segunda-feira, 27 de junho de 2011

O bom ladrão

Olá, disse Celina.

Olá, disse ele, abrindo um meio sorriso.

Celina sentou-se no beiral da janela, com grade, invadiu de perguntas o interior da cela, rodeando o cheiro metálico acre e moribundo do ferro e passou a amiga-cliente das histórias do senhor da cadeia.

O preso, sem nome, dava vida à cadeia. Não era hábito ter presos, era até raro manter prisioneiros, mas quando tinha era um acontecimento, social. A janela virada para o largo possuía um robusto gradeamento em ferro que não exercia qualquer atracção, excepto quando tinha um prisioneiro. Era o tempo em que as grossas portadas de madeira se abriam e permitiam mergulhar no mistério, para lá da grade.

Os grandes pareciam desconhecer que ali estava o prisioneiro. A janela gradeada ficava-lhes pelas pernas, e mesmo sabendo da existência de gente, lá dentro, era como se a cadeia não existisse. Os grandes pelos vistos, não queriam desvendar mistérios.

As histórias eram comuns, o senhor preso tinha filhos, até da sua idade, de quem tinha saudades e que desconheciam estes problemas. Tinha sido tentado para roubar santos das igrejas e capelas e estava arrependido.

Celina achava estranha aquela vida de tirar santinhos, que só serviam para se rezar, por isso nem percebia bem porque o senhor preso não podia sair. E Celina queria entrar, ver para lá da escuridão que cá de fora vislumbrava, saber como se dormia, sem janela de vidro e sem cama e com o permanente cheiro de uma humidade seca e ferrosa que Celina levava nas mãos e na roupa quando se despedia.

Ficava mal a Celina conversar com o priosineiro, e o pai disse-lhe: “Celina, não quero que mais ninguém me venha dizer que estiveste a falar com o preso. Não fica bem, minha filha, ele fez uma coisa feia, é um ladrão, e está a ser julgado no tribunal”.

Ficou confusa porque o pai era o juiz do tribunal e era bom, mas o senhor preso tirava santos, que só serviam para rezar, devia ser bom também por querer rezar tanto…mas o pai dizia que ele era um ladrão!

Deixou os bocadinhos de conversa e apenas trazia emprestados os romances da Crónica Feminina, que o senhor preso coleccionava, impregnados do cheiro misterioso da cela.

Um dia, as portadas de madeira estavam fechadas, o senhor preso desaparecera. O pai disse-lhe que tinha sido condenado e estava agora numa grande prisão.

Celina ainda achava estranha aquela visão do seu amigo ladrão, porque se ele roubava Santos, era porque gostava de Santos, e era bom gostar de Santos, mas se o pai dizia e parecia que as pessoas estavam contentes…

O pai levou-a à cadeia, para desvendar o mistério. O Sr. Guarda, já velhote e bonacheirão, pegou numa grande chave em ferro e deu a volta na fechadura. A porta de madeira grossa, abriu-se sobre um pequeno número de escadas, que desceram, e logo o cheiro húmido seco e ferroso se colou nas narinas, um cheiro de cela fria e escura. Uma luminosidade acinzentada deixou perceber melhor o interior, a tarimba num canto, um pequeno lavatório no outro e uma mesa e uma cadeira, mais próximas da janela gradeada, que mal se viam lá de fora. E ninguém, sem cheiro de gente.


O mistério ficou lá, naquele cheiro que naqueles dias todos tinha feito parte da vida do seu amigo ladrão, que roubava Santos e que afinal não gostava de Santos. Celina não mais se sentou no beiral da janela a conversar, apenas harpeava pelas grades com os dedos, cativando o odor a ferro da prisão.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

