sábado, 31 de dezembro de 2011

pirilampo


deu um passo e caiu. Sentada no chão sacudiu a cabeça e sorriu :)
lá mais à frente luzia um pirilampo. estendeu os braços e escorregou o corpo pelo chão.
- Olá pirilampo! e sorriu.
ergueu-se e dançou e pirilampos iluminaram-lhe o rosto na coroa de luzes com que a toucaram.
um rio de pequenos lampejos na cascata de cabelos...e sorriu.
e beijou a flor ali encontrada e se perfumou.
deu um passo e caiu, do lado de lá, sentada no chão frente ao fogão e sorriu...
esfregão na mão, escorregou no chão e estava lá o pirilampo lampião e....sorriu ;)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

e nascemos, nus e nuas...

naquele dia nasceu uma menina.
 Nasceu  linda e nua e iluminou a lua.
naquele dia as fadas bailaram
 e flores de prata colheram
aquele dia, não sei qual era,
quando a menina nasceu
acordou o reino das sombras
 e de luas o preencheu
naquele dia que não existiu, o universo explodiu

pintou um jardim de estrelas
 e mil mundos de vida
e nascemos, nus e nuas,
 natais de todos os dias
e, nesses dias, as fadas
 dão-nos as flores de prata

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

em jeito de sinfonia

lá estava, aquele pequeno reduto mágico, flor de pedra e cal por entre os canteiros geométricos do jardim do centro da vila. Avivava-se na Primavera e explodia nas noites quentes de Verão. Nas festas então, derramava-se sobre as gentes agitando, sobre os amores perfeitos de colorido intenso, colcheias e semibreves que os tocadores da banda nos seus fatos de gala ali gemiam ou vibravam.
Eu gostava mais do tempo da Primavera, por norma ao Domingo. Os sons que bem cedo acordavam as gentes piscavam encantamentos e a romaria começava mais cedo. Atrás da banda começava o povo a movimentar-se e a praça ajardinada enchia-se. A rala teia de cadeiras rapidamente lotava. De pé, em curtas passeatas, os vilanenses trocavam breves cortesias e sorrisos de bons dias aconchegando de afectos as sinfonias da filarmónica.
À volta ou ziguezagueando por entre as roupas domingueiras, corriam saias plissadas e rodados vestidos floridos das gaiatas num jogo de apanhada procurando distrair os cachopos que jogavam à carica no lancil do passeio.
E a banda tocava: clarinetes, saxofones e tubas e pratos e tambores tornavam-se a orquestra elegante e culta do domingo de Primavera, que o Sol aquecia. Então o coreto iluminava-se, o tempo parava, só a música em suaves ondulações preenchia o espaço e embalava os solfejos dos corpos, até à hora da missa.
Eu? eu ia entrando no templo, de saia plissada,bem agaitada , saracoteando os ombros em jeito de sinfonia, levando coreto e banda e tempo de fantasia.
Quem dera, amanhã ser Domingo na vila.


