segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

a cor dos dias cinzentos

caminho numa viela estreita. ando à procura da cor dos dias cinzentos.
sei que ali mais atrás me sentei ao quente e estava escuro na cozinha de paredes lambidas pelo fumo da lareira térrea. Bruxuleava a luz tímida de uma candeia que iluminava sombras. Cheirava ao caldo da panela de ferro à espera da ceia.
na viela o dia continua cinzento, quase branco. cai do céu a cor do frio, húmido.
Cheira a fumo. No ar branco chia o som da lenha que as casas queimam. agarram-se-lhe histórias e sorrisos, choros e segredos.
Nesta outra cozinha de paredes lambidas pelo fumo havia o cheiro do café quente. petisquei no naco de pão com azeitonas ao som de histórias de princesas mouras e tesouros encantados. No tecto a lâmpada tremeluzia um pálido amarelo que fazia permanecer nas sombras a expressão dos rostos como se anoitecesse mais cedo dentro de casa.
a viela ainda é estreita e sei que gosto dos dias cinzentos. É quando cai do céu o silêncio e se ouvem as almas das gentes.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

num acaso de terra

- não sei se tenho conterrâneos. Nasci num acaso de terra cercado de água por todos os lados. Chamam-lhe ilha. Algures sulquei (porque me lavaram) os mares com destino ao continente. dentro de mim a ilha, sei-o hoje.
tenho vivido rodeada de água. Conterrâneos? talvez outras ilhas que como eu sulcaram mares.
Sinto-me bem neste território endémico mas passo o tempo num desnaturado desejo de encontrar conterrâneos.
em cada encontro, acordo em momentos de mim, pequenos universos ancorados nas ilhas da minha história. Julgo que nasci para fazer acontecer os contos das brumas, dos momentos de viagem, quando o tempo fora de nós passa mais depressa. é aí que eu encontro os conterrâneos, meus e dos outros. Nem sempre são gente, às vezes são equívocos, caminhos errados e portas sem saída.....
Balbuína suspirou longamente.
- Vês princesa? Acordei aqui para te encontrar, neste acaso de terra que desabrocha em ervilhas de cheiro. amanhã viajamos mais depressa que o tempo de fora, quando voltarmos só nós mudámos.
Lia tinha os olhos tão abertos quanto a boca, e assim permaneceu olhando estpefacta para Balbuína que entretanto lhe pegou na mão e disse: - Vem, vamos, a sopa já ferve e está na hora de aquecermos o estômago. Gosto da tua ilha princesinha....
Lia sorriu, encolheu os ombros e cantarolou:
 "andava um passarinho a voar no meu jardim, 
fui lá brincar com o sol e ele cantou p´ra mim 
piupiu piupiupiupiu piupiu piupiu piupiu"
 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

campo selvagem

quero-te  perto da minha boca
do meu corpo inquieto
sou como amoras
fruto silvestre
vermelho forte
que o sol beijou, agreste
acordo nua numa alvorada
que o teu corpo amou
sonho-me louca
campo selvagem
onde me tocas
e o tempo pára
quando me amas

tecelã de memórias

era de fino algodão, seguramente lençol de alcova nupcial. sentia-lhe o toque mole e doce, e um inebriante fresco do corar ao sol. Encontrou-o lá, por entre histórias de emoções. Cheirou-o por entre os dedos, suado e quente, o odor a pinho seco.
Desejou-o seu. Sentiu-o como se estivesse ausente: um intenso calor por entre as coxas, um sopro ofegante sobre as espáduas e a volúpia de toques sobre o seu ventre.
Alícia dormia, na sombra dos sonhos, por entre as vagas dos tecidos em que se deitava.
Acariciava as texturas num ritmo cadenciado, entre o polegar e o indicador, em busca das almas por ali habitadas.
Encontrou-o lá e amarrou-se-lhe o coração.
Balbuína sorriu ao ver a agitação do sono de Alícia. A aprendiza de tecelã de memórias fazia a trama da primeira manta.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

manhãs brandas

gosto de acordar quando o sol se enxuga na madeira seca ou a chuva pinga gotas grossas e quentes.
são manhãs brandas e o meu corpo geme ainda o teu.
nas manhãs brandas as pegas gralham no topo das árvores grandes e há melros que bicam  sementes e passeiam as penas nos  muros dos jardins.
ontem, na madeira seca os meus pés dançaram com os teus, as tuas pernas roçaram-se pelas minhas e era noite.
há uma suavidade lilás nas manhãs brandas, acontece no fim de noites quentes e ferozes onde as gralhas e os melros cantam em algazarra louca.
gosto quando me cantas e me bicas as orelhas. Sempre nas manhãs brandas.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

eterno instante

partia hoje e comigo viajavas.
um instante feito do sempre do momento da partida.
Não regressava.
Regressar era desencontrar-me de ti.
então não partia.
é que queria viajar contigo para todo o sempre.

encostei a testa no vidro frio.
o teu corpo estava no meu, tépido e desalinhado.
Viajavas comigo
Sempre que as tuas mãos dançavam carícias na minha pele.
naquele instante
o teu olhar perdeu-se no meu. nem eu parti, nem  tu ficaste.


lá fora, depois do vidro
o momento da partida. deste-me a mão e bailamos.
o sol pôs-se.
Estamos na barca, a viagem do eterno instante
Não regresso.
Regressar era perder-te de mim. Fica comigo, lá fora, depois do vidro.


