enroscou-se-lhe no corpo e desejou-se nele, eterna de sabores. Prendeu-a na garganta, ele, e chamou-se de Adão.
Envolveram-se num eterno abraço. ao lado as parras escondiam bagos que deixaram deslizar pelos corpos em doces sumos.
Deslizaram pela suave colina e deixaram a sombra da macieira.
À luz do Sol deslumbraram-se com o primeiro pecado!
O paraíso aprenderam-no sob a macieira...

sábado, 15 de setembro de 2012

rua acima, rua abaixo

era Verão e a noite era quente, Benedita aguardava a hora de sair, de mão dada, com os pais, rua acima até à praça da vila, onde a gaiatada já estaria a brincar, e no café se olhava um pouco da mágica televisão. Costumava sentar-se, muito bem comportada, nas escadas de dentro da casa. Cotovelos sobre os joelhos, rosto apoiado  nas mãos, balançava o corpo como se cantarolasse uma musiqueta. Mal ouvia os passos dos pais na descida da larga escadaria, punha-se de pé num ápice, olhito a brilhar de satisfação e chegava-se, bem, bem até à porta. Naquele dia não a levaram, porque já era tarde, dizia a mãe, porque tinha que ir descansar, dizia o pai, porque as outras crianças também ficavam em casa, diziam os dois....debulhou-se em lágrimas mas nada, nadica de nada  os demoveu!  Não ir estava fora de questão...era só preciso esperar o momento certo e esgueirar-se à empregada.  Decidiu-se pela janela, para observar o momento mais oportuno de sair de casa. Esbogalhou o olhar!!! Era mesmo ela, a Quiquas...que raiva! e era mais nova ainda que ela! grandes mentirosos os pais a dizer que não havia meninas na rua, que raiva! E logo a Quicas, que nunca saía.
 Bom, agora era mesmo preciso sair e o melhor alibi para não apanhar uma tareia era levar o mano, isso mesmo! Sair de casa obrigou a uma luta cerrada com a empregada. Foi preciso uma biqueirada e uma ameaça de mordidela para conseguir abrir a porta e com o Lelo seguir, rua acima...
Estava aquele lusco-fusco chegado ao lado mais escuro do fim de dia, mas chegava para os deixar subir à Praça sem grande medo das sombras que as luzes dos candeeiros aumentavam nos arbustos e muros atrás das suas luzes. E seguiram mão dada, rua acima. Benedita temia uma sova de chinelo e mais ainda que a agarrassem por uma orelha  e assim a levassem até casa...que humilhação.
Pois até que era verdade, não havia quase gaiatos na rua...O café estava cheio. lá dentro até parecia que estava um mar de dolente cadência e estranhamente quente. Espreitou a janela, rapidamente, para não ser vista. Lá estava a mãe numa mesa a beber café e a ver televisão, do pai nem sinal...talvez no clube.
Lelo estava a ficar maçador, não lhe apetecia estar na rua, e parecia estar já com sono.  Não foi difícil chegar ao salão, mas foi demorado passar a porta sem o pai dar conta e acoitar-se sob a mesa de bilhar. Depois foi mesmo só brincar de escondidas para o pai os descobrir. E foi como ela pensara. Com o Lelo já cansadito o pai lá os deixou ficar nos sofás a ver televisão enquanto terminava a sua bilharada.
Ganho o pai, Benedita aliviou.se da ideia da chinelada da mãe, mas um castigo era bem capaz de acontecer, pensava. Lelo já dormitava no ombro do pai quando entraram no café, A mãe fez aquele olhar que a levou  a encolher a cabeça bem dentro dos ombros, mas depois sorriu e Benedita iluminou-se, saltou-lhe para o colo encharcou-a de beijos e mil desculpas e prometeu mil vezes que nunca mais fazia igual. Na televisão acabava "O Santo", era hora de chegar a casa.
Rua abaixo, no passeio dos canteiros das borboletas, com os candeeiros a bruxulearem, Benedita saltitava, mãos dadas ao pai e à mãe...tinha ganho à Quicas e adorava os pais.
Bom, faltava ainda a queixa da empregada, mas amanhá era outro dia. E Benedita sorria

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"nasceu Tempo"

era uma vez um planeta  ( e como gosto de "era uma vez") que dormia aconchegado . No meio do planeta estava um Sol, muito pequenino, que não sabia que era o Sol.
Um dia, que não se sabe se era dia ou a eternidade, levantou-se um vento, do tamanho dos ventos do deserto do Universo, que decidiu passear-se pelo planeta.
estranhamente o vento sentia-se quente quando passava pelo meio do planeta. mas era tal a sua pressa que nem dava por conta de uma bola de um belo tom amare.lo dourado, às vezes de um vermelho tórrido ou de um fulgido e lacónico rosa.
na sua corrida o vento acariciava o planeta e ia-lhe desenhando vales e planícies, profundezas agrestes e cumes sem fim...a olho nu, da atmosfera, o planeta ia ficando...planeta!
Um dia, que não sabemos se era dia, o Sol quis ser grande, tão grande como o Universo (que ele não sabia o que era) e então ocupou as Eras, que o vento lhe tinha apresentado. Com as Eras o vento ficou permanentemente quente e o Sol aqueceu sem contenção. O planeta acreditou que tinha chegado o dia de ser dia e passeou-se lânguidamente pelo Sol (o tal ponto quente no meio do planeta).
............................................................................................................
Nasceu Tempo, o país de Tempo.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

agora em ontem de Tempo

 abriu a porta e entrou em ontem. Esperou o "dejà vue" mas não o queria, hoje. Não lhe apetecia o arrepio da estranheza, que lhe descia pela coluna, de estar a repetir algo que a memória não lhe queria facultar. Olhou para a nesga da porta aberta onde o agora o esperava...mas também não lhe apetecia!
No agora de ontem havia uma aventura, um estranho caminho de precipitados precipícios, de incertos trilhos e de macieiras azuis,
Basil sabia-se sombra em agora de Tempo. A escada que o transportara à porta estava entrelaçada de rosas. O coração de Basil sorriu e olhou para a primeira macieira de ontem.
Em Tempo, Zi tinha levado das mãos de Lia as estacas das roseiras. O caminho do Sol assim ficava marcado. No jardim primeiro, Zi aconchegou Lia nas suas asas...Pensou em Ugardila, a grande águia, para levar Lia à fonte do sonho. "amanhã, sim, amanhã, ugardila chegará"

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

sussurrar-te de beijos

hoje sussurrei-te de beijos. leves toques de lábios húmidos, tão breves e tão belos quanto o vogar das borboletas nas flores abertas...e logo me deleitei em murmúrios de beijos quando os meus lábios escorregaram pela tua pele, pequenos riachos de águas cristalinas, enquanto os teus dedos me apartavam o cabelo do rosto. subi então no teu corpo, deitei-me nele e deixei que os teus sussurros e murmúrios percorressem todos os contornos da minha pele.
Gosto dos ecos dos sussurros e dos murmúrios...

terça-feira, 21 de agosto de 2012

por entre o reino das gaivotas

a manhã acordou pendurada em gotas de água, salgadas. o cheiro da maresia agarrava-se ao corpo, adivinhava-se um Sol tórrido. O mear da manhã abriu o céu de azul intenso e o mar começou a humedecer o verde das algas. por entre as pedras, lagoas de água quente acolhiam esguios peixes e escondiam polvos frenéticamente procurados pelos veraneantes. as gaivotas sorriam de desdém: infelizes dejectos e iscos de pescadores permitiam-lhes permanecer sobre as ilhas onde reinavam...a comida estava fácil. Malaquias afoitava-se por entre as gentes...Mais à frente na rebentação das ondas Sindala mergulhava. Benedita sentou-se sobre as pernas envolvida pela água cálida. Desenhou sulcos, com os dedos, uma cornucópia de luz. Malaquias,soltou-se do cardume, beijou-lhe os dedos e os sulcos desenhados em sombras sobre o corpo. Sindala correu para o oceano. nas pequenas ilhotas crescia o reino das gaivotas...

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

sombras


                                              imagem albino moura

perdido  em quelhas sem nome
sem mapas, só sons em busca de silêncios
e um nada que não permite sorrisos
e dói......