domingo, 11 de dezembro de 2011

nascer

não explodiu de amor nos primeiros dias. O nascimento tinha sido um acto de magia e apenas o olhava, extasiada.
O parto tinha sido longo e difícil. Tão longo que nem lembrava a dor só o cansaço permanecia.
Tinha temido apenas não ter força para o trazer à vida. Entre lavagens da ventosa de uma parteira pragmática, gritos de incentivo do, com certeza assustado mas motivador insane, companheiro e alguma desorientação do obstreta, deu o vitorioso puxão que trouxe logo um vagido choroso. Ainda pernas e braços recolhidos, sexo desconhecido. Não era tempo de ecografias e apesar de se poderem fazer, quis permitir-se imaginar o ser menina ou menino, ainda que o desejo pudesse ter uma preferência.
- Não mo leve...pediu à parteira que apressada pretendia tratar da limpeza da criança - quero-o sobre o meu peito - e a voz sumia-se no cansaço, apesar do olhar brilhante. Era perfeito e era um menino, logo lhe tinham dito e, pegado como um coelho coberto de uma leve gordura esbranquiçada, assim a parteira lho colocou, sobre o peito, pés virados para o rosto, sem poder olhar os olhos algures fixados. E acariciou-lhe, breve, as pernas roliças e pegajosas, que a parteira de forma rápida lhe surripiou ao contacto, que era hora de terminar a tarefa. Eram 4.40H. Tinha 4 quilos.
Então não explodiu de amor, olhava-o e dizia: - Não percebo como saiu de dentro de mim, já percebeste como aconteceu? perguntava vezes sem conta ao também extasiado companheiro.
E não o sentia seu. Temeu não ser normal. Aquele amor de mãe que tanto ouvira falar, não estava lá ou então não sabia o que era. Mas adorava olhá-lo e quase com temor afagar aquela carinha e contar-lhe os dedos um a um. Mas ai...a explosão de amor, não sabia onde estava.
Saiu orgulhosa e triste da maternidade. Aquele vazio do ventre não se preenchia.
Naquela noite, na mamada da madrugada, o menino engasgou-se. Tempo demais, não sabia o que fazer, nem conseguia gritar.
A avó  que ainda cirandava pela cozinha, entrou porta dentro, casualmente e casualmente percebeu que algo não estava bem. Entregou-lhe o bébé, olhar culpado de angústia crescente e disse: - Mãe ele não respira.
O arroxeado da pele, os "então, bébé, então" da avó, que começava a mostrar sinais de angústia por entre os sopros que lhe fazia, apertaram-lhe o coração tanto e de tal modo que apenas dizia: - Mãe, mãe, o meu bébé, o meu bébé...
 Ele respirou, chorou e ela explodiu de amor.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Uma história de amor: do acto do casamento: 7 de Dezembro de 1961

28/11/1961
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Oh! Quando será que volto a sentir-te de verdade nos meus braços! Deus permita que seja muito breve. Desde que foste embora que tenho sonhado em ir passar o Natal, dia da família, junto de ti: eu, a nossa pequenina e tu, que nessa altura já serás o meu querido marido. ........................ Querido, hoje tive que desabafar, já não podia mais ocultar todo o amor que sinto e sempre senti por ti. Bem o sabes, se me tenho mostrado um pouco fria, não é por mim, mas sim por teres dito numa carta que bem escusava de mostrar ternura e grandes agradecimentos por teres resolvido legalizar a situação.
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 Ó querido (....) tu és tudo para mim. Gosto muito da minha mãe, muitissimo da nossa querida filhinha, mas de ti não gosto menos. Gosto muito, muito de ti (.....). Sinto tantas, tantas saudades tuas.
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Sabes uma coisa? Hoje de tarde fui à Conservatória saber se podiam enviar, no avião de amanhã, os editais para aí. A princípio disseram que não porque o prazo só acabava no dia 29 e portanto só iria no avião de Domingo. Depois tendo dito que tinhas tudo combinado para realizar o casamento no dia 2 e que tal demora iria transtornar tudo, acabou por ceder e lá seguirão amanhã, para depois combinares logo que possas o dia para o acto.
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E agora é a tua querida (....) que te dá beijos muito grandes......
                                                           Tua ........
P.S. Fui eu que pus os editais no correio

12/12/1961

                       Meu (...........), meu muito querido marido

Embora desde há muito te considerava meu, muito meu, pelo amor que te dediquei, pela vida que levámos e principalmente pelos laços de sangue que nos liga à nossa querida filhinha, hoje o nosso casamento veio confirmar  mais essas palavras "meu, muito meu". E nunca me enfado de as pronunciar. Ontem, quando li a grande notícia que há já alguns dias esperava com ansiedade, e pronunciei as palavras escritas pelo meu querido marido: "minha cara e legítima esposa", crê (....) que não pude continuar a leitura, pois tive de desabafar porque os olhos já não podiam conter as lágrimas. E chorei de alegria e comoção.
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Ó (...) querido, deves bem calcular como me sinto feliz agora. És meu, meu para sempre. Serei sempre tua fidelíssima esposa, compartilhando das tuas alegrias e tristezas, ajudando-te em tudo o que estiver nas minhas possibilidades, serei a mais dedicada das esposas, afagar-te-ei com todos os carinhos, serei uma mãe estremosa......................Ó meu Deus! Vós recompensais sempre os que sofrem. Muito vos agradeço a concepção desta felicidade. Peço-Vos de todo o coração que sempre me acompanheis.
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Agora que a nossa vida se modificou deixa-me passar este Natal feliz junto do meu marido querido e ao mesmo tempo abraçar-te muito, matar estas saudades que vão sempre aumentando. ---------------Desculpa inscrever-me para a passagem sem a tua autorização, mas sempre pensei que a surpresa que me querias fazer era dizer para ir aí passar as férias....
 ........................A tua sempre e muito querida (..........)