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

a primeira chuva


tenho o corpo sedento como a terra seca. O tempo quente amadurou-me, rosou-me da cor do sol.
 emaranhei-me nos campos. andei à fruta sob copas densas, os pés nas ervas secas e logo envoltos em terra solta.
Enlaças-me, presa nas silvas de um campo de amoras. Caem gotas grossas de Setembro. Tombamos sob as copas densas e o cheiro da terra molhada cola-se no meu corpo e no teu.
sabes-me à primeira chuva.

sábado, 4 de outubro de 2014

Pari-te


Pari-te.
De novo te amo.
aprendo-te. quando te toco, te sinto, te olho
encosto-te. soas a mel
Tenho o peito cheio e olhas-me, pássaro em voo perdido.
troco contigo os sons da nossa história junto ao mar, à luz do luar
os pés soltos na areia pura.
abraço-te minha filha e toco contigo a lua
e voas 

A mim me encanta amar-te. 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

a hora em que se procuram as sombras

Era a hora em que se procuram as sombras. não há nos caminhos vivalma. aquietam-se os sons dos bichos. no casario batem treze badaladas
o sol ia alto e os lameiros  pejavam-se de erva gretada. até as pernas se atiçavam daquele rocegar seco na pele suada.
Logo o viu, mal chegada à sombra da laje grande do moinho do castelo. Olhou-lhe o corpo e o jeito, a humidade seca na camisa sobre as espáduas. quis sentir-lhe as mãos no ardor que as ervas lhe deixaram sobre as pernas.
apertou-se-lhe. engajou-o entre as pernas, de surpresa, que os pés descalços não o tinham alertado.
"Maria, sua louca" disse-lhe com voz quente e suada, as mãos já enrededas no atiçado das pernas.
Rolaram, sobre a laje quente, o latejar dos corpos.
Acordou com a décima quinta badalada, e o som de distantes latidos.  Tinha o corpo fresco, adormecido ele nela, sem ardores. Retirou-se-lhe de debaixo, desceu a laje e molhou o corpo no rio.
Era a hora de se procurar o sol. os pássaros deambulavam já pelos céus e não tardava os campos  haviam de ter quem os cuidasse.
Ele ficou sentado na laje, a humidade seca na camisa sobre as espáduas, até à hora em que se procuram as sombras.

domingo, 31 de agosto de 2014

si belle

ah, oui! elle va belle.
C`est comme le vent.
un petit peut de dance
avec le temp
et elle va belle,
un petit oiseau
dans le ciel bleu
et moi je suis elle, si belle.
une rose perdue
oui, mon amour
dans le vent de ce jour

a brisa, breve

(não sei se há vazios.)
um dia viajou no vazio onde estava tudo.
(Acontece que às vezes as estrelas e os planetas preenchem tudo o que é espaço.)
então a pedra disse-lhe "toca-me" e ela tocou
(Sei que há imensidões que parecem vazias por estarem tão cheias.)
nasceu uma brisa, breve.
(aguardo que nasça esse universo.)

a flor ondulou ao sabor da aragem e contou-lhe das cores. 
(Benedita atracava da viagem )

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

a folha azxul!

era uma vez uma folha.
- azxul! disse Lia enquanto colocava o cubo na torre a que chamava castelo.
- Tens doixs anosx, tens vóvó? a Lia tem doixs. e colocou outro cubo na torre.
- Pois tenho! e dei uma gargalhada.
Lia deu-me a mão e entramos no castelo. Corremos para o baloiço pendurado na árvore de folhas azuis.
- Azxul! que lindo azxul! dissemos quando a folha caiu e a apanhámos.
quando saimos do castelo Lia tinha uma folha azxul no cabelo.


sexta-feira, 8 de agosto de 2014

esvoaçando por aí

havia um pedacinho de mim naquele estendal.
é que um dia ao acordar havia um cinzento naquele pedacinho de mim e, mesmo depois de sorrir ao sol da varanda, ficou ali, a parecer uma nódoa triste. Decidi pois sair sem aquele pedacinho de mim, porque era hora de o lavar, esfregar, pôr a corar ao sol.
Depois, bem enxaguado pelas águas soltas da ribeira de baixo, havia que o estender lá no prado da encosta da Lage e deixá-lo secar, batido pelo vento e aquecido pelo sol que teimava em esconder-se nas nuvens navegantes.
era tão bom ver aquele pedacinho de mim, agitar-se loucamente sob a corda do estendal, que entre o sair e o voltar daquele sítio onde se ganham nódoas, sentava-me no murete que envolvia o prado e olhava -o, embevecida com a mirabolante dança do vento e o pedacinho de mim.
Não me pareceu bem ficar com aquele pedacinho de mim quando o tirei do estendal, decidi então deixá-lo escapar-se por sobre as silvas e as ervas, esvoaçando ao correr da brisa.
Gosto de ter um pedacinho de mim esvoaçando por aí.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