...ele ri e o meu coração saltita, fugiram as sombras
amanhã talvez já seja um novo dia


sábado, 21 de julho de 2012

sonhos de cebola

Não largava um caderno macilento que sempre a acompanhava quando descalça percorria o areal­ ­ 
  • a saia embaraçava-lhe as pernas e desenhava-lhe as ancas estreitas. quando agitada pelo vento parecia querer levá-la mais além e mais depressa.­ ­
  • continuava em passo certo, sem responder à sofreguidão da saia, a ondear pela beira mar.
    Mais à frente estava já o sombreado da arriba a desabar em múltiplos pedaços pelo areal. Da última vez tinham ficado caídas várias letras: W, H, A, I e também o M . A maré não dera tempo para as chamar, e as letras não adornaram as páginas do seu caderno..... ­
      • e ela, sonhava em ser a paixão daquele amor que nunca mais encontrava­ ­
      • parou de cortar cebola descaiu-lhe a mão na banca, faca pendente nos dedos, e os olhos sumiam-se em água com cheiro a cebola­ ­
      • Na panela a sopa fervia, quase sem água, arriscando cheirar a queimado e ela suspirava ....................................................................................
        olhou para os pés onde batia a ondulação do mar e a letra sentada na barca da cebola ancorou-se-lhe nos tornozelos.
         ­

quinta-feira, 19 de julho de 2012

o homem quadrado 1

Basil puxou a cortina do Sol. tinha trazido o escadote que encostara à árvore muito grande. a mãe tinha~lhe dito, no tempo das colheitas, que era o primeiro castanheiro do souto, por isso estava no topo da terra, mais pertinho do céu. a mãe até lhe tinha dito que por vezes o castanheiro trocava segredos com o sol e as nuvens...
Basil estava zangado com os deuses de Tempo. tinha-se perdido nas serranias do interior, onde as flores são escassas, ainda que belas.
Foi o castanheiro que o avistou enroscado na pedra de Sal e contou-lhe das fadas. Basil rugiu e enxotou os ramos que o tocavam. "Mas que fadas" tinha dito "ninguém me ensinou o caminho"...
lembrara-se do escadote e das sombras. não queria formas.
Puxou a cortina do Sol. Olhou para o solo e gostou da sombra. Agora era Basil, o homem quadrado.
Zi, agitou as asas e um leve tom gélido invadiu Tempo.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

a "emissora"

sempre a achei parecida com uma antena! chamavam-lhe "emissora" e era mais rápida e eficiente que a verdadeira. é que em dias de tempo ruim, não se ouvia nada na rádio, mas "a emissora" nunca perdia as ondas.
era tão direita quanto uma antena podia ser, direita porque nem se lhe notava qualquer sinal de escoliose, mas também nunca se lhe tinham conhecido curvas suculentas. O nariz, adunco,  parecia querer conhecer os mais ínfimos segredos e quando ela se inclinava sobre nós, quase que sorvia para o olhar o que dizíamos.
Guardei-a com um casaco verde, direito, a cair ligeiramente abaixo da anca, sobre uma saia de pregas, escura que lhe escondia a perna um palmo abaixo do joelho. Era grande para a época e usava um sapato raso sem forma.
Não tenho grande ideia de sorrir, mas recordo um ou outro esgar que por qualquer motivo estranho a tornavam simpática, assim como um mastigar subtil do canto da boca, como se a palavra estivesse sempre desejosa de sair.
Não sei se ela se sabia como emissora, mas arvorava bem esse papel de conhecedora da notícia: a pública e a ilícita.
às vezes pintalgava os lábios de um vermelho garrido o que lhe dava um ar particularmente absurdo, como se a notícia fosse já de si ajavardada.
É, todos gostavam da emissora, um canal particular de comunicação pública do que não se ousava dizer ou pensar, uma espécie de consciência permanente dos segredos possíveis.
quando se foi partiu parte do colectivo...ninguém deu conta, mas à comunidade foi-lhe parte da alma.

domingo, 8 de julho de 2012

Tróia num vestido de estrelas

a casa era na areia. tinha uma linha azul em toda a volta e depois era branquinha, como a cal! Ao redor haviam mais casas, não eram muitas, mas eram algumas. quase todas tinham a linha azul, em toda a volta, mas uma ou outra eram como castelos, com jardins de plantas da areia (aquelas que são carnudas e algumas têm picos). Benedita gostava mais das que tinham a linha azul, como a dela. Mal abria a porta e passava o lancil do degrau, escorregava-lhe o pé pela areia dourada, quente e fofa e estava na praia. À noite a areia era fresca e cheirava a pinho e a plantas carnudas. às vezes iam lá os saltimbancos, fazer teatros e palhaçadas. Então as pessoas grandes e as crianças, juntavam-se na clareira de areia do pinhal, toda rodeada de tochas em fogo, e viam o espectáculo! batiam muitas palmas e riam-se muito. Uma vez Benedita ficou muito surpreendida porque o palhaço engoliu uma vela que saiu no rabiosque, acesa!!! Como é que tinha saído acesa é que era surpreendente!
a noite era quente, percorrida pela leve brisa que agitava as agulhas dos pinheiros mansos e os pés metiam-se pela areia, no trajecto até casa, desenhando os corpos sombras alongadas pela praia da luminosidade das tochas da arena.
O marulhar da água embalava as conversas e as brincadeiras, junto às casas, antes das boas noites. O rio que se envolvia no mar estava cheio de estrelas. Benedita foi molhar os pés e tocar nas estrelas. Sindala sorriu-lhe do dorso de uma medusa.
Correram em despique até casa. Benedita disse-lhe que gostava de ter uma roupa de estrelas, ou de pássaros. É que havia uma menina na casa com jardim de plantas de praia, que lhe estragava os bolos de areia. Pumba! dava-lhes com a mão espalmada que até a areia lhe saltava para a boca. Com as estrelas ou os pássaros nos vestidos já podia pôr os bolos nos beirais dos telhados. _ "Humm!, vamos ver" - disse Sindala e saltou para um fio de lua.
A cama estava quentinha e a mãe tinha-lhe lavado a areia dos pés. Sonhou com viagens pelo céu, num lindo vestido.
Acordou com o Sol. Abriu a porta, galgou o lancil e o pé escorregou-lhe na areia quente e fofa. Sobre o verde aguado do mar com mistura de rio, Sindala sorria-lhe com um vestido de estrelas nas mãos.

domingo, 1 de julho de 2012

Zi e lia, sonhos de borboletas

chamava-se Tempo, o país! a borboleta Zi voava no jardim de Tempo, onde existiam todas as flores, conhecidas. a couve abriu as folhas e Lia bocejou, espreguiçou-se nos braços, pestanejou e então acordou.
em ritmado bater de asas, sobre a couve aberta, Zi olhava arregalada aquela misteriosa flor, nunca vista. - Bah! Gluu!!- palrou Lia, e esticou a mão para Zi. A borboleta saltou em voo e pairou com leve bater de asas, olhando com espanto o que nunca vira.
-Bah! Gluu!! repetiu Lia. Zi balanceou a cabeça, sorriu-se nos olhos e suspirou. voou devagarinho até junto do sopro de Lia escapando em ziguezague às mãozitas que queriam agarrar o azul e dourado das asas de Zi.
Lia gargalhou e Zi pousou-lhe na testa.
 "Lia", segredou-lhe, "queres voar comigo"? - Conto-te a história das flores de Tempo!
-Gluu!!, disse Lia, fechou os olhos chuchou no dedo e adormeceu. Zi, então descansou.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ah! pois, sou avó.

ela sorriu, achou-me graça e olhou-me como se olha para uma flor. primeiro atenta, quase como se ali estivesse um novo universo. depois curiosa, mofando um pouco do meu nariz, do olhar esbogalhado e de um riso embasbacado, sorriu nos olhos. Lá bem atrás de um azul profundo começou a conhecer-me, na testa, nos meus olhos  e nos meus lábios, tocou-me com o coração e sorriu...claro que eu tinha-lhe apertado as bochechas e falado em "lianês". Pronto, sorriu e eu derreti-me. Nasci avó!

