segunda-feira, 31 de outubro de 2011

o sal do teu corpo

ah escorrego por ti em perladas gotas que me envolvem a pele,
aperto-te em mim, corpo a corpo poro a poro,
entre nós o cheiro a brisa de maresia de fim de tarde
 o sal do teu corpo a adoçar-me os lábios
...e tombo o meu rosto sobre o teu ombro
em terno encanto de protecção
 ali te amo, ali te construo
ali, no princípio da criação

sábado, 29 de outubro de 2011

o tempo da lama

Era no tempo de Outono tardio, o tempo em que a chuva solta o sol que a terra acolheu. Um breve tempo entre a terra humedecida e solta e a terra de pasta gelada da geada do Inverno.

descalça, a lama de terra escura alcança-me o tornozelo, envolve-me o pé como um veludo húmido e pesado e deixa-me dar passos, lentos, desenhando no passo elevado o movimento, com terra. E o passo escorrega, como num pântano, para nova imersão de ímpeto húmido e viscoso rapidamente transformado em cálida e doce textura como se a terra me pudesse aquecer.
Assim me provoca a terra no tempo da chuva intensa, feita lama, feita cama, a entrada fria em corpo quente.
Sinto-a, doce e pulsante, bêbeda de tanta água, lavando-se da secura do tempo quente chamando-me para esse passeio, no campo atrás da minha casa, quando a chuva pára e a humidade permanece.
Gosto dessa lama, dessa terra viscosa e lenta que me envolve em ternura, em breves momentos do andar descalça, entre a sopa e o puré que, de lama, preparava nos meus tachos de brincar.
Porque a terra estava ali mesmo ao sair da porta e era bom andar descalça.

Era no tempo de Outono tardio, o tempo em que a chuva solta o sol que a terra acolheu. Um breve tempo entre a terra humedecida e solta e a terra de pasta gelada da geada do Inverno.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"Fur Elise" e o piano de cauda

os dedos pianavam em teclas brancas e pretas, marcando escalas, naquele ritmo entediante do aprendiz de feiticeiro a quem falta um pouco de audácia criativa. O piano não era da cauda, era de caixa alta, encostado à parede da pequena saleta de iniciação da escola de música com aspirações a conservatório. A ante sala era um enorme salão onde isolado como rei e senhor estava o piano de cauda que havia de ser usado nos recitais. Este, vestido de madeira mel, contrastava em suavidade com o de caixa alta de madeira escura, que recebia portentosamente os exercícios dos pequenos aprendizes, que normalmente suspiravam ao passar frente ao cauda sonhando com o dia em que poderiam escorregar os dedos por um teclado escondido onde as melodias haviam de ser maravilhosas.
O salão tinha também um piano velho, de caixa alta, menos bem tratado onde os alunos, sem piano em casa ou nos momentos antes da lição, podiam fazer o treino de escalas e melodias simples. Era o meu amigo piano, de onde invejava também a banqueta do piano mel, quando uma ou outra tecla produzia uma nota mais metálica ou em timbre tremido dando uma cor desarmónica ao meu momento de pianista.
É, cheirava a música, a papel de pauta. O dó e o fá sustenido da clave de sol giravam incessantemente pelas salas e salão, os acordes estalavam e as pausas geravam sinfonias contínuas...o mundo era a música, mesmo na odiada sala de solfejo.
Não sei como se chamava, a professora. Era de um feio belo, entre mozart e liszt, escandalosamente musical, uma opereta. Óculos finos e nariz adunco, dentes atirados para fora da boca, bem espaçados, estrutura quase equina do perfil do rosto, exibia por isso uma espécie de sorriso constante e uma simpatia perfeita pela humildade do estar: não era pianista, era professora de piano e embevecia-se com as nossas escalas e melodias mais ou menos bem tratadas e adorava tocar a quatro mãos, connosco.
O nuno era o que iria ser o grande pianista, pensava eu, que por ele nutria uma pequenina paixão secreta, construída no coração da nossa sinfonia. Não éramos muitos, os aprendizes e aprendizas de piano, naquele primeiro ano de iniciação, nossa e da escola. Era por isso fácil cruzar-mo-nos entre aulas e em pequenos momentos de espera ou na observação que por vezes a professora queria que uns dos outros fizéssemos para melhorar técnicas incentivando pequenos prelúdios de toques a quatro mãos.