16/12/1961
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Hoje quando me disseram que tinha carta tua fiquei muito contente, mas julgava que tivesse vindo de barco..... De verdade, se tivéssemos combinado mais cedo a minha ida aí, tinha aproveitado o barco que saiu daqui no dia 14. A esta hora já estaria junto de ti e terias a nossa pequenita mais uns dias junto do seu papá. Como deves calcular estou ansiosa que estes dias passem depressa para chegar o dia do embarque. As horas quase que são contadas.
Já pedi licença ao Director para ir à (............) e fiz o requerimento ao Ministro para autorizar a usar o teu apelido nos documentos oficiais. Portanto já tenho tudo em ordem. Segunda feira já irei levantar as passagens.
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Dizes então que tens sonhado ultimamente com a nossa menina? São as muitas saudades que sentes por ela. Se Deus quiser na 5ª feira já a terás nos teus braços para a abraçares e beijares com muita meiguice...
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E agora é a tua querida esposa  que te abraça e beija muito, muito,
                                    Tua muito querida (.......)


http://www.youtube.com/watch?v=_s-gU5movZo&feature=related

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

o tempo é uma aventura

a aldeia vestia-se de humidade cinza. Uma estranha mistura entre as fumarolas das chaminés e os bafos quentes da terra envolvia o casario num familiar cheiro de lenha queimada. Nos becos e travessas nem vivalma. A manhã convidava a permanecer no quente do lar e a ousadia de qualquer ente, fora de portas, era fácilmente notada, pelos passos que ecoavam aldeia fora.
Benedita não tinha frio. Saltitava de pé para pé com as suas meias até aos joelhos a escorregarem pela canela, saia de pregas em rodopio constante. Comidas as migas de café com leite, encostava a testa aos vidrilhos da porta,  e enquanto esperava a  autorização para sair ia desenhando flores e corações no bafejo que soprara nos vidros. Quase sem querer, devagarinho, ia abrindo a porta esgalgando o pescoço e enovelando-se na humidade de cheiro a lume que a rua emanava e devagarinho voltava ao desenho não fosse a mãe proibi-la de sair, por causa do frio. Nisto ouviram-se os badalos muito ao longe, som quase sem som. O pastor ia para as cercanias e Benedita correu para a mãe, para sair, porque com as ovelhas, com os balidos que iam atravessar a aldeia ousava-se mais, fora de casa, e já poderia brincar na rua.
- Mãe, mãããe, gritava Benedita pelo corredor, já posso ir brincar? já ouvi o rebanho a ir para os lameiros. Deixa, mãe, deixa eu ir!
A mãe deixou e fora de portas, no pequeno largo fronteiriço,enquanto esperava outros garotos que a ela se juntassem ia, de saltito em saltito, e a cantarolar uma lenga lenga, pisoteando as caganetas caroço de azeitona, percorrendo o rasto do rebanho. Lá ia ela, Benedita, rosto rosado e vibrante, alegre e saltitante, meias meio descidas nas canelas, botas de atilhos laçados, pela rua acima no rasto das caganetas que não se colavam ao calçado, ao encontro da brincadeira com a restante cachopada.
  É, quando se é criança, não se tem frio, nem calor. O tempo é apenas uma aventura e Benedita brincava na rua!

aquele raio de Sol

sabes, daquele raio de Sol que brincou sobre as cores vivas da roupa da minha cama?
que me percorreu a perna em suaves bicadas de ternura depois de me teres olhado, e suado me teres dito:
 -" tens olhos de deusa!"
Aquele raio de Sol que atravessou a saliva das nossas bocas, quando me beijaste e disseste:
- "És tão linda!"
aquele raio de Sol que lampejou sobre o meu rosto, naquele orgasmo que repetimos e eu te digo:
- "Amo-te"
Esse raio de sol guardei-o, para o soltar no meu peito, se acaso as portadas das janelas do meu quarto se fecharem.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