terça-feira, 12 de junho de 2012

sereia do rio

há um sítio que se chama sonho, que fica do outro lado do rio.
É por isso que andamos sempre nas bordas, do rio, do sonho e da vida.
Sindala contou-me que no rio se encontrava a vida com o sonho, mas para isso tínhamos que ser sereias.
Eu não sabia se queria ser sereia porque se contava que as sereias enfeitiçavam os marinheiros.
Sindala disse-me que nos rios, onde o sonho se encontra com a vida, as sereias só enfeitiçavam as crianças, principalmente as que se sentavam na beira do rio, com uma lágrima a escorregar no rosto. Então murmuravam-lhes uma suave canção e deixavam-nas caminhar no sonho. quando a lágrima secava e se abria o sorriso levavam-nas de novo à beira da vida deixando-lhes os dedos dos pés na água do rio.
Apeteceu-me ser um bocadinho, só um bocadinho, sereia do rio.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

pelo olhar

entra-se pelo olhar.
naquele primeiro lampejo, abre-se o brilho, conhece-se lá dentro, bem na emoção daquele momento.
depois afaga-se, com o olhar, o rosto, o corpo, envolvem-se as mãos e retorna-se, ao olhar. o coração palpita, o sopro solta-se, agitado e humedecem-se os lábios.
a distância é de quatro mesas. as paredes estão vestidas de espelhos que prolongam o espaço e os olhares.
Cheira a  café.  bebericam-se italianas entre fumaças, conversas e jornais. distrai-se o olhar para se sentir o olhar de que o espelho guarda segredo.
Ah! entra-se pelo olhar e o universo acontece.
 Depois? bem, depois, é preciso viajar!


terça-feira, 5 de junho de 2012

papoilas 1


hoje apanhei uma papoila, num ontem de à bocadinho, e enganchei-a no meu cabelo, porque gosto daquele vermelho forte das papoilas no cabelo. E a manhã estava esplendorosa. O Sol bicava o leito do rio e experimentava o balanço da ondulação do mar.  A papoila murchou está poisada na coxia do meu sofá, escarlatamente bela.

Amanhã sento-me apenas entre as papoilas porque hoje foi um dia lindo!

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lia: princesa da couve

não há melhor sítio para uma neta do que uma couve, e eu tinha uma mesmo no meio do quintal...era aquela couve de pé alto e folha de penca, de nome a galega. Ali estava ela, rodeada por uma data de outras muito iguais, mas esta era diferente: arrumava-se nas folhas, muito aconchegada, parecendo quase um botão quando o fresquinho do fim da tarde começava a abraça-la.
Claro que quando a minha neta nasceu eu já sabia que os bébés não nasciam nas couves, mas ainda acreditava em fadas. Sindala tinha-me dito, era eu menina, que as princesas dormiam nas couves.
Naquela madrugada de Primavera, o quintal brilhava em pérolas de orvalho e bem no meio estava lá, aquela couve de pé alto e folha de penca, de nome a galega, surgida do nada.
Devagarinho, separei-lhe as folhas que se abriram num leito verde e fresco. Bem no centro, estava a minha neta muito enroscadinha, numa couve: princesa Lia.
Sindala gargalhou e fugiu num raio de Sol.

domingo, 3 de junho de 2012

viagem


imagino a viagem, é inexplicável


                                                                                Nicoletta Tomas

                                               imagino o inexplicável, é a viagem

(1981) sem palavras

para ti não há palavras, só os gestos, os sons,
o meu corpo todo no movimento lento de te amar e de me dar.
para ti os sons da minha vida, do meu sonho, alegria e dor.
os beijos dos momentos comidos pelo tempo, voando inexpressivos,
no compasso do teu quarto.
eu, tu, com dor física sem ti
eu toda, sem pensamento,
eu gemendo, rindo, gritando a loucura do momento,
não momento
do infinito tempo, não tempo, do nosso orgasmo
em universo, irreal, no real das minhas coxas,
da tua boca devorando-me,de ti dentro de mim,
rindo sarcástica ao ponteiro fiel da pinocada rotina,
quotidiana, semanal da masturbação intelectual, sem gozo..

quarta-feira, 30 de maio de 2012

bruma

é, eu estou dentro de mim, num eu que não é, sendo


                                                                            imagem de Liu Yuanshou

outras vezes estou desalojada de mim, perdida na bruma de mim

segunda-feira, 28 de maio de 2012


o foguetão da aventura, despenhou-se no mar da Imbecilidade.
então o mundo ficou igual e o ser ficou detido à porta da esquadra.
Ele, que ia voar até ao universo.

sábado, 26 de maio de 2012

olhar 1

tenho no olhar o princípio, o infinito de tudo finito de coisa nenhuma

imagem Louis Treserras

e no olhar todos os amores, todos os sabores e todas as cores




quarta-feira, 23 de maio de 2012

viagem (1981)

sentei-me no oceano das palavras
descobri o caminho marítimo para Vénus
Introduzi-me no país Eu
e perdi-me
em risos desmedidos
sem saber para quê
Ah! sim, lembrei-me
porque me sinto feliz
e, porque me sinto feliz
perco-me novamente
sempre fugindo, sempre encontrando.

Ah, que bonita a literatura, o conto, a história,
o que quero dizer encerrado em sinais, símbolos, nada de eu.
Ah, sim, claro que gosto de ser eu
talvez que sem mim eu não fosse!
mas, já viu bem o problema?
a essência de mim, sem mim, que poderia ser?!

o branco universaliza-me..(.flash and flash)saber
tiranizando-me...
gostava de saber inventar palavras,
gostava de saber transformar as palavras em nada.

um dia vi um santo pendurado, na minha frente
gostava de não ter visto o santo.
também há algum tempo eu sonhava com sonhos.
agora desci das nuvens, num cavalo alado
cruzei com tudo o nada
transformei-me em cinzas.
Ah, como sou um grande mago, perdão, um santo,
perdão um louco, perdão um herege,
gosto de ser pessoa, tal como são as pessoas, mas eu.

sinto por vezes o peso do universo.
a flor é o mais lindo cheiro. cheiro a flor.
cheira a merda!
Enfim, que escrevo eu? Coisas!!


amo-te. Até! (1981)

Notas os meus cabelos dançantes
a minha beleza
o meu olhar de amor
o meu sorriso doce

.............................................

um ponto vibrou

só por um dia não vou ficar
 
                 Amo-te. Até!


quarta-feira, 16 de maio de 2012

bolhinhas (1981)

ainda ontem não te sabia
mas hoje encontrei-te
hoje te vivo, hoje te amo.
Sabias que a espuma do mar,
é o amor em bolhinhas?

segunda-feira, 14 de maio de 2012

flash(es) (1981)

se tudo fosse luz
transformava o meu corpo em corrente eléctrica
percorria-te de mil choques ternos
e em FLASHES seria o nosso amor

sábado, 12 de maio de 2012

o fim da rua

havia uma rua sem fim. eu sentava-me bem no principio, que não era principio, só era porque eu estava lá. afinava o olhar até ao fim, aquele ponto misterioso que tem algo do lado de lá, e por isso não tem fim. esticava o braço e puxava o fim da rua para ao pé de mim, para ver, para lá do fim. nunca lhe encontrei o fim, mas sempre o lado de lá. quase que me esquecia de viver do lado de cá!

domingo, 6 de maio de 2012

a minha mãe era uma tolice de mãe!

a minha mãe adorava falar. acho que nunca conheci ninguém que como ela gostasse de dar à língua. adorava a vida, a minha mãe, ver o mundo, senti-lo e cheirá-lo. a minha mãe era uma força, uma alegria e uma aventura. a minha mãe era uma tolice!
Naquele último ano, naquele último natal, já não falava, já não andava, já não via e muitas vezes já não estava. vogava num limbo de imagens raras que lhe abriam sorrisos e lhe soltavam os medos.
a minha mãe adorava a festa, a mesa cheia da família, dos amigos e, naquele natal que já quase  não estava, quis pôr-se bonita e tactear todos os presentes que lhe deram, farfalhando os dedos no papel luzidio dos embrulhos.
escorregaram-lhe umas lágrimas e premente apertou-nos as mãos e beijou-nos os dedos que com ânsia passou pela face, naquele natal!
a minha mãe encostou-se no meu ombro e adormeceu e ainda hoje a trago no meu colo.
A minha mãe era uma tolice de mãe! e ainda hoje tenho saudades do seu colo...