Os pianos exalam aquele cheiro de uma mistura de cordas afinadas com os óleos conservantes das madeiras e o papel, o muito papel, tantas vezes já amarelecido onde as pautas primam por brincar com notas que teimam em saltar-nos para os dedos e que se soltam em sons e sons e sons....
Um dia ele estava no canto do piano mel meio de lado na pose da banqueta com postura de pensador e não de pianista, cotovelo apoiado na borda do piano, pousando a testa sobre a mão e com os dedos da mão direita tocava as primeiras notas de"Fur Elise", sem pauta. Parei a observá-lo, o maravilhoso pianista que se soltava sem regras, sem pautas...foram só as primeiras notas e passei a querer beber mais desses momentos, no piano de cauda.
Só voltaram a acontecer em recitais, onde a música transbordava mas tínhamos invasores dentro da casa.
A sinfonia de olhares sumidos e olás pouco audíveis nos breves momentos em que nos cruzávamos, foi preenchida pela aventura a quatro mãos, de uma tal sonata que não recordo o compositor onde a professora nos entendeu como par ideal.
A saleta de aprendizagem fazia então eco à respiração e ao palpitar do peito junto de quem tocava "Fur Elise" no piano de cauda, enchia-se de notas vibrantes aconchegadas pelo constante e belo sorriso equino da professora que de olhos fechados nos transformava em breves colcheias e coloria-se com o rubor fascinado que me aquecia as faces. Éramos a sinfonia.
Um dia desisti, não gostava do solfejo, parecia-me pouco sinfónico e acho que o nuno também. Tenho saudades da professora.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

sobre o amor (de meu pai)

"o amor é tudo, é tudo, é tudo!
o amor é nada, é nada, é nada!
o amor é tudo, é nada!
é tudo, é nada"

quando conversamos sobre o amor
e tu me respondes que me adoras
meu amor!
meu amor!
eu acredito em ti

se mais conversamos sobre o amor
e eu te respondo que te adoro
meu amor!
meu amor!
eu não te menti

quando discutimos e brigamos
porque em certas coisas discordamos
meu amor!
meu amor!
o amor deixa-nos sós

mas quando nos beijamos e amamos
falar sobre o amor não precisamos
meu amor!
meu amor!
o amor fala por nós

(suponho que seria uma canção. ele nunca a cantou nem deixou a música)

e se eu tirar os sapatos, meu amor?

queres que eu comece a tirar os sapatos, meu amor?

Olha para mim, estou sexy? uma estrela de hollywood?
Venda-me os olhos e acaricia-me os seios
estou sedenta de um romance
de sentir a pele suada do meu corpo
cheia dos teus beijos...

queres que eu comece a tirar os sapatos, meu amor?

(2007)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

medos

o silêncio sobrepôs-se ao ruído e sem som aproximaram-se os medos, rastejando fantasias negras esfumadas, sem formas reconhecíveis, sem cheiros...Parou o respirar, ergueu em tensão os ombros, e os olhos abriram-se num grito desgarrado querendo ver o que não queria ver.
A pequena abertura da porta alargou-se, sem som, sem formas. Para além apenas a escuridão, sem cheiros. O grito saiu-lhe do fundo do peito, gutural e vagido, num estranho e lacinante lamento de não poder impedir o medo...E ainda não havia som!
Soou um estalo, violento, que lhe queimou a face, lhe rebentou as lágrimas e a fez respirar. Os sons voltavam, a vida voltava. O rosto recuperou cor, os lábios humedeceram-se e chorou e riu sem contenção, sem medo.
Do lado de lá da porta estão sempre, os medos, construídos no lado de cá.

domingo, 9 de outubro de 2011

o borboletear de Benedita

ali estavam, tantas e tão belas, num suave burburinho do bater de asas, espreitando as flores, borboleteando nas rosas trepadeira, beijando os rasteiros e coloridos amores perfeitos, construindo um segundo jardim, suspenso e vibrante.

o passeio alargava-se para se encostar a uma parede redonda de um branco um pouco escuro. Desse espaço explodiam canteiros geometricamente uniformes onde os amores perfeitos fulgiam de cores vivas e matizados inesquecíveis. Era Primavera, o toque aveludado das pétalas apetecia a carícia do Sol...E ali se debatia na seda de uma teia que lhe tolhia os passos e lhe fascinava o olhar. As pálpebras tremeluziam o bater das asas e os olhos encantavam-se naquele tapete suave e como se fora marioneta esvoaçava os braços, adornadas as mãos de uma ou outra mariposa fugidia. Entrava naquele mundo. Do outro lado da teia ficava a estrada onde continuava a andar, o olhar curioso virado para aquele fulgir e do lado de dentro podia devagarinho cirandar por entre os quadrados, os triângulos e os "losangulos". O acetinado da flor acariciava-lhe as canelas finas e o agitado jardim suspenso elevava-se em voos lânguidos deixando uma ou outra borboleta como adormecida nas pétalas ali abertas.