olá, estou aqui


 Os dedos dele tocaram-lhe o queixo e os olhos encontraram-se. Ele sorriu.
 - Olá, estou aqui. Queres que fique? perguntou, percorrendo-lhe a face com os dedos, deixando-a espreguiçar o rosto, como gata.
-Sim. disse, a meia voz. Beijou-lhe a palma da mão e sorriu envergonhada.
- Não sei o que fazer, como fazer...
- Shiuu! disse-lhe colocando o indicador sobre os seus lábios.
Ajoelhou-se e levantou-lhe a perna, que acariciou, do interior do joelho ao tornozelo. Pousou-lhe o pé, vestido  com uma breve sandália de tiras de couro, sobre a coxa, e despiu-o. Beijou-lhe os dedos dos pés enquanto a olhava e entre carícias murmurou-lhe:
 - És tão linda!
Ela sorriu e suspirou e o sopro arrepiou-lhe os poros por entre os seios. Puxou-lhe o corpo para o colo e nele se enroscou e arfou.
- Desejei tanto que estivesses aqui...
e a luz do candeeiro foi pintando sensualidades na penumbra.

sábado, 19 de novembro de 2011

a folha, a pequena gota e o pássaro

parecia uma pérola, a gota sobre o verde daquela folha larga. E fazia um leve rocegar, para cá e para lá no tempo em que a folha se agitava com a aragem do início do dia.
Tinha caído sobre aquela folha, de uma nuvem parca em água e a folha tinha-a recolhido gentilmente. A gota queria refrescar aquela folha grande e linda e a folha queria guardá-la para as horas secas do fim do dia. E a gota rolava um bailado no rosto da folha e a folha revigorava-se no fresco da gota.
 O dia cresceu e os raios de Sol sugavam as pequenas gostas de água que a manhã tinha criado. A folha grande fechou-se e bem na base, junto ao pecíolo, escondeu a pequenina gota que teimava em brilhar com os raios de Sol.
 E o dia minguou e o Sol foi adormecendo. A folha grande abriu-se ao encanto do crepúsculo e a gota agitou-se na nervura central.
No fim do horizonte uma linha escarlate encimada por um forte tom dourado, emanava ainda o quente forte do dia e na ponta da folha uma gota de água pendente luzia naquele tom tépido e cinza do princípio da noite. E passou um pássaro de pena azul que ali poisou, sobre o solo junto à folha de grandes abas. De saltito em saltito rodou o bico, sorveu a gota e voou.
 E a folha estremeceu com a repentina falta de peso, recolheu as abas e preparou o sono para uma nova manhã à espera da sua pequena gota de água, que o pássaro sorvia.

vermelho, escarlate

tinha as unhas pintadas em vermelho, escarlate. Os dedos tornavam-se, por isso, esguios e o tom da pele exercia um forte apelo ao olhar pela brancura sedosa que exibia.
Assim, sem mais, desejou ser como ela ao crescer, mãos de luxo, macias, sem a aspereza de quem trata de tachos e panelas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

maresia

cheirava  a mar e a princesa chorava sentada na areia. E a lágrima era o mar que a princesa cheirava. E nas olas do mar se deixou navegar e na espuma das ondas se deixou afagar. E o mar que era a lágrima que a princesa chorava transbordou pela areia e aí a amou. E o cheiro do mar que a princesa amou invadiu a cidade de um fresco olor, pranteado em magia.  E este amor que encharcou a cidade pelo fim do dia, chamou-se de maresia...