às vezes

às vezes o sol muda tudo
às vezes o sol muda nada

às vezes a Terra não gira
às vezes a Terra não pára

às vezes eu quero sorrir
às vezes eu quero chorar

às vezes o vento é azul 
às vezes azul é o vento

às vezes eu voo ao luar
às vezes a lua me chama

às vezes eu quero o teu corpo
às vezes o teu corpo me ama

às vezes, às vezes, às vezes....

sábado, 19 de julho de 2014

encontra-me...

desceu o olhar pela parede. Descobriu-lhe uma ruga. Passou-lhe a palma da mão, na ruga. Sentiu-lhe o relevo, o bocadinho de despercebido na prega. Achou que podia por ali escapar-se, entrar nos caminhos que o tempo esculpia e foi-se.
Sombra seguiu-a. o caminho era estreito e sinuoso, ladeado por frondosos arbustos, sem grandes sinais de movimento. Apenas as patas de Sombra, se decalcavam na terra mole. Chegou-lhe o som do vento, ir-se-ia nele. Sombra seguiu-a.
"amo-te, pensava, por isso encontra-me - desejava", e afagava o pelo sedoso de Sombra. O vento revolvia-lhe os cabelos, passeava-lhe sonhos pelo rosto, esgueirava-se-lhe por entre as pernas e lambia-lhe o ventre.
Deitou-se na erva, encostou-se-lhe no peito e adormeceu.
Acordou. As rugas da parede sorriram-lhe. ele envolveu-lhe o corpo com os braços e beijou-lhe o ombro.
Sombra ronronava aos pés da cama.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

escuras são as manhãs

estranhos eram os dias. Não se levantava o sol, apenas amanhecia a escuridão. na rua soava a frenética passagem dos que se não viam mas que estavam.
O metro zumbia o cheiro do metal e sufocava o ar de calor seco. havia os adormecidos, os ausentes e talvez os que sonhavam. Apertavam-lhe o corpo nas manhãs que amanheciam escuras. Não se fazia dali e qaundo passava a paragem das Sete Colinas entrava no cartaz do próximo musical de onde saía quando chegava ao destino de todos os dias. Pegava no copo de café quente e caminhava, em passo rápido, até ao sítio atrás do balcão onde reinaria por um dia e outro e outro....
havia um pranto no fim daquela janela. Aconchegou-se nela, naquela noite primeira que queria luz de luar. Cerrou-lhe as mãos frias nas suas palmas quentes e respirou com ela a vida.
Virou o rosto e sonolenta disse " um beijinho...". Enroscou-se e adormeceu. Havia uma manhã clara desenhada no horizonte.


terça-feira, 8 de julho de 2014

oh my lord

oh my lord i`ll cry
oh my lord i`ll die
and i`ll be
all around
you tonight
if you stay  i will grow
and i`ll go faraway
and then you will be just
my goodbye
then one day
i will trust
at the time
to come back
and i hope that i find you
on my way
then we dance at the valley
and you`ll kiss all my body
and we will be all the stars
over the sky

oh my lord i`ll cry
oh my lord i`ll die
oh my lord i will be
with you tonight


segunda-feira, 30 de junho de 2014

no topo das sentinelas

suga-me a boca, a minha sede sacia-se com a tua.
a pele transpira o calor que o teu corpo cola no meu e os meus seios anseiam pelo teu toque. é sempre assim nas madrugadas das terras altas. Trancas-me as coxas, sussurras-me que o sol brinca com as curvas das montanhas e escorregas os teus dedos no redondo das minhas ancas.
Estou no castelo no topo das sentinelas. Abarcam o mundo e os cercos que os medos nos fazem. Os vales confundem-se com as ravinas do teu corpo mas sei-me segura quando me afogas em ternura.
Às vezes partes, tens batalhas bem para além das curvas do horizonte, dizem até que te atreves no mar, e que as sereias te vão enfeitiçar...
Cresce-me a sede na torre das terras altas. Além, vislumbram-te as sentinelas, regressas.
a minha boca sacia-se com a tua.