com asas nos pés

a água fria sacudiu-lhe as memórias. Nos pés nasceram-lhe as asas perdidas, pequenos leques propulsores da viagem interrompida. E a água avançou um pouco mais empurrada pela lenta subida da maré, marejando-lhe as pernas e as coxas em suaves encostos, beijos de frescura fugidia, que foram abrindo a prata luzidia.
o sol brincava-lhe no olhar aquecendo a suave curva dorsal que ela foi imergindo sob as ondas até que o mar a envolveu e lhe sussurrou: além é o mundo...além é o mundo....
Alicia abriu os olhos e uma lágrima escorregou-lhe na face. O corpo pulsou agitado pelo bater das pequenas asas. Com um impulso elevou-se, o brilho da prata refulgindo nas suas longas e inquietas pernas, libertando miríades de gotículas de água e voou na direcção da brisa. As memórias sacudidas mordiam-lhe os sentidos e as certezas. Nem sabia porque voava, mais estranho ainda, como voava.
Tinha que encontrar Libério. Libério sabia mas ela não sabia como encontrar Libério.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

a sala de espera

uma sala de espera é mesmo o que diz que é, é uma sala de espera. O estranho é que para além da espera nunca temos a certeza do que nos espera na sala de espera. Talvez, por isso a espera na sala de espera seja uma pequena aventura emocional, que torna a espera na sala de espera uma história para ser contada. Nem que por vezes apenas consigamos contar: ouve lá, passei horas indecentes à espera de ser atendido!
Falta-nos só encontrar o que se passou nas horas indecentes passadas na espera da sala de espera.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O areal a amanhecer

o areal prolongava-se por dunas suaves carregadas de plantas verdes rasteiras e turgidas, que na primavera abriam flores lilases intensas e brancas perladas, num jogo de cores envolvente. A areia era docemente cálida e sedosa ganhando uma aspereza vivificante quando se aproximava das águas que a rodeavam, as do mar e as da ria.
Mais acima, num planalto dunar, pousava um casario disperso, onde a tradicional casa em madeira era já rodeada de um ou outro casarão urbano a roubar a graciosidade do conjunto. A igreja, quase orada, congregava os olhares e permitia um respirar de espiritualidade que acompanhava os pescadores na sua faina diária.
A manhã estava carregada de neblina. As gostas de água não choviam, colavam-se no corpo, frescas e húmidas provocando o eriçar dos poros e a procura de um abrigo breve, numa barraca de praia, acabada de montar. O mar soava, neste silêncio falante, de forma ondulada movimentando vagas mansas e espessas que se derramavam languidamente no areal, e a ria sussurrava em pequenos estalidos provocados pelo leve roçar de encosto e desencosto nas areias envolventes, balançando os barcos que aí repousavam. E, cheirava a sal, a maresia.
Algumas gaivotas, no voo matinal, rasgavam estes sons de silêncio, com uns pios agudos anunciadores da entrada das primeiras embarcações no mar. Empurrados pela leva de homens e rapazes necessários, o "amor de mãe", o "maria antónia" ou o "vai com Deus" entre outros, largavam-se à faina da pesca artesanal, quase à hora do sol nascer por entre a névoa da madrugada. Soluçavam no embate com as vagas mansas, borbulhando pequenos remoinhos de sonoridade eruptiva que logo de seguida eram abafados pelo splash dos quatro pares de remos que em sincronia absoluta se absorviam no marulhar das águas. E, aos poucos, voltava o silêncio de sons macios, a pequena brisa que antecipava os primeiros raios de sol, o marulhar do mar e da ria e um eco distante do mestre que na embarcação marcava o ritmo da remada.
Na areia, junto ao mar, passeavam-se gaivotas e pequenos pássaros deixando trilhos de três dedos que não conduziam a parte nenhuma e que as águas apagavam na sua lenta subida de maré.
Alguns "criich" destoaram, por estranhos na sinfonia que tocava, mas logo integraram o jogo melódico pelo restolhar de tecidos que se lançavam pela estrutura de madeira das barracas. Os banheiros feriam a uniformidade da areia arrastando volumosos e pesados sacos que cheios de panos riscados iam criar o casario dos banhistas permanentes. Tisnados das horas de sol constantes, com cabelos de louro palha, tão pouco frequentes no lugar, eram o primeiro indício da invasão que mais tarde acontecia.
De repente o silêncio, uma densa quebra da melodia soou por tão forte ser o silêncio, e o primeiro raio de sol despontou, em breves traços por entre a névoa. Suspendeu-se a vida em adoração à luz, e o breve e suspenso instante eclodiu em pios e grasnidos, num vendaval de bater de asas, numa vaga de forte reverberação, no ondear vibrante das embarcações da ria e em inspirações profundas e amplas. A sinfonia ecoou em "vibrante allegro" temperada pelas carícias hesitantes do sol que aquecia as gotas de água que não choviam e que agora secavam sobre a pele.
Os banheiros despiram as camisolas e amarraram-nas na cabeça, continuando no arranjo do casario riscado, cada um na sua fiada de barracas.
E o dia começou.
- Eh, Tóino está na hora de fumarmos um cigarrito.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