quarta-feira, 2 de maio de 2012

numa nuvem, para Lia

era uma vez, uma nuvem, branca como a alva neve e fofa como o algodão doce. Vogava no mar azul do céu e  brincava de fazer de conta. às vezes parecia um coelho, outras um unicórnio outras ainda um dragão e também os mais mirabolantes narizes de não sei quantas personagens...
um dia encostou-se no beiral da minha janela e lançou-me degraus, de espuma de nuvem. saltei o beiral e corri atrás de um coelho, de olho rosa, e cavalguei no unicórnio de corno dourado.
o dragão ao longe batia as asas e soltava quentes baforadas de fogo, laranja, mesmo ao lado do sol.
sentei-me no rolo mais fofo da nuvem e o unicórnio, que me segredou chamar-se fantasia, encostou-se no meu ombro e pôs-se a desenhar narizes, com o corno. Eu ri-me em soltas gargalhadas que foram desfiando a branca nuvem em suaves traços no mar azul do céu.
o dragão, que me segredou chamar-se força, levou-me manso até à primeira estrela. soprei-lhe breves diamantes, lágrimas cristalinas de dias cheios, escorregas de luz até aos campos. Caí na copa frondosa da árvore gigante do pátio do castelo e esvoaçaram mil pardais. no topo da torre a nuvem sorria-me divertida.
o coelho de olho cor de rosa batia a pata sob a copa. olhou-me de lado, piscou-me o olho e atirou-me o assento do balancé.
abri os olhos e tinha o cabelo cheio de pássaros.

terça-feira, 24 de abril de 2012

...e decidiu existir!

fragmentou-se. no vazio explodiu em pontos de luz. deu conta que era o universo, sem o saber por infinito. esqueceu-se da existência, por eterna.
cruzou as pernas longas e nuas, recostou-se na cadeira da esplanada. bebeu o tango, fresco e vivo. lambeu a breve espuma que lhe delineou os lábios.
o sol bailou-lhe no castanho avelã do olhar. tinha gostado daquele fragmento e decidiu existir.
atravessou o areal e deixou os pés desenhados na areia molhada.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

chocolate mousse ou pé de feijão

apeteceu-lhe a voluptuosidade da mousse. aquela espuma envolvida em chocolate, em tempo morno, que lentamente se espraia no céu da boca e desagua sob a língua, tão doce e tão leve.
apeteceu-lhe a colher de pau, as lambidelas dum lado e doutro, o castanho na ponta do nariz, o rapar guloso do tacho. e a corrida rápida e gargalhada do segredo da doçura.
apeteceu-lhe o tempo do chocolate mousse, tão fantástico quanto o gigante pé de feijão.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

jogar às escondidas, em azul e rosa

o sonho estava escondido dentro do sonho. tinham acordado jogar às escondidas, à vez, de forma a que nunca se encontrassem mas se descobrissem. Um era azul e o outro rosa, por isso os personagens, à vez, ora azulavam ora rosavam quando partiam à procura do outro, sonho. Um dia um sonho encontrou o outro, mesmo atrás de uma montanha encolhida.
Abriu os olhos num repente e piscou-os. De repente não havia rosa, nem azul, eram as cores do mundo, e estava ali mesmo, multidimensional. O sonho doeu-lhe.
 Era preciso voltar ao lugar dele, atrás da montanha.
Os sonhos têm que saber jogar às escondidas, em azul e rosa!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

e não se olharam...(intimidade)

não se olharam e despiram-se, de costas. O olhar em viagem frequente sobre o corpo, dele e dela, no virar do rosto sobre o ombro, desejando-o, desejando-a.
caminharam e encontraram os corpos, nas costas, nas nádegas, nas mãos que em carícias subiram pelas coxas.
e descansaram os rostos no ombro um do outro e arquearam os dorsos deixando os corpos em toque quente e lento e profundo, nas espáduas.
as mãos enlaçaram-se, elevaram os braços e prenderam-nas em afagos, pelos cabelos, pelos rostos que se iam aninhando na cova dos pescoços. Humedeceram os lábios e suspiraram, desde o baixo ventre.
beijou-a naquele sítio onde começa de um lado a linha do pescoço, do outro a linha do ombro e no tremor do corpo ela tocou-lhe os quadris, intensa.
E não se olharam, apenas se imaginaram nos olhares.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

o odor do alecrim

não queria ter a posse de coisa nenhuma.
"as terras médias são desconfortáveis, falta-lhes a multidão que desenha os universos que desejava ser e têm aquele número de pessoas que a tornavam impessoal." (pensava)
Comprou por isso o vagão a que atrelou os machos e seguiu para nascente. Tinha tido tempo para o pintar, ao vagão, de um amarelo forte onde afoitara as palavras da sua demanda: terras estreitas, do lado esquerdo, e megaterras, do lado direito.
Saiu, mesmo antes de poder ter desaparecido no meio da gente. Para trás ficavam as terras médias, agora ia em busca de coisa nenhuma, (como chamava ao universo que desejava ser). Cortou uma penca do alecrim que  despontava do vaso pendurado no tejadilho e colocou-a sobre a orelha, poisou a cabeça sobre o ombro dele e abraçou-o pela cintura enquanto ele sacudia com vigor as rédeas que orientavam os passos dos animais.
No horizonte nascia o Sol, na caravana o odor do alecrim.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Eus

eu sou eu e todas as outras que se querem outras mas tão eu

recopio-me em centenas e milhares, um universo de eus tão iguais e tão diferentes

buracos negros e supernovas, fins  e príncípios finitos pela sua infinitude

por isso não sei se me quero eu se me quero eus, se me quero percebida se me quero mistérios

mas eis-me agora mistérios de mins num eu que se quer em universo!

o luar no teu corpo




banhou-se em luz prateada 
e enluarou o corpo
coberta de pós de lua,
entrou-lhe pela nesga da janela
um pedacinho de luar
cheirava-lhe ao corpo dela
sabia-lhe à boca dela
sentia-lhe a alma bela.
abriu-lhe os linhos da cama
deixou-a invadir-lhe o peito
e derramar-se no leito
.................................................
e ela,  brilho de prata no olhar
no corpo dele foi noite de luar


quinta-feira, 5 de abril de 2012

Ah, pois! não tinham nomes.

não sei porquê, mas não tinham nomes: a minha gata, a minha rola, as minhas granizés! que nem eram minhas...
A gata era vadia, aninhava-se no meu colo e deixava que as minhas mãos lhe percorressem o pelo fofo enquanto arqueava o lombo e ronronava dolentemente. Á conta de uns bifes gamados da despensa pariu lá por casa uma ninhada arisca e não voltou ao meu colo. Era parda, a gata.
As granizés acasalaram na aldeia, andavam à solta no pátio com um bando de pequeninos granizés a saltitar bem alinhados atrás da mãe. Naquela Páscoa mais fria, as raposas filaram-nas. Mais tarde descobri que a fêmea e algumas crias ficaram-se atrás dos molhes de vides onde se esconderam das predadoras.
E a rola morreu de tristeza na gaiola que lá em casa lhe servia de ninho. Ela bem que arrulhava todas as manhãs mas também não tinha nome. E eu não gostava muito da gaiola.
lembro-me bem dos não meus bichos sem nome: o pelo pardo e quentinho da gata; os filhotes das granizés e os esqueletos por trás das vides; a gaiola sem a rola mas com os arrulhos que lá ficaram.
Tinham portanto os mais belos nomes: Gata, Granizé e Rola e foram únicas.
Ah, pois! Já todos os meus bonecos e bonecas tinham nomes, alguns já não lembro.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

bolas de sabão



a película de sabão pintalgava-se de uns azuis translúcidos escorregadios, e deixava-se atravessar pelos raios de sol do meio da manhã, quase ofuscando o olhar vivo de Benedita que colocava os lábios em ponta de sopro para atirar pelo ar rodopiantes bolas de sabão que haviam de se desfazer sobre os seus cabelos em saltitantes flops.
Quatro, duas, três, dez...pequeninas ou um pouco maiores, luziam por todo o páteo e iam saltitando pelo empedrado encharcando-o num brilho húmido por onde Benedita deslizava os pés e soltava gargalhadas vivas nos desequilíbrios da brincadeira.
Agitou com o aro a água ensopada em sabão, pô-lo sobre os lábios, a leve distância, fechou os olhos e soprou, sem pressa.
Abriu os olhos e fez Oh!!!!, com a boca e os olhos. O pátio estava lá longe e ela vogava na bola de sabão.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

