quinta-feira, 29 de março de 2012

Mário e Arlete

chamei-lhe Arlete, à minha primeira boneca. Pequenina, pouco mais que um palmo, inteiriça até ao pescoço, onde encaixava a cabeça, toda em borracha mole, mesmo o encaracolado cabelo pintado num castanho claro que lhe emoldurava o azul pintado dos olhos, gaiatos e estranhamente vivazes. O Mário chegou mais tarde, já eu andava de bibe em azáfamas casadoiras da bonecada. O Mário era um boneco grande de plástico duro e compacto, inteiriço até ao pescoço, como a Arlete,  e com a particularidade de as mãos se poderem separar dos braços. Já a cabeça era de borracha mole, como a da Arlete, e como a dela separava-se para enxugar as entranhas dos banhos frequentes.
A Arlete não chegava, em pé, às mãos do Mário e por mais que eu rodasse e puxasse as mãos do Mário nunca estas se aproximavam da Arlete.
O Mário tinha uns olhos mortiços que me irritavam, quando tanto queria que ele desse a mão à Arlete e sorrisse com os olhos, como ela.  Mas o Mário não dava as mãos à Arlete, não queria dar as mãos à Arlete...
E eu, de cócoras, puxava-o e dizia-lhe: - Mário dá a mão à Arlete, Mário faz o que a menina quer. E ia elevando a voz, entaramelando a voz com as lágrimas de raiva que me sulcavam a face e dando uns puxões na mão do Mário.
Um dia a mão soltou-se, assim num repente, sem mais nem para quê.
O Mário não queria dar a mão à Arlete!!
 Deitei a mão fora para a rua, através do entrançado de ferro da varanda e corri para a minha mãe num choro soluçado e magoado, numa queixa angustiada - Mamã, o Mário já não tem mão, ele não quis dar a mão à Arlete!
Procura sem sucesso, a mão do Mário sumiu-se para sempre, prova de um crime de paixão.
Continuou sem mão, eterno companheiro de Arlete.

sábado, 24 de março de 2012

por heras e Eras

abraçou-o assim, os braços envolvendo-lhe os ombros, acachando-lhe o rosto entre os seios e o ventre, sentindo-lhe o vibrar da respiração, no peito. Os braços dele apertando-a pela cintura, fortes e tensos.
e os braços como heras, fundiram-nos para sempre.
esculpiram dois corações no tronco da cerejeira, engajaram os dedos seguiram para o lado do Sol  e disseram:
- Amo-te!
Por heras e Eras.

...e acordou numa flor

virou no final do muro da quinta, para poente,
apetecia-lhe um escorrega de gelo,
 por onde o corpo deslizasse
soprou-lhe a aragem gélida do lado de lá
de onde o sol lhe beijava a pele
o cabelo escondeu-lhe o frio
teceu-se de fios de lã e aconchegou-a
adormeceu as coisas e aqueceu os sonhos
do seu bafo quente construiu um refúgio
enroscou-se no fim do escorrega
e rolou sem rolar no rolo do sonhar
virou no final do muro e acordou numa flor
E o Inverno acabou, para recomeçar
 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Ah! pensou, é Primavera

chegava de mansinho e aquecia a terra, um calor morno que lhe acariciava a nuca e se embrenhava sob a roupa envolvendo-a num raio de Sol curiosamente palpitante. Gostava de se agitar entre o tecido e a pele, o raio de sol a brincar sobre o seu corpo. E soltava-se de trapos, no esvoaçar da saia em rodopio infinito, braços em hélice e riso solto até cair tonta na erva do jardim.
A terra cheirava a Sol e estava quente, protegida num manto de humidade que o calor resgatava. E as mãos procuraram pentear as ervas, pernas flectidas pelos joelhos em alegre dá que dá. O vestido era de popeline com flores azuis e rosa e a erva era verde.
A joaninha trepou-lhe pelos dedos e passeou-se vestida de vermelho  preto, desenhando um carreiro amarelado sobre a pele. Elevou a mão e cantou-lhe a lengalenga da viagem para Lisboa. Soprou-lhe de mansinho como o raio de Sol e ela abriu as asas e voou.
Benedita recolheu as pernas, agarrou-as com os braços e encostou a face nos joelhos. O Sol escorregou-lhe de novo pela nuca e pelo corpo. Suspirou.
Ah!-pensou- é Primavera.
Olhou para os pés e  já não calçava galochas.

quinta-feira, 15 de março de 2012

...e ela, feno pelo ar.



os pés tocaram, na descida, o rugoso quente dos degraus, até ao patamar térreo. A terra seca do caminho soprava-lhe a poeira do fim de uma quente tarde de fim de Primavera. Agitou-se no desvario de a palmilhar, entre o sedoso da poeira fina e as finas picadas da areia grossa que lhe cocegavam a palma dos pés. E o trilho era marcado em sinuosas pegadas, fugidias de pedras e calhaus, por vezes marcadas em rasgos mais profundos, quando se perdia no rocegar dos dedos na terra cálida.
Do lado do campo ainda era tempo de ceifa. Galgou a pequena inclinação do terreno e adentrou-se pelas ervas até perto dos ceifeiros, pés na terra torrosa e negra, de porosa humidade.

