segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

a cor dos dias cinzentos

caminho numa viela estreita. ando à procura da cor dos dias cinzentos.
sei que ali mais atrás me sentei ao quente e estava escuro na cozinha de paredes lambidas pelo fumo da lareira térrea. Bruxuleava a luz tímida de uma candeia que iluminava sombras. Cheirava ao caldo da panela de ferro à espera da ceia.
na viela o dia continua cinzento, quase branco. cai do céu a cor do frio, húmido.
Cheira a fumo. No ar branco chia o som da lenha que as casas queimam. agarram-se-lhe histórias e sorrisos, choros e segredos.
Nesta outra cozinha de paredes lambidas pelo fumo havia o cheiro do café quente. petisquei no naco de pão com azeitonas ao som de histórias de princesas mouras e tesouros encantados. No tecto a lâmpada tremeluzia um pálido amarelo que fazia permanecer nas sombras a expressão dos rostos como se anoitecesse mais cedo dentro de casa.
a viela ainda é estreita e sei que gosto dos dias cinzentos. É quando cai do céu o silêncio e se ouvem as almas das gentes.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

num acaso de terra

- não sei se tenho conterrâneos. Nasci num acaso de terra cercado de água por todos os lados. Chamam-lhe ilha. Algures sulquei (porque me lavaram) os mares com destino ao continente. dentro de mim a ilha, sei-o hoje.
tenho vivido rodeada de água. Conterrâneos? talvez outras ilhas que como eu sulcaram mares.
Sinto-me bem neste território endémico mas passo o tempo num desnaturado desejo de encontrar conterrâneos.
em cada encontro, acordo em momentos de mim, pequenos universos ancorados nas ilhas da minha história. Julgo que nasci para fazer acontecer os contos das brumas, dos momentos de viagem, quando o tempo fora de nós passa mais depressa. é aí que eu encontro os conterrâneos, meus e dos outros. Nem sempre são gente, às vezes são equívocos, caminhos errados e portas sem saída.....
Balbuína suspirou longamente.
- Vês princesa? Acordei aqui para te encontrar, neste acaso de terra que desabrocha em ervilhas de cheiro. amanhã viajamos mais depressa que o tempo de fora, quando voltarmos só nós mudámos.
Lia tinha os olhos tão abertos quanto a boca, e assim permaneceu olhando estpefacta para Balbuína que entretanto lhe pegou na mão e disse: - Vem, vamos, a sopa já ferve e está na hora de aquecermos o estômago. Gosto da tua ilha princesinha....
Lia sorriu, encolheu os ombros e cantarolou:
 "andava um passarinho a voar no meu jardim, 
fui lá brincar com o sol e ele cantou p´ra mim 
piupiu piupiupiupiu piupiu piupiu piupiu"
 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

campo selvagem

quero-te  perto da minha boca
do meu corpo inquieto
sou como amoras
fruto silvestre
vermelho forte
que o sol beijou, agreste
acordo nua numa alvorada
que o teu corpo amou
sonho-me louca
campo selvagem
onde me tocas
e o tempo pára
quando me amas

tecelã de memórias

era de fino algodão, seguramente lençol de alcova nupcial. sentia-lhe o toque mole e doce, e um inebriante fresco do corar ao sol. Encontrou-o lá, por entre histórias de emoções. Cheirou-o por entre os dedos, suado e quente, o odor a pinho seco.
Desejou-o seu. Sentiu-o como se estivesse ausente: um intenso calor por entre as coxas, um sopro ofegante sobre as espáduas e a volúpia de toques sobre o seu ventre.
Alícia dormia, na sombra dos sonhos, por entre as vagas dos tecidos em que se deitava.
Acariciava as texturas num ritmo cadenciado, entre o polegar e o indicador, em busca das almas por ali habitadas.
Encontrou-o lá e amarrou-se-lhe o coração.
Balbuína sorriu ao ver a agitação do sono de Alícia. A aprendiza de tecelã de memórias fazia a trama da primeira manta.