os rios da paixão

há rios que escorregam com picardia sobre as pedras roladas que foram esculpindo, em leitos baixos e límpidos, soluçando curtas gargalhadas cristalinas. São rios lavados, quase sem margens, que abrem pequenos regatos laterais, pequenos fios de água que buscam novos contornos regressando mais à frente à corrente saltitante.
há corpos que serpenteiam, meios nas águas, meios ao sol por estes meandros. Deslizam o ventre, antebraços e coxas por sobre as pedras e a areia grossa em voluptuosa dança. Erguem as pernas e os braços salpicando a corrente de gotas de água. Sacodem os ombros em alegre desvario e tombam a nuca e num repente a elevam trazendo um manto de diamantes aquíferos que se espalham em todas as direcções. Os risos soltam-se, vaporosos, os corpos rolam e deitam-se, costas sob a água abrindo-se às quentes picadas dos raios de sol, e os risos soltam-se apaixonados.
Uma vez, apaixonei-me assim por um rio...por lá desliza ainda o meu corpo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

o baile, um certo encanto, uma certa tragédia e uma certa sensualidade

não ser de lá tinha um certo encanto, uma certa tragédia e uma certa sensualidade. Era a ausência de história e por isso permitia todas as histórias e era também a improbabilidade do compromisso. Ficava então apenas o momento, a situação para ser vivida, num jogo de sensuais ausências.
O conjunto tocava "que viva espanha" e o salão do baile quase cuspia os corpos que por ali deambulavam em agitadas manobras contorcionistas de pulos e saltos, abafando a voz,que estava já um pouco cansada, do vocalista. Era a última noite do Carnaval. A colectividade, como todos os anos, fabricava a melhor animação das redondezas e, ainda que sendo uma pequena aldeia, tinha um corpo de foliões com fama por ali e arredores. Por isso a enchente nas noites de baile, com conjunto contratado, a tocar as mais mexidas misturando uma ou outra mais romântica, que estes bailes eram ainda para despertar a química e quiçá iniciar um namoro ansiado, ou despertar apenas arrebatados desejos.
Uma pequena parte do salão dispunha de mesas e cadeiras onde algumas familias e amigos passavam a noite entre bebidas, danças, larachas, de uma forma descontraída e confortável. A ladear as laterais duas filas de cadeiras onde se sentavam mães com filhas casadoiras à espera daquele pequeno gesto de sobrolho "a menina dança" para agitarem o coração, corarem e correrem para a pista, ou então darem valente tampa à espera do olhar especial. Aquelas noites eram também diferentes, permitiam mais liberdade, para além das danças entre mulheres, à espera de serem apartadas, as rodas, os comboios, os pulos e os saltos possibilitavam uma pequena mudança no "quem pede a quem" e a vivência dessa pequena transgressão era por vezes a libertinagem de uma vida.
No topo da sala estavam "eles" que com o correr da dança iam passando para o meio da pista,ultrapassado o nervoso inicial, bem visível pelo engolir em seco que ondeava as maças de adão presas em colarinhos de gravata ou laçarotes, também estes desapertados ou mesmo perdidos à medida que o calor dos corpos o exigia.
Sempre houve os mais ousados e, as mais ousadas também. Menos nas laterais, mais no meio da pista, passeando a vontade de misturar anseios. E por fim os mascarados.
Para além dos "desaparelhados" a pista era cruzada pelos casais, com mais ou menos anos, pelos noivos que se aconchegavam sempre, mesmo no intervalo das músicas, e pelos namorados que conforme a fase podiam ser já um par ou aparelhar por ali.
Nesse ano, fizera parte da comunidade, ainda que não sendo de lá, agrupara-se às "teenagers" da moda e para além do corso entrara de máscara no baile. Estar mascarada era uma vantagem, podia dançar sozinha,ou puxar para a pista qualquer presente, e não sendo de lá, não corria o risco de passar uma noite inteira sentada, a olhar. E assim o fez, inicialmente, mas a máscara incomodava, não deixava respirar pelo que teve que se retirar para a zona onde a familia convivia e lá se sentou com um suspiro antevendo uma noite por ali passada. Ia percorrendo com o olhar os pares que dançavam, sorrindo com os pedidos aceites ou as tampas tão graciosamente dadas, até que o seu olhar se cruzou com um leve levantar do sobrolho de um louro de bigode interessante.
-Para mim? Perguntou apenas com o arregalar dos olhos, seguido do apontar para si própria com o indicador, dada a incredibilidade da situação. É que ele era giro, talvez mesmo o mais giro, aparentando já uma certa maturidade, como é que estava sem par? pensava enquanto se dirigia para o moço o que, percebeu bem, despertou algumas invejas. - Olá, disse, não tenho muito jeito para dançar agarrada, não estou habituada.
- Não faz mal, respondeu, segue os meus passos, que vais conseguir. E sorrindo, segurou-lhe a mão e ajeitou-lhe o corpo no encosto ao seu e deslizaram com uns iniciais desacertos.
Dançaram toda a noite, as românticas e as mexidas, com mais ou menos aconchego, sem grandes conversas, os corpos suados. Aqui e ali umas interrupções com troca de par para não dar nas vistas, que lhe permitiram saborear uns segredos "ele tinha tido um namoro muito forte, com uma fulana muito bonita e tinham terminado há muito pouco tempo", "era um desejado, em bom partido e espantavam-se com rendição daquela noite".
E, terminou, com um "gostava de te ver outra vez" também por ela desejado.
Nunca aconteceu, nem era para acontecer. Por não ser de lá tinha um certo encanto, uma certa tragédia e uma certa sensualidade. Ficou nos corpos suados e nos aconchegos dançados da noite.
Ele entretanto casou-se com a fulana gira, com quem tinha uma história.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Sindala e o anel de Benedita