domingo, 29 de junho de 2014

Inebrio-te de cheiros

às vezes a noite fica límpida. É como se o frio da escuridão alegrasse a visão do que não se vê. As estrelas tornam-se azuis e lampejam fios prateados por onde escorrega o pó de estrelas.
nessas noites acontecem desejos que se desenham em pegadas no areal, bem junto ao marulhar das águas.
adormeço no pó de estrelas. Acordo. estou nas pétalas da flor que a manhã singela desabrochou. O sol aquece a névoa matinal e os teus braços envolvem-me. Inebrio-te de cheiros.
às vezes a manhã fica quente. É como se o calor da claridade irrompesse o universo de paixão.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Samil, a felina

as saudades faziam-lhe comichão, naquele sítio em que a respiração se misturava com o suspirar.
Suspirou e olhou para as mãos. Sentia-lhe ainda o toque, a respiração quente sobre o seu ventre. Aninhou-se sobre as almofadas do cadeirão grande. O sol estava no fio do horizonte e rasgava os céus de laranja e rosa forte. Samil lambeu-lhe os dedos, saltou para junto dos seus  cabelos e esfregou-lhe o focinho cor-de-rosa no nariz.
"-Samil",-disse-lhe Balbuína lamuriosa,- " ele vai esquecer-me.."
A felina ronronou, espreguiçou o corpo e olhando-a bem de dentro da fenda preta dos seus olhos cantarolou uma poesia enrolada:

"- foi ele cativo do teu amor,
o amargor da partida no olhar
leva o teu sabor na alma
e dos Deuses a missão dada
que é de Tempo resgatar
acredita senhora minha
que naquele mar imenso

no teu suspiro vai regressar"

Balbuína sorriu.
" Samil, disse, és a gata mais doce e sedutora destas terras. Aqueceste-me o coração. Mas temo que sejam tantas as provações que mesmo que me não esqueça, possa não conseguir voltar!"
"- Navega ele no mar da saudade, minha senhora das mantas. É feito dos teus suspiros, para que ele saiba voltar. Assim ele te sussurrou no leito, por isso sempre deves suspirar".
Balbuína olhou o fio do horizonte. O Sol latejava as cores do fim do dia. Suspirou, as saudades faziam-lhe comichão naquele sítio. Sentiu-lhe a respiração quente sobre o ventre. Voltaria, sim.
Samil enroscou-se no seu pescoço e adormeceu.

sábado, 21 de junho de 2014

a mulher que ia à fonte

naquele tempo não havia melhor actividade social do que ir à bica. Benedita ficava logo agitada quando via a Maria do Carmo a chegar e a agarrar o vasilhame para ir à fonte.
A Maria do Carmo era a mulher, que na aldeia, ia à fonte.
Benedita acreditava que ela era um cântaro que se tinha transformado em pessoa, tal era a parecença física. Não fossem os pêlos que tinha sobre os beiços e nas pernas e a semelhança era perfeita. Comprida, maior que os homens da terra, usava um saco de pontas ajustadas, que arrumava sobre os cabelos apanhados num toutiço, de forma a proteger-se dos salpicos da água. Essa capa ensarapilhada caía-lhe sobre as ancas fazendo-lhe um bojo lateral no corpo, tal qual os cântaros. Dali pendia uma saia sem forma que lha caía a direito sobre as pernas altas tapando-as quase até ao meio da canela. Nesse intervalo que ia até `ponta das meias que desfaleciam sobre os pés saltavam uns pelos fartos e pretos que a tornavam diferente do sedoso brilho de latão das vasilhas que todos os dias transportava acima e abaixo para casa dos seus clientes. Era seca de carnes e o pescoço alto encimado por um rosto míudo,  de onde espantava um sorriso quase infantil, parecia a boca das bilhas. Levava sempre três cântaros: o maior assente na rodilha que punha à cabeça e os outros cada um em cada mão, fazendo um jogo de equilíbrio que criava uma constante ondulação entre o corpo e a cabeça como se uma cobra ali se ondulasse.
Benedita tinha uma rodilha das que se compravam nas lojas, já feita, mas a Maria do Carmo tinha-lhe ensinado a fazê-las dum pedaço de pano, que "essas é que eram boas" dizia ela, para se ajeitar o cântaro ao corpo. E lá ia, calçada abaixo até á bica, cantarinha na mão, que elas sem lastro desequilibravam-se mais depressa, pés a pular no empedrado, e o corpo a imitar o jeito ondulante do pescoço da aguadeira. Chegadas à bica havia que esperar a vez, os cântaros eram muitos e na espera trocavam-se as novidades, contavam-se segredos e desvendavam-se intimidades, que nas aldeias quase todos conheciam.
A Maria do Carmo não era nem de muitas, nem para muitas conversas, tinha uma vida exposta. todas lhe sabiam dos pais dos filhos e deles até se apiedavam. Por isso ali ficava postada, pernas meio abertas, braços cruzados à espera da sua vez, bem amada pelo mulherio da fonte.
Enchidos os cântaros lá seguia ladeira acima, corpo sem formas mas em equilibrio perfeito.
Benedita nem sempre voltava com ela. Por vezes ficava na galhofa com as garotas que iam já a buscar água e que carregavam  as bilhas em baloiço exótico, ainda um braço a amparar, invejando-lhes a quase perfeição.
Quando voltava sentia-lhe uma harmonia intensa como se a fonte fosse ela. Compenetrava-se então em carregar a sua cantarinha, mão sempre na asa que o jeito de pescoço parecia querer atirá-la ao chão e quase, quase conseguia breves segundos em que o vaso ondulava conforme o corpo.
"- Não s`apreocupe menina, c`o tempo vai a conseguir" dizia-lhe a Maria do Carmo.
Numca conseguiu, nunca como ela. A fonte era ela.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