São ramos, senhores, são ramos


gosto dos ramos do domingo de ramos. Da oliveira embonecada de alecrim, camélias e papoilas, no esvoaçar dos ramos na descida da calçada da capela. Escuto-me nos cânticos em notas agitadas de alegria no esganiçado tom das catequistas e no entoar do refrão dos crentes e dos meninos e meninas que abrem a procissão.
O Sol abre-se às vestes mais leves, e solta os aromas dos ramos, cada qual mais belo, mais cheiroso, mais colorido. Não se assiste, está-se.
Os cheiros dos ramos inebriam o cortejo, e no fundo da calçada entra-se em Jerusalém, no mistério da salvação. Os ramos agitam-se e refrescam personagens invisíveis e os cheiros navegam em barcas solares: alecrins, camélias e papoilas em mares de flores.
-Hossaaaaaana! Hossaaaana! Cantam os crentes. Os meus sapatos de verniz branco pisam a terra seca do largo da aldeia, que não é Jerusalém.
O meu ramo continua a dar-me sombra, as camélias a ficarem ligeiramente desidratadas, urge chegar ao fresco da igreja. E os crentes apressam o passo e os cânticos ficam mais rápidos.
O incenso cerca os cheiros do campo que invadem o templo, é tempo de benção e aspersão. Os ramos poisam no chão, inclinam-se dóceis e revigoram-se na frescura da água benta, reparando as rugas das flores que os adornam.
No adro trocam-se as bençãos, os galhos com pontas floridas ofertam-se pelos folares.
Eu não tenho padrinhos, visíveis, são personagens invisíveis, como as de Jerusalém, de que sei o nome, mas não conheço as caras. Tenho por isso o poder de trocar bençãos com quem me emociona. É o que faço com os meus pequenos ramos floridos.
Em casa está sempre um enorme caixote que é o folar do meu padrinho. Nas casas da aldeia estão sempre as emoções e ainda que as camélias estejam amarelecidas o alecrim tem vigoroso odor.
No Domingo da Páscoa, depois da paixão, hei-de recolher a minha benção.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Mário e Arlete

chamei-lhe Arlete, à minha primeira boneca. Pequenina, pouco mais que um palmo, inteiriça até ao pescoço, onde encaixava a cabeça, toda em borracha mole, mesmo o encaracolado cabelo pintado num castanho claro que lhe emoldurava o azul pintado dos olhos, gaiatos e estranhamente vivazes. O Mário chegou mais tarde, já eu andava de bibe em azáfamas casadoiras da bonecada. O Mário era um boneco grande de plástico duro e compacto, inteiriço até ao pescoço, como a Arlete,  e com a particularidade de as mãos se poderem separar dos braços. Já a cabeça era de borracha mole, como a da Arlete, e como a dela separava-se para enxugar as entranhas dos banhos frequentes.
A Arlete não chegava, em pé, às mãos do Mário e por mais que eu rodasse e puxasse as mãos do Mário nunca estas se aproximavam da Arlete.
O Mário tinha uns olhos mortiços que me irritavam, quando tanto queria que ele desse a mão à Arlete e sorrisse com os olhos, como ela.  Mas o Mário não dava as mãos à Arlete, não queria dar as mãos à Arlete...
E eu, de cócoras, puxava-o e dizia-lhe: - Mário dá a mão à Arlete, Mário faz o que a menina quer. E ia elevando a voz, entaramelando a voz com as lágrimas de raiva que me sulcavam a face e dando uns puxões na mão do Mário.
Um dia a mão soltou-se, assim num repente, sem mais nem para quê.
O Mário não queria dar a mão à Arlete!!
 Deitei a mão fora para a rua, através do entrançado de ferro da varanda e corri para a minha mãe num choro soluçado e magoado, numa queixa angustiada - Mamã, o Mário já não tem mão, ele não quis dar a mão à Arlete!
Procura sem sucesso, a mão do Mário sumiu-se para sempre, prova de um crime de paixão.
Continuou sem mão, eterno companheiro de Arlete.

sábado, 24 de março de 2012

por heras e Eras

abraçou-o assim, os braços envolvendo-lhe os ombros, acachando-lhe o rosto entre os seios e o ventre, sentindo-lhe o vibrar da respiração, no peito. Os braços dele apertando-a pela cintura, fortes e tensos.
e os braços como heras, fundiram-nos para sempre.
esculpiram dois corações no tronco da cerejeira, engajaram os dedos seguiram para o lado do Sol  e disseram:
- Amo-te!
Por heras e Eras.

...e acordou numa flor

virou no final do muro da quinta, para poente,
apetecia-lhe um escorrega de gelo,
 por onde o corpo deslizasse
soprou-lhe a aragem gélida do lado de lá
de onde o sol lhe beijava a pele
o cabelo escondeu-lhe o frio
teceu-se de fios de lã e aconchegou-a
adormeceu as coisas e aqueceu os sonhos
do seu bafo quente construiu um refúgio
enroscou-se no fim do escorrega
e rolou sem rolar no rolo do sonhar
virou no final do muro e acordou numa flor
E o Inverno acabou, para recomeçar
 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Ah! pensou, é Primavera

chegava de mansinho e aquecia a terra, um calor morno que lhe acariciava a nuca e se embrenhava sob a roupa envolvendo-a num raio de Sol curiosamente palpitante. Gostava de se agitar entre o tecido e a pele, o raio de sol a brincar sobre o seu corpo. E soltava-se de trapos, no esvoaçar da saia em rodopio infinito, braços em hélice e riso solto até cair tonta na erva do jardim.
A terra cheirava a Sol e estava quente, protegida num manto de humidade que o calor resgatava. E as mãos procuraram pentear as ervas, pernas flectidas pelos joelhos em alegre dá que dá. O vestido era de popeline com flores azuis e rosa e a erva era verde.
A joaninha trepou-lhe pelos dedos e passeou-se vestida de vermelho  preto, desenhando um carreiro amarelado sobre a pele. Elevou a mão e cantou-lhe a lengalenga da viagem para Lisboa. Soprou-lhe de mansinho como o raio de Sol e ela abriu as asas e voou.
Benedita recolheu as pernas, agarrou-as com os braços e encostou a face nos joelhos. O Sol escorregou-lhe de novo pela nuca e pelo corpo. Suspirou.
Ah!-pensou- é Primavera.
Olhou para os pés e  já não calçava galochas.

quinta-feira, 15 de março de 2012

...e ela, feno pelo ar.



os pés tocaram, na descida, o rugoso quente dos degraus, até ao patamar térreo. A terra seca do caminho soprava-lhe a poeira do fim de uma quente tarde de fim de Primavera. Agitou-se no desvario de a palmilhar, entre o sedoso da poeira fina e as finas picadas da areia grossa que lhe cocegavam a palma dos pés. E o trilho era marcado em sinuosas pegadas, fugidias de pedras e calhaus, por vezes marcadas em rasgos mais profundos, quando se perdia no rocegar dos dedos na terra cálida.
Do lado do campo ainda era tempo de ceifa. Galgou a pequena inclinação do terreno e adentrou-se pelas ervas até perto dos ceifeiros, pés na terra torrosa e negra, de porosa humidade.

- Olá menina, boa tarde! disseram-lhe os ceifeiros. Vamos à ceifa?
Brilhou-lhe o olhar, agitaram-se os dedos dos pés e acenou a cabeça.
- Sim, vamos!
Saia apartada em nó no cimo das coxas, para não atrapalhar a tarefa, foice bem segura, mão na mão de um ceifeiro, foi cortando a sua leira, ajeitando pequenos molhos logo juntos e atados para depois serem levados.
Saltitavam as poeiras da terra e das ervas, soltas pelos pés, que se iam prendendo nos cabelos e nas roupas, pintando-a de um cinza esverdeado e a soltar cheiro a feno pelo ar.