- Olá menina, boa tarde! disseram-lhe os ceifeiros. Vamos à ceifa?
Brilhou-lhe o olhar, agitaram-se os dedos dos pés e acenou a cabeça.
- Sim, vamos!
Saia apartada em nó no cimo das coxas, para não atrapalhar a tarefa, foice bem segura, mão na mão de um ceifeiro, foi cortando a sua leira, ajeitando pequenos molhos logo juntos e atados para depois serem levados.
Saltitavam as poeiras da terra e das ervas, soltas pelos pés, que se iam prendendo nos cabelos e nas roupas, pintando-a de um cinza esverdeado e a soltar cheiro a feno pelo ar.

E os pés descalços,
 e a escada quente e rugosa,
e a terra poeira e areia
 e ela, feno pelo ar.

terça-feira, 13 de março de 2012

as fechaduras são só fechaduras :)

quando eu era menina tinha uma certa fascinação por alguns bichos. Entre outros as abelhas, as vespas e os zangãos lá estavam. Minha mãe bem me avisava de que com a família das abelhas não se mexia, mas eu entendi de outro modo. As vespas mais individualistas do que as abelhas, apreciavam acoitar-se nas fechaduras dos portões de quintais e jardins. Eu adorava tudo o que era mais difícil e entendi fazer sair a vespa do seu castelo. Foi o dia de uma bela ferroada, choro bem condimentado e a aprendizagem estranha de que morrem por nos fincarem o ferrão. Até parei o choro. Verdade, verdade deixo por agora os buracos de fechaduras em paz.

domingo, 11 de março de 2012

olhos verde azeitona

os olhos dele eram verde azeitona. Tinham aquele tom que ela sonhara para a sua paixão. E eram sempre os olhos que ela queria olhar para sentir que também eles a olhavam.
Podia então escrever mais uma história no seu diário, sobre as certezas de uma paixão, sem palavras.
O fim da tarde era  uma partida de bagdminton. Era mesmo no passeio, entre os prédios e a estrada (naquela altura não havia ainda campos de jogos, nem urbanizações), a cruzar com o horário de saída da escola. Objectivo, prender-lhe o olhar, torná-lo cativo seu.
Era difícil. A adolescência tímida provocava-lhe forte e vermelha coloração no rosto quando o sentia e quase que preferia desaparecer, no chão.
E, um dia a pena caiu-lhe mesmo aos pés, numa batida despropositada mas quase propositada da sua companheira de jogos.
 Baixaram-se ao mesmo tempo, precipitadamente, mas ele levou vantagem. Soergueu-se e abrindo o rosto para ela, num sorriso mágico e num olhar sem fim segurou no volante, e colocou-o na sua mão como se fosse a mais bela flor.
O olhar verde azeitona segredando-lhe do cativeiro. Nela pela primeira vez um erótico e quente rubor.
Um dia dançou com ele, numa festa de anos, mas estava já cativa de um outro olhar. Ela.

Como é bom jogar bagdminton.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Elas, marés de ternura

elas, velhas da minha vida, são barcas onde viajo, são braços em que me acolho na infância da ternura, agora na distância da memória, São velhas sábias, doces e duras, esquecidas e contadoras das mais antigas histórias. São mares de rugas, marés de ternura, emoções perdidas em negras vestes, logo sorridas por melenas alvas. São meninas que por o não serem fazem birras, são teimosas, perderam as brisas e choram por prosas.
São elas tão fortes na minha alma, tão doces neste caminho que trilho.

estendi a toalha e levei-as p`ra minha mesa: ouvi o cantar da moda antiga, a história da moura encantada, o marido que por lá ficou em África, o saltitar dos fritos no lume, o croché de rendilhado fino, as mezinhas curativas...Não sei ainda que paixões são estas tão contadas na memória que não chegam a ser contadas.

Cheiram-me a campo, a amoras colhidas das silvas. Aí se prendem os xailes que à noite as aquecem, que num repente recolhem e apertam, para não esquecerem e contam histórias....
A minha mãe era a minha mãe, velha sábia, doce e terna, contou-me histórias e o seu xaile ficou preso nas silvas. Hoje colho-a como amora.
Elas, velhas, marés de ternura.

quarta-feira, 7 de março de 2012

entre canela e jasmim

gosto que viajes pelo meu corpo
(e encosto-me na banca da cozinha)
que a tua boca prenda o caule de uma flor
(enquanto os legumes se salteiam)
e a seda das pétalas me acaricie, num vagar sem tempo
o tornozelo, a linha redonda da perna e o interior da minha coxa
e deito-me, nessa cama de pétalas e de cheiros
(e um aroma a canela distrai-se pela casa)
enquanto me prendes o olhar em cetim
e então
estremece-me o corpo
de que sinto o cheiro
quando me vendas os olhos
e me deixas a arfar
entre canela e jasmim

sexta-feira, 2 de março de 2012

cerzir de fios de luas

gosto,
gosto de ser mulher,
um infinito de universos
de versos e reversos cerzidos de fios de luas
gosto,
gosto de me atirar na emoção das ruas
nos trilhos de vielas nuas, na alma
nas cores que os meus olhos tecem
gosto.