amou-o, do outro lado

estava do outro lado.
encostado no gradeamento soltava palavras por sobre olhares sequiosos.
Caía-lhe sobre a testa uma mecha de cabelo revolto, tal qual a forma ardente como jogava o corpo, naquele palco improvisado.
"Tinham corrido rumores de que os senhores lhes iam tomar os filhos e quando o arauto o anunciou, de forma clara na praça da vila, ecoaram em lamento profundo. Tempo esvaía-se em dor, as terras começaram a ficar cinzentas e o Sol passou a ter uma cortina de névoa, eterna. Esqueceram-se os sorrisos e os sons eram ecos por entre as casas.
Quando ele chegou, espantaram-se. Tinha um brilho no olhar, um sorriso tão grande e falava palavras fortes que magoavam o ar. Quase o temeram porque se tinham esquecido dos sons"
E ele encostou-se ao gradeamento, despertou vontades quando falou, e no meio da praça as gentes decidiram que era tempo de pintar de novo as cores.
Olhou-a. estava do outro lado, amando-o.
Seguiu com as gentes, a pintar o mundo. Sindala foi desenhar a fantasia.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Enlevo

enleia-me, meu bem
acontece-me de madrugada
suspiro eu, meu bem,
em ecos de manhãs claras.
anoitece, meu bem
guarda-me na tua alma
e adormece, meu bem
comigo na flor deitada.
segreda-me, meu bem,
das pétalas de seiva amarga:
"- eterna amada..."
meu bem enleva-me.

terça-feira, 3 de junho de 2014

semeou-a de carícias


desenhou-se sob o umbral da porta.
não se soubera ausente apenas tinha dobrado a esquina do fundo da viela. Ainda levava no corpo os sussurros da paixão, toques lânguidos que o dançar das ancas soltava ao caminhar.
Roçara-lhe o rosto um  repentino tufo lilás, de uma jacaranda no topo da grande alameda, quando a esquina dobrou. depois dançou caminhos de toques lânguidos à procura das mãos que a tocaram.
quando o olhou, de sob o umbral da porta, semeou-o de carícias, sorriu-lhe de dentro da sombra desenhada e dançou as ancas por entre o toque das suas mãos.
semeou-a de carícias, ele.

sábado, 26 de abril de 2014

o carrossel e o algodão doce


sabia-lhe a espuma, derretia-se em suco doce na boca e era fofo como o algodão.
Caminhava empertigada nos carreiros empoeirados da romaria, pau de algodão doce, branco como a neve, bem seguro na sua mão de onde ia esfiapando nuvens de açúcar que desapareciam por entre os seus lábios.
- olá! disse-lhe o garoto fixando os olhos castanho mel no seu algodão
- Olá! disse-lhe Benedita, e continuou o seu caminho saltitando ao som dos carrosséis. Num repente parou,  rodopiou e disse ao garoto de olhar espantado: - Queres? e estendeu-lhe uma rama bem aviada de algodão. É doce, sabes?! e derrete-se devagarinho na boca.
O garoto sorriu de esguelha, esfregou a ponta do sapato no caminho empoeirado, sussurrou um sim envergonhado, abriu a boca e devagarinho retirou aquele bocadinho de algodão doce dos dedos de Benedita.
- Queres andar no carrossel? perguntou-lhe.
Reluziram os olhos de Benedita. - No carrossel?! os pais ainda não me deram dinheiro para as diversões...disse com voz esmorecida e um grande suspiro.
- Ah! Não fiques triste eu  trabalho lá, recolho os bilhetes, sabes? como és minha amiga posso levar-te para uma volta. Queres?
Benedita gargalhou, pegou-lhe na mão e desatou em correria, directa ao engenho, puxando-o como se receasse que se o não levasse, assim depressa, perdesse a viagem.
Ao som de "mais uma corrida, mais uma viagem"  chegaram ofegantes. O carrossel girava galgando suaves inclinações, transportando girafas, zebras e cavalos onde se penduravam miúdos e miúdas e algumas pessoas crescidas. Mas as chávenas eram a perdição de Benedita. aquele movimento giratório que de tão intenso parecia que ali parava o tempo, bem no centro daquele círculo, como se  lá fora fosse outro universo.
- Vamos na cor-de-rosa. Disse quando o garoto de olhos mel a levou até ao estrado de fiadas e fiadas de tábuas.
- Eu sou a Benedita, e tu?
- Rui, mas conhecem-me por Fintas...
Saltaram para o interior da chávena e as réguas de madeira  pianaram subidas e descidas num som de intensa competição com a música popular que saia escancaradamente dos altifalantes.
Benedita começou a rodopiar e à sua volta giraram luzes e sons que se misturaram até deixarem de existir e o tempo parar.
Pegou-lhe na mão, abriu a cancela, e sairam em Tempo.
- Gosto dos teus olhos castanho mel, Fintas.
Ele sorriu, apanhou um malmequer e prendeu-lho nos cabelos. Deram as mãos, seguiram pelo carreiro empoeirado e foram mordiscando o algodão doce.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