E os pés descalços,
 e a escada quente e rugosa,
e a terra poeira e areia
 e ela, feno pelo ar.

terça-feira, 13 de março de 2012

as fechaduras são só fechaduras :)

quando eu era menina tinha uma certa fascinação por alguns bichos. Entre outros as abelhas, as vespas e os zangãos lá estavam. Minha mãe bem me avisava de que com a família das abelhas não se mexia, mas eu entendi de outro modo. As vespas mais individualistas do que as abelhas, apreciavam acoitar-se nas fechaduras dos portões de quintais e jardins. Eu adorava tudo o que era mais difícil e entendi fazer sair a vespa do seu castelo. Foi o dia de uma bela ferroada, choro bem condimentado e a aprendizagem estranha de que morrem por nos fincarem o ferrão. Até parei o choro. Verdade, verdade deixo por agora os buracos de fechaduras em paz.

domingo, 11 de março de 2012

olhos verde azeitona

os olhos dele eram verde azeitona. Tinham aquele tom que ela sonhara para a sua paixão. E eram sempre os olhos que ela queria olhar para sentir que também eles a olhavam.
Podia então escrever mais uma história no seu diário, sobre as certezas de uma paixão, sem palavras.
O fim da tarde era  uma partida de bagdminton. Era mesmo no passeio, entre os prédios e a estrada (naquela altura não havia ainda campos de jogos, nem urbanizações), a cruzar com o horário de saída da escola. Objectivo, prender-lhe o olhar, torná-lo cativo seu.
Era difícil. A adolescência tímida provocava-lhe forte e vermelha coloração no rosto quando o sentia e quase que preferia desaparecer, no chão.
E, um dia a pena caiu-lhe mesmo aos pés, numa batida despropositada mas quase propositada da sua companheira de jogos.
 Baixaram-se ao mesmo tempo, precipitadamente, mas ele levou vantagem. Soergueu-se e abrindo o rosto para ela, num sorriso mágico e num olhar sem fim segurou no volante, e colocou-o na sua mão como se fosse a mais bela flor.
O olhar verde azeitona segredando-lhe do cativeiro. Nela pela primeira vez um erótico e quente rubor.
Um dia dançou com ele, numa festa de anos, mas estava já cativa de um outro olhar. Ela.

Como é bom jogar bagdminton.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Elas, marés de ternura

elas, velhas da minha vida, são barcas onde viajo, são braços em que me acolho na infância da ternura, agora na distância da memória, São velhas sábias, doces e duras, esquecidas e contadoras das mais antigas histórias. São mares de rugas, marés de ternura, emoções perdidas em negras vestes, logo sorridas por melenas alvas. São meninas que por o não serem fazem birras, são teimosas, perderam as brisas e choram por prosas.
São elas tão fortes na minha alma, tão doces neste caminho que trilho.

estendi a toalha e levei-as p`ra minha mesa: ouvi o cantar da moda antiga, a história da moura encantada, o marido que por lá ficou em África, o saltitar dos fritos no lume, o croché de rendilhado fino, as mezinhas curativas...Não sei ainda que paixões são estas tão contadas na memória que não chegam a ser contadas.

Cheiram-me a campo, a amoras colhidas das silvas. Aí se prendem os xailes que à noite as aquecem, que num repente recolhem e apertam, para não esquecerem e contam histórias....
A minha mãe era a minha mãe, velha sábia, doce e terna, contou-me histórias e o seu xaile ficou preso nas silvas. Hoje colho-a como amora.
Elas, velhas, marés de ternura.

quarta-feira, 7 de março de 2012

entre canela e jasmim

gosto que viajes pelo meu corpo
(e encosto-me na banca da cozinha)
que a tua boca prenda o caule de uma flor
(enquanto os legumes se salteiam)
e a seda das pétalas me acaricie, num vagar sem tempo
o tornozelo, a linha redonda da perna e o interior da minha coxa
e deito-me, nessa cama de pétalas e de cheiros
(e um aroma a canela distrai-se pela casa)
enquanto me prendes o olhar em cetim
e então
estremece-me o corpo
de que sinto o cheiro
quando me vendas os olhos
e me deixas a arfar
entre canela e jasmim

sexta-feira, 2 de março de 2012

cerzir de fios de luas

gosto,
gosto de ser mulher,
um infinito de universos
de versos e reversos cerzidos de fios de luas
gosto,
gosto de me atirar na emoção das ruas
nos trilhos de vielas nuas, na alma
nas cores que os meus olhos tecem
gosto.


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

apenas queremos seguir viagem

"mãe, porque é que quando ultrapassamos um carro olhamos sempre para as pessoas do outro carro?"

estavam no meio das curvas e contracurvas de uma serra doce. O carro era um mini desgastado, branco, a quem davam água a beber, várias vezes, durante a viagem. Estava frágil e para passarem a serrania isolada de uma só vez, tinham-lhe preparado as entranhas ao tempo em que prepararam as deles. No banco traseiro dormitava a criança bem encostada à cadela que os tinha já presenteado com uma desagradável má disposição. O rádio tocava intermitências que lhes davam a sensação de companhia. Para trás o Sol desaparecia no horizonte e para a frente os médios começavam a iluminar sem contraste a estrada. Esperavam não encontrar qualquer camião porque o troço do inultrapassável estava mesmo a seguir. E o mini seguia, na sua marcha contínua em bom andamento, adensando-se pela noite projectando os máximos por sobre as colinas carregadas de pinheiros, construindo um jogo de sombras algo perturbador. A intermitência musical e as palavras trocadas permitiam o conforto de uma mínima segurança de janelas e chapa. Nenhum carro em sentido inverso, nenhum carro no mesmo caminho, e aproximavam-se quase do final  do caracol de curvas.
uma segunda luz projecta-se pelas enseadas das colinas. Finalmente encontram gente, e logo após a curva lá está ele, cor azul leite, perfil dos anos 50, em marcha lenta...inultrapassável!!
um minuto, dois, três......os faróis fixam-se na sombra que a contraluz desenhava dos dois passageiros do carro. Completamente iguais, chapéus de abas, casacos aparentemente escuros que jogavam no sombreado uma perfeição completa, excessiva. O carro seguia lento, curvando esquerda direita mantendo hirtamente os seus passageiros na mesma posição.
Nenhum carro em sentido contrário, nenhum carro no mesmo sentido excepto o azul leite de dois passageiros, que não conseguiam passar, que queriam passar, que não queriam ver. As intermitências musicais não desfaziam o silêncio dos motores, ou o silêncio das respirações.
- E não passa mais nenhum carro....não os consegues ultrapassar? São estranhos, já viste, não se mexem. Não gosto de ir atrás deles.
- Nem eu.
Olhou para o banco traseiro a acariciou os caracóis louros do filho sentindo-se confortada com o roncar da cadela, já velhota. O mini arrancou numa terceira arrojada, lançou-lhe o olhar para a estrada que espreitava uma curva não muito distante e acelerou também, prendendo a respiração. Não olhou para os passageiros do outro carro, quis olhar mas não sabia se eram pessoas. Sentiu que olharam, que no mesmo instante os chapéus fizeram 90º e a viram.
Não os viu, não os viram, aceleraram. No fim da curva saía-se da serrania e mais além surgiam luzes de povoações. O carro azul leite não saiu.

"- Às vezes não olhamos, não queremos saber o que lá pode estar, apenas queremos seguir viagem."
Deu-lhe a mão e caminharam.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

a tua pele na minha

a tua pele na minha sabe-me a sal, encharca-me de calor, apazigua-me de paixão
a tua pele na minha é quase aquele orgasmo que se prolonga no arrepio das minhas mãos
a tua pele na minha escorrega-se, entranha-se e emaranha-se
e a minha pele passa a ser a tua, ébria dos teus cheiros barrentos
e gosto da tua pélvis em jeito ondulante a colar-se sobre o meu ventre
o teu rosto descansado sobre o meu peito, a tua mão entrelaçada na minha
a tua pele sobre a minha pele, a tua pele na minha pele e a minha pele passa a ser a tua

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Uma história de amor: do acto do casamento II: 7 de Dezembro de 1961, cara e legítima esposa

06/11/1961

" Cara (.......)

O meu sincero desejo é que estejas de boa saúde, assim como a tua mãe, e que a (.....) já esteja boazinha também, e livre dos seus padecimentos.