tinha um anel de ouro, com uma pequena pedra verde, que não era uma safira, mas lhe dava a magia de poder presumir-se algo encantado e, daí apenas poder ser usado por ela, Sindala, intrépida amazona, escondida no pequeno corpo de Benedita Alva, criança inquieta e sonhadora, desejosa de vir um dia a ser peixeira, pelo prazer de pegar nas notas com as mãos carregadas de pedras de sal.
Sindala acautelava-se na ousadia de se mostrar pela confusa vocação para o peixe, de Benedita, e a completa ausência de gosto pelos cavalos. Partilhavam o fascinio pelas aventuras de rua, por acções ousadas e um pouco loucas, como caminhar no beiral dos telhados, e por idas ao cinema para ver filmes de adultos.
Sindala pretendia cativar Benedita, resgatar aquela meninice, e permanecer por mais anos ainda amazona sem idade, lá no seu mundo de cavalos e duas luas. Aí surgira o anel, de safira enganadora, rodeado de dois zicórnios, brilhantes, que Benedita recebera e que a fazia sonhar-se princesa. Princesa e Maga!
A casa de Benedita era ridiculamente grande. Bem no meio do salão de entrada, sentia-se pequenina como a formiga, olhando a escadaria que em seis lanços subia por dois pisos, tornando estranhamente comprida a medida do chão ao alto do tecto. Lá bem em cima no topo da escada, quase como se fosse outro mundo, com gente diferente, Sindala ia cohabitando com Benedita e, com ela, descendo cada vez mais a escada, ia brincando de faz de conta. Bordejando a casa, o quintal em bico, tinha uma luxuriante vegetação de couves, ervilhas e favas. Tinha ainda uns cantos da batatas, alhos e cebolas, tudo muito bem arrumado, com pequenos regos de passagem assemelhando-se a um jardim sem flores. Bem na ponta do bico, estava a árvore, grande e rugosa, já idosa, com raízes que tinham retirado algumas das pedras do muro envolvente. Por ali se passeavam imensas sardaniscas ciosas da hora do sol. Já Benedita sentava-se nalguma das pedras soltas, de saia escocesa, vermelha riscada, a ondear à breve aragem do pôr do sol e sob aquele luzir laranja dourado volteava no dedo o seu anel de safira enganada que chispava breves brilhos dos transparentes zicórnios, esperando que numa das voltas fosse princesa. Mas Sindala não arriscava, aquela história do peixe deixava-a pouco convencida e por outro lado cada vez mais gostava de brincar de Benedita, e de poder entreter-se com o mastigar doce da casca das ervilhas. Sindala já não queria ser eterna amazona, mas Benedita queria ainda ser princesa.
Naquele dia..

sábado, 4 de junho de 2011

O prado atrás do milheiral

A escola ficava ali, quase a dois passos. Não fosse o milheiral e o pequeno prado que o antecedia, vedados por um baixo murete de pedra irregular que os separava da estrada que cruzava a vila, era esse o caminho ideal para lá chegar.E, claro, havia a lama, que naqueles tempos de chuva imensa tornava impraticável o uso de calçado compatível para usar também na escola, especialmente para a professora. É claro que isto de passar o milheiral comportava riscos, bem mais desagradáveis do que os canículos de lama seca que se iam largando pelo páteo e às vezes pelo soalho da escola, provocando a ira da contínua de longa data. A canalha atrevia-se menos ou então cuidava de um percurso que rodeava a plantação evitando os estragos na produção e mais que tudo o bem provável "enxerto de pancada" que o pai ou a mãe haveriam de desencadear por tal comportamento.
A verdade é que a professora podia, de uma forma diferente. Era a professora, era estimada e tinha pedido ao dono do milheiral para por lá passar, pelo que o problema era tão só a lama. Comprou então umas galochas, pretas e sem cano, que calçava já com os sapatos e passou a atravessar, quase sempre, por entre a cana do milho aquele campo verdejante.