ter-te, assim


quero o cheiro do teu corpo suado e se me perguntares onde, digo-te que é por toda a minha pele, nos meus cabelos, na ponta dos meus dedos.
E se me disseres que passas por aqui, abro-te a minha cama, deito-me contigo e aperto-te nas minhas coxas.
tomo-te no meu peito, envolvo-me nos teus lábios, e quando o teu cheiro me beijar os olhos sei que estás em mim o tempo todo.
se posso então adormecer, decido ter-te em mim. Assim.

segunda-feira, 17 de março de 2014

cantigas de amor


oh meu deleite, meu delicioso amado
cuidei que eram flores, meus lábios no prado
meu deleite! meu amado!
cuidai amado que são meus os ais dos teus afagos.
meu amado, meu deleite
vai a alba solta e dormes cálido no meu peito.
lá no prado, meu amado
floresceram os meus lábios nos teus beijos
meu deleite, meu segredo
cuidei amado, que eram meus os olhares teus
nos afagos, delicioso amado
que os meus ais gemeram lá no prado, no meu leito...
cuidai amado do meu deleite!


sábado, 15 de março de 2014

na eternidade

confiava no esquecimento. Por isso todos os dias eram primeiros.
um dia  esqueceu-se de si, adormecida  na eternidade que era a estrada do esquecimento. Tinha deixado o calor dos lábios  no dia que era o do primeiro beijo. mas confiava no esquecimento para se apaixonar.
Havia uma estrada que chegava de lado nenhum. Tocou-lhe com a ponta dos dedos, no primeiro beijo na estrada de lado nenhum. esmagou-lhe os lábios, devorou-lhe o calor da boca e caminhou para a eternidade.
"Ai...", como suspirou, esquecida de si, adormecida na eternidade. Sentiu-lhe o calor dos lábios no dia que era o do primeiro beijo porque confiava no esquecimento e lá, estavam todos os beijos que eram primeiros.  Sorriu à paixão.
Encontrou-a, amou-a, esqueceu-se com ela na eternidade.

domingo, 9 de março de 2014

quando as cerejeiras nascem na barriga

tinham as pernas soltas para lá do gradeamento da varanda, rabito sentado no chão e a cara bem encostada no varandim para espreitar por entre as barras. Benedita invejava-lhes os cabelos longos que os seus, só quando os soubesse cuidar, dizia a mãe. Mas naquele dia de sol quente até que ficava contente com os seus curtos cabelos. Sorrisos para lá, segredos para cá ficou acertado o desafio da tarde, das três ganhava a que mais caroços engolisse.
Por entre elas as cestitas carregadas de cerejas ainda agarradas nos galhos de folhas verdes, enchiam a tarde de vermelho e de temor. É que naquele tempo Benedita acreditava que as cerejeiras podiam crescer-lhe no estômago, e as amigas partilhavam da mesma crença. Coisas das conversas das mães! Mas primeiro, primeiro, havia que embelezar o rosto pelo que, gaiteiras, escolheram os melhores conjuntos para se abonecarem com os brincos de cereja.
Ouviam o correr da bica de água das traseiras, onde tinham refrescado as cerejas, porque se as comessem quentes havia sérios riscos de uma valente dor de barriga. E a ameaça das cerejeiras com a dor de barriga não era lá muito agradável.
Acordaram que antes de os engolirem treinariam o lançamento com a boca para ver qual chegava mais longe e assim o foram fazendo entre risos desmedidos e numa valente galhofa até que Carmita, desprevenida, engoliu um caroço. Foi então que se concentraram na tarefa e os rostos ficaram sérios. É verdade que já todas os tinham engolido, naquele descuido de manter o caroço da última cereja na boca, num corre para lá e para cá, por ser tão macio, e de repente lá se escapava pela glote....mas era só um, sem intenção. Naquele momento era uma rebelião contra o fado das mães, por isso tão perturbador.
Calhou-lhe ser a segunda. Não foi fácil engolir de propósito, com os olhos da Carmita e da Lucha sobre si, mas logo que lhe escorregou para o estômago abriu um sorriso e disse: - Não custou nada! e abanicou os brincos de cereja. Dexaram de se olhar depois de todas terem engolido o primeiro caroço com propósito. No meio das conversas e de alguns caroços que ainda lançavam à distância de quando em vez uma dizia "engoli outro" e lançavam-se as três numa galhofa agonizada que o peso do crescimento da cerejeira estava bem presente.
Dos seus, sabia serem sete que tinha engolido, perdera a conta aos das amigas, mas o que tinha que cuidar era do seu problema e estava apreensiva sobre o dia seguinte. Foi por isso cabisbaixa até casa, deixando Carmita pelo caminho e receosa, só a ameaças da mãe, comeu o jantar porque lhe parecia já a barriga estar a inchar.
Passou a noite "com cara de caso" resmungava a mãe, mas o caso não era para menos e a barriga começava a senti-la apertada. Foi quando disse à mãe que se calhar ia explodir porque tinha as árvores a crescer na barriga. Não explodiu a barriga mas quase que explodiu a mãe, que lhe deu um valente raspanete, pior do que algumas chineladas de outras marotices. Garantiu-lhe no entanto que as árvores não cresceriam, mas que era preciso orar com fervor ao bom anjo da guarda.