    Estive ontem, mais o Dr. (.... .....) no Reg. Civil, onde fizemos a declaração. O ajudante disse que ainda ontem mandaram para o correio os editais, para a Conservatória a que pertencem os (A.....). Calculo que dentro de 15 dias possa estar tudo pronto para depois se escolher um dia para o ponto final.
Em todo o caso creio que só to direi depois de ter acontecido.
.............................................................
Estive quase para não escrever hoje por falta de assunto, mas pensei que irias ficar decepcionada, e por isso cá me resolvi ao sacrifício.
     Aí vai o cartão de identidade, para tratares de o renovar e enviar-mo depois por ser necessário.
...........................................................
     E pronto.
    Dá muitos beijos à (.....), dizendo-lhe que é o papá a enviar-lhos. Ela não sabe o que isso é, mas é um pretexto para me tornar lembrado dela. Todos os dias miro e remiro as sua fotografias.

                                                                        Beija-te com amizade o
                                                                        quase teu
                                                                                               .........

Cara (......)

......................................................................................
..........Porém, ao passar em frente à rua do Correio esquecera-me a carta, e só me lembrei já mais à frente.
...............................Mas estava destinado que nesse dia não seguiria a carta, pois mais uma vez me esqueci. Só me lembrei já no dia seguinte. E aqui tens a explicação de não teres recebido carta no domingo...
          Hoje fui ao Correio enviar.te um vale de 300.00 (escudos). Se for insuficiente diz.
          Creio que é uma tolice estares aí. Com explicações dificilmente ganharás tanto como gastas. E não sabes se vais colocada para algum ponto que te permita continuá-las.
          Mando-te duas apostas. É só para brincar, sem esperanças de ganhar. Se o impresso não servir, e tiveres interesse em gastar 3.00 (escudos), preenche outro.
         Como vais na tal ordem de colocações? Há muitas à frente?
         Como surge a oportunidade, mais uma vez falo da (.....). Como vai ela agora? Boazinha? Fala do papá? Muitos beijos para ela...........................
          E pronto. A ver se hoje não há esquecimentos.
                                                    B.
                                                             .............................."



09/12/1961

" Cara (......)

..........................................
E agora a notícia que disfarcei até agora. Estou convencido que nunca mais esquecerás o dia 7 de Dezembro de 1961. Às 17 horas, aproximadamente, conseguiste o que há tanto ambicionavas. A grande triunfadora não foste tu. Foi a nossa (.......). Já muito lhe queres, mas mais lhe deves querer ainda (se tal é possível). Se não fora ela é bem possível que nunca chegássemos aonde agora estamos. No registo o teu nome ficou acrescido com o meu apelido. Enquanto esteiveres aí não o porei nos envelopes, para evitar comentários à razão porque o não tenho posto. Mas deves gostar de vê-lo em letra redonda (".......  ........ ... ...... ......"). Parabéns e felicidades. Eu ainda não me apercebi bem da nossa mudança. Tudo se passou quase como se eu não fosse visto nem achado no acto.
      E é assim, cara e legítima esposa.
      Agora, está. Bem? Mal? Tudo fiz por bem, como sabes. Se muito sofreste, eu também não tive uma vida de rosas. Foi um amor puro o que agora nos uniu: amor pela nossa querida filha.
      Quanto à tua vinda, gostaria. Mas depois custar-me-ia muito a separação. Não será melhor suportar um pouco, agora que estamos adaptados a este convívio à distância? Resolve.
       Muitos beijos à (.....) do Papá.

                                                                               Beija-te o teu
                                                                                              ................. "

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

De Juannes

logo ali um mistério extraordinariamente misterioso, por não ser mistério, mas ter mistério. Assim começava a história de Juannes, no momento em que acabava, ou se presumia acabar, porque era aí, nesse momento que percebia andar à procura dos seus mistérios. Encontrá-los obrigava-a a escrever o tempo do nascimento, que não sendo qualquer mistério (afinal ela nascera) estava cheio de mistérios.
De Juannes nada se sabia, apenas que Lucia, uma esplendorosa mulher de fartos e longos cabelos negros, a pusera no mundo e misteriosamente desapareceram, como se nunca tivesse acontecido.
Corria o ano de 1960.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

sabe-me a beijo

soube-me a beijo
o olhar trocado de fugida
o  brincar à cabra cega e o levares-me às cavalitas
o bilhete que me enviaste naquela aula que já não lembro
o morder do lábio quando ao longe me avistaste
as mãos que no escuro entrelaçamos
a carícia no meu rosto, as tuas mãos embrenhadas no meu cabelo
o teu indicador sobre os meus lábios, desenhando-lhes os contornos uma e outra e outra vez
os teus braços sobre os meus, o teu corpo sobre o meu num jogo de treino de bilhar

sabe-me a beijo
esse palpitar primeiro, boca entreaberta, levemente humedecida, que os teus lábios mordiscaram

sabem-me a beijo todos os beijos que me beijam sem beijar
dos momentos em que corei, estremeci, sorri e até suspirei
e hoje
beijo com sabor a beijo todos os beijos que quero ousar

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

o regato

chegava-lhe o som do regato, cristalino, saltitante e tão  aveludado. Sentia-lhe a carícia profunda sobre o leito estreito, aqui e ali pejado de quebras de rochas duras e tão docemente talhadas. Puxou de uma erva mijona, enquanto rolava o corpo e, cotovelos sobre o solo, mordiscou-lhe a haste, doce.
Deixou que a aragem lhe soltasse os cabelos e acariciasse os seios, definindo os mamilos, trémulos, sob o leve tecido do vestido. Sugou um pouco mais daquela seiva, da erva, e ajeitou-se sobre a leve inclinação do terreno deixando-se rebolar até ao som do regato.
Deixou tombar as mãos na água, sentindo nos dedos a frescura e a força daquela torrente compacta e apertada. Navegadas as mãos, aspergiu-se das gotas de água, soltas sobre o rosto e sobre o peito. Aninhou-se, em feto, e abriu-se em nenúfar, um raio de Sol espreitou por entre as folhas do choupo e beijou-lhe a face.

Cerrou as pálpebras e adormeceu. O regato murmurou de amor.

perfume de fim do dia ou a cinderela perfumada


Desligou o fogão, foi até à sala e olhou-se no espelho. Metade de si passou para o lado de lá, e olhava-se agora desfocada no meio de um cinza londrino, atrás do espelho.

suspirou, bafejou o espelho e desenhou um coração atravessado por uma seta. No topo esquerdo desenhou a letra A e no topo direito um ponto de interrogação(?). ­ ­Faltava saber o nome dele.

Mais uma vez iria perfumar-se, com aquele perfume que alguém deixara à sua porta. Depois atravessaria as ruas, à espera de ser encontrada­­.


Muito provavelmente apanharia um táxi no fim da noite e,  sem o ter encontrado, só o aroma permaneceria na sua cama.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

crepitar

gosto do crepitar das emoções, leves e saltitantes labaredas que queimam os corpos e agitam as mentes

os teus dedos roçaram os meus, tão leves e tão ardentes, e o meu coração crepitou, acendeu um rio de fogo nos meus lábios, e os meus dedos beijaram os teus,  e em carícias prolongadas alcançaste-me o pulso num palpitante aconchego,
e eu suspirei, baixinho, encostei o meu braço ao teu e abri a mão que tu entrelaçaste com os teus dedos e apertaste e soltaste e apertaste e soltaste...
e havia uma luminosidade branca, num jogo de sombras e luzes, da fita que passava no écran.
Segredaste-me "não estou a ver nada". "eu também não" atrevi-me a balbuciar.
E os teus dedos roçaram os meus e a tua mão prendeu a minha e a minha alma amou-te então.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

"let me get what I want"

jasmim chegou, beijou-lhe o pescoço enlaçando-o sob os sovacos, aconchegando os seios nas suas espáduas.
Vicente segurou-lhe as mãos, beijou-lhe os dedos, um a um e dolentemente embalou-a.
Jasmim cantou-lhe "No alto da montanha, pertinho lá do céu..." e desejou saber cantar os Smith "please, please, please, let me get what i want".
Não conseguia, mas tinha o que queria e "de lá se via o céu, o sol e o mar também"!


