terça-feira, 29 de março de 2016

o lugar dos ventos


não havia bocadinho, nem instante mais precioso do que o da lágrima sorrateira que lhe iluminava o olhar quando  se lhe derramava o coração.
sentou-se no lugar dos ventos. os montes ondulavam no horizonte como vagas de um mar imenso. corria por entre eles uma névoa leve que humedecia os vales e esbatia os verdes no azul do horizonte.
tocou-lhe o rosto a brisa de oeste e revoltearam-se-lhe os cabelos com os ventos de leste. agitaram-se as copas das raras árvores e os montes pintaram-se de um breve lilás.
estendeu-se na pedra quente e espreitou as águas escuras e densas  a serpentear no fundo das arribas. Sabia-os por ali, aos gigantes de outros tempos. falavam nos espaços de silêncio das aves grandes que ali planavam, ali no princípio da criação.
dançaram tocadas pela brisa as pétalas das flores lilases logo abaixo do lugar dos ventos. a gigantesca tartaruga de pedra ajeitou a carapaça rugosa e o fazedor de tempo caminhou até ela. olharam juntos as águas escuras e densas, ouviram os silêncios e o som das asas do voo das aves grandes.
Tocou-lhe as pálpebras, o fazedor de tempo, as palmas frescas no olhar quente e logo lhe segurou o rosto entre as mãos. aproximou-lhe os lábios suavemente, passeou-os pelos seus e deu-lhe a alma, um pedacinho de silêncio do lugar dos ventos.
Existiu, no princípio da criação. iluminou-lhe o olhar uma lágrima sorrateira que se perdeu nas águas densas e escuras, por onde o seu coração se derramou.
- Bom dia Benedita, disse-lhe o Sol.

domingo, 20 de março de 2016

amar numa tela "(So, paint me)

"so, paint me. I want to be a painting, the most beautiful painting. Than you can toutch me with your eyes and I can believe I am alive."

sentiu-lhe o olhar em lentos e suaves  toques no recanto do seu pescoço, pela linha do seio, no redondo da nádega rematado em suave declive ao longo da coxa. estremeceu, sentiu-lhe quente o olhar na dobra ligeiramente flectida do joelho. deslizou a perna e o corpo alongou-se como se gata fosse. agitaram-se as pétalas das primeiras flores da cedia Primavera e o pé descaiu-lhe ligeiramente para além da tela.
acariciou-lhe gentil o tornozelo e aconchegou-lho por sobre o verde do prado florido. agitaram-se em murmúrio as pétalas brancas e as finas hastes das ervas verdes. rodou o rosto por sobre o ombro, sorriu-lhe e estendeu, lânguida, o corpo por sobre o prado, os braços soltos para além da tela.
tocou-lhe os dedos, soprou-lhe um beijo e ajeitou-lhe os braços sob a face e sobre os seios. deixou-lhe o sorriso, o olhar profundo e apaixonado, a linha doce do ventre semicerrada pelo aconchego das pernas.
olhou-lhe os lábios semi-abertos. diziam-lhe ainda:"sabes o que me apetecia? apetecia-me ser uma pintura, no mais belo quadro do mundo. depois tu olhavas-me e fazias-me sentir viva para sempre".

poisou o pincel, deitou-se junto a ela, fora da tela, rodeou-a com os braços e segredou-lhe: "guardei o meu olhar no teu corpo... so you know, you kept my eyes in your body. Now we`re in love forever".

quinta-feira, 3 de março de 2016

o lugar mais perigoso do mundo

às vezes os sons permaneciam. Muitos sons. Chegavam a destempo, uns sobre os outros, como se quisessem ocultar de onde vinham. Permaneciam e a vida parecia-lhe uma cacofonia.
Passou o pente pelos cabelos, quase curtos, e amarrou-lhes o lenço colorido.
- "O lugar mais perigoso do mundo é o pensamento" tinha-lhe dito Basil ao chegar a Tempo.
Tecia por isso mantas de memórias. Arrumava-as por cores e esculpia-as em pontos de laçadas mais ou menos elaboradas. Fazia com que o pensamento, por mais perigoso que fosse, pudesse ser tocado.
Sorriu e pegou na manta que cerzira, a sua. "O lugar mais belo do mundo é o pensamento" disse-lhe o toque da manta.

quarta-feira, 2 de março de 2016

consertou o tempo


entraram na madrugada húmida da floresta. aqui e ali o sol brincava por entre a rama e acariciava de mansinho folhas e musgos e algumas bagas que escapavam à sombra das copas das grandes árvores. A névoa dissipava-se numa leve dança erótica com as heras que se enroscavam nos troncos rugosos e esguios. continuaram, de mãos dadas, os pés descalços por sobre a calidez da terra guardada sob as folhas soltas.
tinham-se perdido no tempo das carícias ausentes no desencontro das palavras em que se desejavam. foram semeando ternuras e feitiços numa alcova vazia numa floresta encantada e fecharam as páginas de um livro que abriam sempre que o destino os encontrava.

caminharam de mãos dadas, por entre as árvores grandes, a terra a exalar-se em calor, o sol a iluminar o caminho. a alcova esperava-os cheia de ternuras e feitiços por acontecer e a floresta encantou-se de cores. deitaram-se,  prendeu-lhe os cabelos com o arco-íris e consertou o tempo.
- Amo-te, disse.