A borboleta, pequenina fada, vestida com as mais belas cores o mais delicado tecido, enreda-se em voo espiralado sobre a estonteada Benedita, e gentilmente inclina-a junto aos canteiros. Sem pressa Benedita segue o voo leve da pequenina fada, polegar e indicador em pinça, e segurando a respiração, agarra em cuidada tenaz as asas lilases pinceladas de amarelo forte onde salpicam uns circulos escuros e em suave roçar deixa que aquele pó de colorido intenso lhe cubra as pontas dos dedos e se solte na palma da mão. E as asas ficam frágeis, translúcidas e ao soltar-se, a fada, pequenina borboleta, parece desequilibrar-se no ar, perdida a dourada poeira que lhe aveludava as asas.

Benedita fascinada envolve-se naquele bocadinho de fantasia, passando os dedos pelo rosto, pelo peito, pelos braços, pelas pernas, mantendo uma lenta carícia do polegar sobre os outros dedos como se quisesse passar a borboleta...E voou assim um bocadinho do tamanho do sempre...


O fio sedoso daquela teia grudenta, cuspiu-a num repente. Ali do lado de fora olhava curiosa as rosas trepadeiras, os belos amores perfeitos a que roubou uma acetinada pétala e a borboleta a que faltava cor e que não fugia da sua tentativa de a segurar. Desistiu, procurava aquele pó mágico que esta não tinha e desatou em correria por entre os geométricos canteiros, espantando borboletas e até uma libelinha, descobrindo uma ou outra escondida joaninha, querendo agarrar em pleno voo a que lhe havia de emprestar cor.

Escorregou numa das rosas caídas e permaneceu em equílibrio de braços abertos, pousada na ponta da sua mão a borboleta despida..

Aii, aiii o vinagre, tinha que o ir buscar à mercearia. E por ali seguiu com o voar das borboletas, até ao centro da vila.


sábado, 8 de outubro de 2011

"je t`aime"

-" je t`aime", sussurrou com voz rouca ainda sem o encorpado da adultez, lábios grossos bem próximos da boca trémula de Carolina, soprando um ansioso desejo no hálito quente.
Carolina voltou lentamente o rosto e o beijo escorregou-lhe do canto da boca para um roçar leve e desejoso dos lábios, trocando o respirar ansioso de um momento que se queria mais e que se temia mais.
-"je t`aime", repetiu prolongadamente, acariciando-a da base da orelha ao meio do queixo, absorvendo com o olhar o olhar que ela, surpreendida e seduzida, lhe rasgava.
Olharam em frente, para a noite, sentados no degrau do alpendre da escola, encostados os corpos, lado a lado, trementes, braços sobre as coxas e o roçar da pele das mãos, nos dedos que se entrelaçavam envolvendo-se num bailado de carícias soltas como se os corpos ali estivessem, ali se amassem.
E a mão tocou-lhe novamente a face com um delicado nervoso, pontas dos dedos suadas, e o olhar que ela não conseguia olhar percorrendo-lhe o perfil, perguntando-lhe em silêncio (- e tu amas-me?) fechando em garra e com força a outra mão sobre a dela, o respirar quente vibrado no seu rosto, os lábios roçando-lhe o lóbulo dizendo-lhe: - "gosto de estar assim".
No alpendre o arfar, nos corpos apenas a dança voluptuosa das mão e os beijos nunca alcançados de lábios sobre os lábios, deixando na noite o desejo de um desejo que não se sabia desejado.
Chegada a casa, caminho feito de mãos dadas como namorados de um novo romance, Carolina sorriu, encheu-se de amores, mas não o amou, apenas amou a noite encantada.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tânger, a bela