naquele tempo Benedita acreditava que as cerejeiras podiam crescer-lhe no estômago. Era conversa da mãe que se engolisse os caroços lhe nasceriam cerejeiras na barriga. Por isso todas as noites pedia ao seu anjo da guarda para não lhe cresceram as sete cerejeiras dos caroços que engolira com propósito, nem dos que viesse a engolir por acaso.
Um dia, numa das travessias perdeu o anjo pelo que às vezes nascem-lhe cerejeiras na barriga. É, a mãe bem o sabia...

sábado, 8 de março de 2014

e ainda assim desejo

estou à tua espera,
balanço as ancas e embrulho-me em ti, contigo em mim.
Estou à tua espera no topo dos montes onde o vento seco me afaga as fontes.
e embrulho-me em ti, contigo em mim lá no leito verde dos campos de feno.
o Sol espreitou-nos deitados na lua e à noite acordamos os corpos na rua.
balanças as ancas e embrulhas-te em mim. Comigo, em ti.
desejo, não sei se desejo e ainda assim desejo
Estou à tua espera e estás sempre em mim.

segunda-feira, 3 de março de 2014

em trinta sóis

sabes este corpo meu, em trinta sois e luas percorrido?
não sei o que tem o tamanho do vento
mas  se me olhares
sabes? este corpo meu...
e encostas-te em mim, soltas-me o cabelo  no rosto,
e em trinta sóis e luas navegas comigo.
não sei o que tem o tamanho do vento...

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

amo-te, devagar


a humidade escorre na vidraça e ris-te do azul limpo e gélido colado na janela
beijas o meu braço que adormeceu no lençol  e vestes-me o desejo
o sol tem um brilho branco quase frio
deixas entrar o cheiro limpo da manhã pela frecha entreaberta e misturas-te comigo
o frio aquece-nos os corpos quentes e os meus braços enlaçam-te
roço os meus lábios na tua pele e amo-te, devagar.
...................................................................................
leva-me, ama-me devagar. é aí que quero estar

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a imensa fé (ou o pecado da hóstia)

as madres explicavam bem: havia um círculo sagrado, onde Jesus se iria acolher, a hóstia. Era ali que as faziam, centenas e centenas de hóstias com a marca do Senhor. Guardavam-nas em cálices prateados, de ouro forrados que o senhor Abade haveria de consagrar.
distribuíam nesse dia as aparas de hóstias e as que não estavam boas para serem consagradas. Dizia a madre superiora que era pecado deitar fora os pedacinhos que sobravam ou que não serviam para o corpo de Cristo. Era por isso um dia mágico para Benedita.
Benedita adorava a hóstia. Não tinha a certeza de sentir em si o Espírito Santo mas sabia que salivava com especial cuidado aquele pedacinho de "pão" para não magoar o Senhor e ficar em paz com Deus. Aquele bocadinho de tempo da missa, em que apoiava a testa nas mãos e de joelhos engolia a hóstia, era delicioso mas curto, porque a verdade é que só se podia comungar uma vez.....
Por isso e apesar da sua inicial apreensão e até alguma incredulidade,  esperava sempre com ansiedade o dia em que podia ser presenteada com as aparas das hóstias. De princípio cuidou que poderia magoar o Jesus por mastigar aqueles pedacinhos e receou também que apesar de tudo, o corpo de Deus de alguma misteriosa forma pudesse ter por lá ficado.
Foi quando o pai lhe ensinou a transmutação e a fé e lhe disse de forma tranquila e sábia "Benedita as aparas são apenas pedacinhos de farinha e água cozinhados. Não há qualquer mal em as mastigares. O Senhor só está na hóstia consagrada, e só na comunhão o Senhor nos ilumina a alma."
Benedita suspirou aliviada com as palavras do pai e de caminho tirou do cartucho de papel um punhado de aparas que mastigou deliciada. Estranhamente sentiu-se em pecado, parecia-lhe até que Jesus andava arreliado na sua barriga. Rezou por isso muito compenetrada ao anjo da guarda, juntamente com a mãe antes de adormecer e prometeu nunca mais mastigar as aparas.
Desde aí passou a deixar que todos os pedacinhos de hóstia perdidos se dissolvessem na sua boca. Assim não feria o Senhor, andava sempre acompanhada pelo Menino, e rezava serena ao seu anjo da guarda.
Era um pequeno pecado, bem sabia, mas sabia-lhe a imensa fé.