Não houve melhor dia, e esses eram sempre os melhores, que o dia em que a menina, puxada pela mão doce da professora, atravessou aquela floresta imaginária e tão misteriosa. O milho era alto e denso, tão alto que em alguma zonas nem o cabelo da professora se via. Tão alto, que para a menina, quase nem havia céu. Puxada neste passeio matinal, ouvia o restolhar das folhas que se entrechocavam pela sua passagem, olhava por entre os pequenos espaços das hastes de milho, imaginando o que estaria para além, e desejando quase a medo que talvez não fosse má ideia perderem o caminho e, em vez da escola, encontrarem um prado de flores amarelas atravessado por regatos cristalinos.... A mãe da menina, professora estimada, não se perdeu, nunca, pelo que a menina aprendeu o caminho, sem ver por sobre o cimo do milho e, sózinha, permitiu-se algumas vezes navegar neste verde mar, envolvendo as botas em lama mais ou menos ensopada, mais ou menos empedrada, conforme a chuva ali caía, e chegar sempre à escola. Esqueceu-se do prado e dos regatos, por estar atenta ao ligeiro curvar da haste que marcava a rota certa, até ao colher do milho e ao corte da cana.
Um dia não estava lá, o milheiral. Estava apenas uma cama de canas que alisava o espaço e até deixava ver o topo caiado da escola e, que pena, não parecia mesmo existir o mundo das flores.
Trepou o murete no sítio da falha de pedras, e com os olhos postos no branco longínquo pôs pés ao caminho. Nesse saltitar por sobre as canas buscando o melhor trajecto desatentou-se da terra até que sentiu uma suave cócega no tornozelo e olhou.
Estava lá, o prado de flores amarelas, estava lá. Ainda ontem não estava, mas ali se estendia, quase até ao caminho que com poldras levava as crianças à escola. O mais extraordinário é que as flores eram todas, mesmo todas, amarelas. Espécie de cachos sobre os quais a gravidade não actuava, como cálices de pétalas pequenas, sobre uma rama atapetada de folhas verdes...o prado mais lindo que a menina jamais vira e era preciso levar uma prova, um raminho de flores. Os regatos logo se procurariam, porque a novidade na escola levaria a que todos fossem em sua busca.
Que agitação levava a menina, o coração batia, as faces estavam rosadas, na mão bem apertado o raminho de flores amarelas que levaria sua mãe, professora estimada a orgulhar-se tanto dela...
-Mãe, afinal estava lá, o prado! Vês, estão aqui as flores são para ti. E o brilho no olho da professora estimada, sua mãe, e o sorriso que lhe aflorou os lábios foi logo interrompido pela boa/cruel contínua: Oh! minha menina então apanhou a flor do tremoço? Essa, flor não se apanha, precisamos do tremoço para dar de comer aos animais.
- Mas, são lindas, disse a menina com o lábio a tremer e a lágrima no canto do olho, e são tantas, são do prado, são para dar à mãe e irmos procurar os regatos, acrescentou ainda com a leve esperança de um sorriso aberto da senhora contínua.
- Não, minha menina, estas flores não se apanham, mas como não sabias não faz mal, não é senhora professora? Eu até vou pô-las em água.
E a professora estimada, sua mãe, abanou a cabeça, confirmando e puxou com a sua doce mão a menina encostando-a ao regaço e disse: Não faz mal filha, havemos de o encontrar, o teu prado. E a menina soluçou olhando o ramo que a contínua zelosamente tinha colocado num copo com água.
Hoje em dia a menina sabe que o tremoço começa numa flor, linda, e ainda anda à procura do prado.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