mohamed era já uma memória distante. O argelino Redwin(!) tinha-o substituído com grande agrado nosso. Era um guia diferente, quase amigo e sem trocas comerciais à mistura. Conquistámos Tânger. Redwin tinha-nos possibilitado o impensável: percorrer a medina sem o assédio de outros guias, conhecer com os nossos próprio olhos, com o nosso toque e com os cheiros que ousávamos cheirar. E Tânger era linda. Caía-lhe um calor baço e húmido que as cores das vestes marroquinas transfigurava em emoção e nos enchia o peito de uma saudade ausente quando o vento quente do fim da tarde nos soprava os cabelos em rebelde confusão (quase quase se cheirava ali D. Sebastião).
O entrelaçado da medina era nosso conhecido: aventurámo-nos nas ruelas para além dos mercadores, marcadas apenas pelas janelas estreitas, quase sempre fechadas para afastar o calor, com espaços estreitos onde apenas cabia uma pessoa, e das quais se contavam mirabolantes estórias de turistas assaltados em formatos ousados e por vezes inverosímeis.
Ah, bom! éramos autênticos, herói e heroína, portugueses amados depois de confundidos com "italiani; franchesi; spain e quê?!" e sabia-nos bem o abraço de "portuguesi, amiqui". Era por isso incompreensível o choro da jovem portuguesa, que no fundo da escada de acesso à medina, desesperada pedia ao marido para irem embora quanto antes melhor. A tentativa de irem à medina, sem aceitarem os préstimos de qualquer guia resultara num extremo desagrado que já não suportavam. Estranhas realidades aquelas, talvez não tivessem sentido Sebastião...
Nós entrávamos e saíamos sem entraves, na medina, na cidade nova e até nos arredores, menos afoitos aqui e por norma com a vigilância de Redwin. Sabemos hoje que os diferentes códigos dos guias emitiam passaportes de níveis diferenciados e o nosso era seguramente de elevado nível.

Redwin tinha-nos levado a um hotel quase na praça central da medina, numa das ruas de principal acesso. Construção seguramente antiga, encaixada num casario apertado que quase cerrava a nesga do céu, alargava-se logo após o átrio amplo num pátio circular de luminosidade palpável que aconchegava o jardim interior que com uma timidez exibicionista nos atirava ao olhar plantas de folhagem larga e verde por onde escorregavam finos tubos de luz facetados pela enorme clarabóia de vidro que protegia o interior. E nesse olhar lançado em altura, perdido naquela luz quase sem existência, descobrimos o varandim, de ferro forjado, que protegia todo o pátio do 1º piso de acesso aos quartos.
Foi neste que ficámos. O quarto era pequeno, com portada sobre a rua e uma ligeira e diminuta visão da praça da medina e quase em frente, mas distante, o torreão de uma mesquita. Na parede lateral à cama de ferro um guarda fato com espelho arrumou os nossos haveres e o lavatório aí encostado servia-nos para as lavagens curtas, porque chuveiro e sanita só na casa de banho comum do hotel, situada felizmente naquele piso, sendo também por isso cobrado um pequeno excedente na diária. Turistas, europeus, só nós. Misturados com todas as famílias marroquinas que ali permaneciam por mais ou menos dias éramos "estranhos em terra estranha" mas, mais permanentes.
E neste hotel habitámos, todo o tempo de Marrocos, todo o tempo de Tânger.
Com Redwin, o vento quente do fim de tarde, o cheiro forte do chá de menta, o sabor doce apimentado da sopa de 1 dirham, a dança da palavra mercantil entrámos numa aventura de sentidos, perdido o desejo de Fez e de Marraquexe, como se Sebastião ali nos tivesse inventado.
Seguramente ali se perdeu de amores, em Tânger, como nós...perdida Alcácer.

...a manhã começa clara e fresca. É a única altura do dia em que o corpo não está suado, e a vontade de sair à rua se despeja na multidão que por lá já circula, no linguarajar que não entendemos, e no apelo que o torreão emite em tom grave, gutural, certo, ritmado, igual, melódico, quase hipnótico. É hora de ir ter com Redwin.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

saber a mel

...queria saber a mel e voluptuosamente envolver-te, escorregando sem pressa sobre o teu peito e maliciosamente derramar-me nas tuas nádegas adoçando a sofreguidão que em ti descubro, num luar nocturno naquela clareira que ainda não encontrei e onde sonho, lobo meu, dançar no luar espiral de mel, e voluptuosamente envolver-te escorregando sem pressa sobre o teu peito...