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Kaffa coffee e o caleidoscópio

tinham-se atirado para cima da colcha, procurando acalmar os mundos que tinham criado no café, sobre o oceano, em cada gole de menta e na roda de fumos comuns. O caminho quase os tinha sugado para a dimensão das plantas assassinas. A porta do hotel envolveu-os num abraço deliciosamente maternal e o quarto  pareceu-lhes o berço da infância.
Atiraram-se para a cama e olharam-se...
ela sorriu

a cada momento, micro segundo, o olhar dele refazia-se, rearranjava-se em loucos padrões de gravilha brilhante, aqui e ali atravessado por gotículas quartzicas entre o verde seco e o rosa velho e não parava, como um caleidoscópio renovava-se mirabolantemente em novas estruturas de cristais.
ela sorriu,
com a ponta dos dedos percorreu-lhe a face e suavemente cerrou-lhe as pálpebras
- Os teus olhos fazem-me cócegas, disse-lhe.
Ele continuava no seu solilóquio, sem som. Segurou-lhe as mãos, beijou-lhe a palma e abriu o olhar e continuou a murmurar.
ela riu, mais solta, agitou-se sobre a roupa e sussurrou:
-  parecem entradas noutros mundos, os teus olhos, perco-me neles. Estão estranhos e lindos, quero voar neles.
Voaram.
Acordaram, suados do calor da noite, com a chamada para a oração da medina. Sem caleidoscópio, enroscaram-se ternamente e adormeceram, nesta dimensão.



a

domingo, 29 de janeiro de 2012

brumas



o sorriso escorregou-lhe qual cascata de água cristalina
e a memória soprou-lhe um segredo
............................................................


a memória sopra-me segredos
nessas
outras vezes
em que estou desalojada de mim,
perdida na bruma de mim
e o sorriso escorrega-me
em cascata de água cristalina
agitando redemoinhos de vento
e pequenos sons
naquele prado
onde a luz pintalgava
um concerto de cores
por cada gota de orvalho
.....................................
por aí desvendo os segredos da bruma
das memórias de mim






quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ecos 2

não tem tamanho este sentir de ausência, este arrancar de uma história.
então a tristeza envolve-me quase sem eu dar conta, cresce como um nevoeiro, desfocando o real.
recrio-te portanto na minha memória gemendo as lacunas que não preencho porque escritas mas ausentes
sei-te sempre mesmo quando o mar nos separa, mesmo quando a palavra se apaga
mas fazes-me falta, numa terna companhia de fim de dia

ecos 1

os textos e as palavras, são murmúrios, ecos momentâneos de estranhos ruídos nos afectos.

sábado, 21 de janeiro de 2012

faunos, fadas e saltimbancos

há um tempo de Inverno em que o dia tem um eterno e húmido frio. É um tempo em que a neblina e a névoa descem à Terra, envolvem as casas, as árvores, os fios de luz com cálidas e frígidas gotículas de água. E, sobre o povo, as fumarolas enroladas, que se escapam de cada chaminé aquecem apenas o cheiro que devolvem às quelhas e travessas.
Este é o tempo do silêncio onde soam todas as memórias. E nascem os mais lindos cristais de gelo, belo sincelo, aprisionadas as memórias em extraordinários pingentes.
Aqui ousam chegar os faunos e as fadas a estes povoados, catedrais da natureza, espaços mágicos e sagrados, onde os humanos se aquecem junto a fogos intensos, do atear das vides secas, prolongados num borralho acolhedor, dos toros de raízes de oliveira.

estava assim, há uns dias na aldeia, breves humanos a despontarem na paisagem: umas idas à fonte, uma saída com os burros. Bochechas coradas do lume, à ida, logo pontas arroxeadas à volta numa corrida ao encontro do quente do lume. De faunos e fadas nem sinal.
Benedita entristecia, testa colada ao janelo da porta, postado o olhar sobre a rua, sumida entre as gotículas gélidas!
Bruuumm; bruuumm; chiiiiiing; brum, brum, brum...
Os olhos de Benedita arregalaram-se. Limpou com o cotovelo o vidraço. A subir a rua vinha uma carrinha branco suja a puxar uma caravana branca, em soluçante andamento expelindo umas baforadas de um fumo acinzentado.
"Os faunos, as fadas", pensou Benedita, "chegaram". Em correria pela casa, logo quis ir à rua, mas que não pode, assim determinou a mãe, por causa do frio.
Soube as novas no dia seguinte, os faunos e as fadas tinham vindo para actuar - a mãe chamava-lhes saltimbancos - no Domingo. Só faltavam dois dias!
O tempo amainou e ainda que frio, este não se agarrava à pele, como se uma invisível cúpula transparente mantivesse as gotículas lá mais acima.
O largo de aldeia estava apinhado de povo, tudo em volta da caravana misteriosa que lá tinha estacionado, esperando o espectáculo. Era um círculo de bafos, narizes avermelhados, gorros e cachecóis e uma ondulação de bater de pés no chão para enganar o frio.
"Faunos e fadas, claro", assim se certificou Benedita pois transportavam a varinha mágica, pai, mãe, filha e filho, pequenos, como ela.
 E fez-se magia, a água ficou vinho e ofereceram flores surgidas do nada e, em maiôs justos, fizeram equilíbrios e acrobacias, malabarismos e contorções, braços e pernas desnudas, sorrisos abertos em lábios roxos nas vénias de cada salva e dos ohs e ahs de espanto da audiência.
Envoltos em capas grossas, recolheram moedas parcas, que não lhes apagaram o sorriso dos lábios mas que lhes entristeceram o olhar.
Era suposto ficarem mais um dia, que era feriado, mas a manhã acordou fria e húmida, arredada a cúpula protectora e os faunos e as fadas tinham desaparecido...
- Saltimbancos, Benedita, saltimbancos, minha filha, andam a ganhar a vida - insistia a mãe.
Benedita encolheu os ombros e suspirou, com pena da mãe. Faunos e fadas sem dúvida só eles podem fazer magia e dançar o corpo nos dias do eterno frio.
Um dia viajaria com eles. Por ora estavam naqueles pingentes de belo sincelo que a manhã tinha tecido nos galhos despidos das árvores

Este era o tempo do silêncio onde soavam todas as memórias.  Nasciam os mais lindos cristais de gelo, belo sincelo, aprisionadas as memórias em extraordinários pingentes.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

despir-se

despiu-se do corpo. Pendurou-o numa cruzeta e alisou-lhe as rugas ganhas no dia. Estendeu-se na cama e descansou-se, do corpo. Quando acordou, não tinha dores.

sábado, 14 de janeiro de 2012

um breve branco


parecia um sorriso na paisagem, um breve branco no topo de uma colina tresmalhada e ao lado um monte pejado de urze lilás-violeta por onde apetecia escorregar. Naquele tépido início de Primavera colhia um lindo molhe, violeta, a que  juntava uma ou outra ramada do vistoso amarelo da mimosa. Carregava-o gentilmente, bem sentada no banco traseiro do Fiat de cor verde impregnando o habitáculo daquele aroma, quente e fresco. Sorria, com o olhar pequenino e rebolava por ali a fantasia.
Quando chegasse, sabia  que ele estava lá, bem juntinho ao gradeamento do jardim, sorriso envergonhado e olhar ladino.
Esperava-a para jogarem ao "minha mãe dá-me lume". E quando ele lhe desse a mão, o seu Ângelo, a ela Benedita, para chegarem ao adro da igreja, onde jogavam com os amigos, dar-lhe-ia aqueles cheiros e aquelas cores para que ele parecesse um sorriso na paisagem, um breve branco tresmalhado nos rostos da tristeza.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

...de um azul desmaiado

abriu a porta e cheirou-lhe a sexo...proibido. Não deixava de ter, por ser proibido, aquele travo salgado de um doce gelatinoso, algo morno, mas sentia-lhe o fugidio toque da limpeza de um leve arejamento feito à divisão.
O cenário não era romântico, nem sequer virulentamente sexualizado. Era sem dúvida o cenário do proibido e o doce acre embebia-se na alcatifa velha de um azul desmaiado e nos papéis e folhas de livros e cadernos desalinhadamente organizados em outros espaços.
Sentia, por isso, o local exacto em que os corpos desaguaram e o conforto que a paixão fez crescer naquele desconfortante e proibido espaço. E o cheiro a sexo e à urgência da sua concretização estava ali, marca de um acto nunca acontecido, porque ali.
Porquê aqui, pensou, antes na areia da praia...abanou a cabeça abriu as janelas e deixou que o ar ainda frio da manhã se impregnasse pela sala. Sentou-se à secretária e começou as tarefas planeadas.
Quando ela chegou, já não era tema de conversa. Cheirava apenas ao pó da velha alcatifa.