a galinha atropelada

havia uma galinha, sem nome, que endoidava quando a menina chegava e decidia carregá-la pela aldeia. Extraordinariamente a menina sabia que era aquela a galinha adorada, no meio de todas as outras que vagueavam pelas ruelas e largos e que misteriosamente ao fim do dia sabiam para que galinheiro se dirigir. Nem todas andavam por aquelas ruas, abraçadas por hortas onde bicavam aqui e ali para depressa regressarem ao espaço do casario e por ali se passearem agitando as asas e rodando um rabo empinado, oferecendo uma vaga vaidade de quem se mostra no seu esplendor. Era aí que a menina, de repente, surgia, desembocando em corrida galgada de uma travessa, de braços abertos para ir encurralando aquela, que era castanha mesclada de amarelos muitos breves e um ou outro traço sobre o preto, tão igual a tantas outras, mas que fugia endoidada, sem rumo. Batia as asas e não voava, cacarejava, corria, levantava pó e soltava penas, mas acabava sempre por ser aparada nos braços da menina que num sorriso desdentado, a elevava e pousava na cabeça para se passear tal qual a galinha o fizera pouco antes...e o que esta se equilibrava para não cair!
Era estranho mas tão provocatoriamente indecente, dar colo a um bicho que se comia e, pior ainda, agitar daquela maneira a galinhada.
Sabiam quem eram, uma e outra, quase sem querer amavam-se e temiam-se. A menina temia não conseguir alcançá-la, a galinha temia passar pelo passeio instável no cocoruto da criança...Por isso uma fugia para que a outra a agarrasse.
Houve então um ano em que a galinha já lá não estava e a verdade é que não tinha sido comida. Não, nada disso, tinha sido atropelada e, apesar da dor, "ainda bem" pensou a menina que pode passar a detestar o condutor!