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

estás em mim

desenhei-te no céu que está do outro lado da planície. entre mim e ti navega uma seara. Decido caminhar por entre as espigas, no ondear do vento no cereal.
não há mais, entre mim em ti, nem outros desenhos no horizonte, só tu.
Sei que te toco antes de chegar a ti.
e estou aqui!
desenhaste-me no céu, no teu lado da planície. estás em mim e ainda não me tocaste. em redor ondeia uma seara. rodeias-me o corpo e deitas-te comigo, nas espigas.
não há mais, entre ti em mim, nem outros desenhos no horizonte, só nós.
estás em mim.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

a página em que me amas

estou na página em que me amas.
é numa manhã cinzenta e fria e é por isso que me amas. a chuva cai certa e soa à música que faz o meu corpo embalar-se no teu.  Desenho carícias no teu peito do tamanho do som da chuva sobre a terra. E é por isso que me amas, até ao fim da página.
um vento soltou as folhas e o sol entrou pela janela aberta. Na outra página ainda não nos tínhamos encontrado.
Folheei o livro. A chuva caía lá fora numa manhã cinzenta e fria.
Tão intensa como o som das gotas de água, estou na página em que me amas.

adormecer

adormecer, somente adormecer! é essa a saudade eterna de me guardares no peito, de te guardar no peito.


terça-feira, 14 de janeiro de 2014

com cheiro a alecrim


Caiu-lhe do olhar um sorriso com cheiro a alecrim.
quis o sol da manhã, porque o sol da manhã era quente e grande. Entrava pelas vidraças sem pedir licença, feria até o olhar. E era de manhã que o olhava, que os dedos se soltavam em carícias sem pudor.
- Meu amor! E o sol varreu todos os cantos.
 entraram flores dos campos em redor, cantos de pássaros, murmúrios de regatos e o cheiro a alecrim.

sábado, 11 de janeiro de 2014

navegaram

navegaram.
a barcaça rangendo a madeira húmida a cada remada, sulcava a lagoa sem pressa de nada
ela entre os braços dele, tão amada.
a barcaça rangendo ao sabor dos corpos que se amavam,
navegaram.
desaguaram nas ondas do mar, a barcaça adejando à luz do luar,
ele entre os braços dela, tanto amando
navegaram
fundearam os corpos nas terras de além,  a barcaça ancorada no azul da baia
tanto amando, tão amado
levantaram amarras e navegaram.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

o dia depois

Zi levava-a para amanhã. Pelo caminho, pousada no redondo branquinho do seu ombro, tinha-lhe contado a história do dia depois. Em Tempo não havia dia depois, só havia a seguir, como os passos a caminhar um sempre a seguir ao outro. Lia, a princesa, já conhecia como era a seguir mas não sabia como era depois. Zi explicou-lhe então que para saber o depois tinham que subir a montanha e encontrariam o amanhã. Foi quando lhe poisou no ombro, para a viagem ser mais leve, e puseram pés e asas a caminho por Tempo fora.
No cimo do povo das pessoas tristes, elevava-se a frágua. Lá, no cimo, era depois. subiram o trilho dos ninhos das águias, um a seguir a outro, até ao topo, ao ninho de Ugardila.
Lia abriu os olhos de espanto. Para além, nunca mais acabava, enchia-se de colinas, vales, regatos e muitas cores até onde não se via mais.
- boboleta Zi, como é depois?
- Depois, é quando escolheres, minha princesa, a viagem que queres seguir.
- a Lia  "gotava" mais sem depois...
- Então ficamos aqui princesa, ou voltamos atrás....retorquiu Zi
- depois, Zi, "queeo" depois. como é depois? conta, conta a mim Zi.
- Sabes Lia, depois é....é...e, após um silêncio maior contou: - é que depois surgiu uma luz no céu e desceram até ao regato no fundo do vale. As águias bateram as asas e fizeram dançar o vento. Tempo agitou-se, e tu, princesa, ias no caminho do amanhã.
Lia beteu palmas, pousou Zi no seu indicador e esfregou-lhe o nariz nas asas. Apontou para o horizonte por sobre uma vereda no topo da colina e disse: - Por ali, Zi, "queeo" ir por ali.
Rompeu no além um bocadinho de Sol, depois....Tempo estremeceu.

Sabe-me

sabe-me.
azeda-me o corpo quando não me tocas. enche-se de penumbra, um lusco fusco de humidade que atravessa a ventana da porta. prefiro-te lá fora, na manhã cinzenta de névoa, quando o vento sopra no meu rosto a cor da romã e os meus lábios gelam o sabor das amoras. 
atravesso o cais e encosto-me à árvore grande. a ribeira corre forte e a névoa embriaga-se-lhe no leito. escorrego o corpo no tronco rugoso, e fecho os olhos no instante do afago da neblina. os teus dedos tocam-me.
- Sabe-me. Sussurro.
adoças-me o corpo quando me tocas. enche-se de luz, um brilho forte que cruza as névoas  das manhãs plácidas. prefiro-te lá fora...
Sabe-me.