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

cativamento

de encanto cativa,
meu cativamento.
eu moura perdida
na brisa do vento

e ali me encantei
de um cativo encantado
num cativamento
de brisa fadado

cativa me achei
de um sonho encantado
na brisa voei
ao meu cativo amado

de encanto cativa
meu cativamento
no sonho achada
na brisa do vento

e o vento que eu moura
na brisa cativo
meu cativo amado
me acha na brisa


quinta-feira, 10 de novembro de 2011

no reino das cerejeiras

a perna semiflectida balouçou, como se uma suave brisa a empurrasse, e emprestou ao corpo o balanço de preguiça enroscada e sonolenta. Esticou o braço e em delicado gesto puxou o pé de cerejas que logo prendeu sobre as orelhas. Deixou tombar o corpo, arqueando-se levemente pela cintura, dormitando a nuca sobre os ombros, cabelos soltos, virados ao solo, e o vermelho forte das cerejas em saracoteante movimento... e baloiçou na morna aragem do calor de Junho, sob um tecto de folha verdejante.
- Teresinha, gostas dos meus brincos compridos? e sacudiu a cabeça abanicando os bagos de cereja presos nas orelhas. - Pareço mesmo uma artista, não é? e os cabelos esvoaçaram com maior velocidade lançando os brincos de cereja em rápidos movimentos.
-E os meus, Luz, já viste têm três cerejas. Os teus é só duas! Teresinha sorriu divertida enquanto começava a trepar o tronco da cerejeira indo sentar-se no galho oposto ao de Luz. - Eu sou uma princesa, disse, recostando-se no enlace do tronco com o ramo. Delicadamente deixou pender a perna e embalou-se no balancear do corpo, pendentes os pesados e escarlates brincos de três bagos.
- Luz, vou comê-las. está aqui um cachito com quatro cerejas, assim vou ser fada. E atirou uma gargalhada.
- Ohhh! gemeu Luz, assim não vale! e continuou em suave balancé, corpo arqueado sobre o ramo, cerejas sobre as orelhas.
Sob a copa da cerejeira a sombra amaciava o calor do fim da manhã. No chão, as cestas pendiam de nagalhos presos nos ramos e esperavam rechear-se de cerejas.
Teresinha e Luz, continuaram, princesas do reino das cerejeiras. Até à hora de içar as cestas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

o silêncio dos deuses

e desceram o trilho sinuoso cercado de barrocos graníticos em insólitas e quase inverosímeis posições. Ouviam os sons das pedras por nada mais se ouvir, atormentados pelos passos que ecoavam como tambores, estranhos nesse universo de silêncios.
No abrir da curva soou-lhes aquele ziguezaguear de água, uma corrente estreita e brilhante lá bem no fundo do vale, ecoando mais silêncios.
As pedras estavam lambidas do preto cinza de um fogo intenso que apagara qualquer cor de qualquer planta e na aragem ainda  se soltava o cheiro do fumo, impregnando de calor  a atmosfera fria do amanhecer.  Bizarro strip tease que fazia soar em gritos roucos de pesar, o imenso barrocal na sua imponente e aparente frieza, chorando as giestas  e as oliveiras,  despido de protecção e que lhes inundava a alma de imensidão.
E estavam ali, aquela oliveira, carregada de um fruto grado e escuro, mesmo à beira de um barroco doce em jeito de sentinelas de um olival que o trilho tinha salvo das labaredas. Ali pararam, as palmas das mãos a acariciarem o rugoso daquele granito o olhar lançado pelos meandros de colinas e barrocos que pelo vale abaixo se despejavam na invisível corrente de água e quase lá brilhava em branco um pombal.


sabes a que cheira, este silêncio? perguntou. Ele olhou-a sem perceber. - Ouve, ouve este silêncio, a que te cheira?
 O silêncio latejou em cheiros, nos sons inaudíveis dos badalos de um rebanho a que se sentia o movimento lá bem no fundo do vale, e sorriram.
Estavam ali, os deuses

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

o sal do teu corpo

ah escorrego por ti em perladas gotas que me envolvem a pele,
aperto-te em mim, corpo a corpo poro a poro,
entre nós o cheiro a brisa de maresia de fim de tarde
 o sal do teu corpo a adoçar-me os lábios
...e tombo o meu rosto sobre o teu ombro
em terno encanto de protecção
 ali te amo, ali te construo
ali, no princípio da criação

sábado, 29 de outubro de 2011

o tempo da lama

Era no tempo de Outono tardio, o tempo em que a chuva solta o sol que a terra acolheu. Um breve tempo entre a terra humedecida e solta e a terra de pasta gelada da geada do Inverno.

descalça, a lama de terra escura alcança-me o tornozelo, envolve-me o pé como um veludo húmido e pesado e deixa-me dar passos, lentos, desenhando no passo elevado o movimento, com terra. E o passo escorrega, como num pântano, para nova imersão de ímpeto húmido e viscoso rapidamente transformado em cálida e doce textura como se a terra me pudesse aquecer.
Assim me provoca a terra no tempo da chuva intensa, feita lama, feita cama, a entrada fria em corpo quente.
Sinto-a, doce e pulsante, bêbeda de tanta água, lavando-se da secura do tempo quente chamando-me para esse passeio, no campo atrás da minha casa, quando a chuva pára e a humidade permanece.
Gosto dessa lama, dessa terra viscosa e lenta que me envolve em ternura, em breves momentos do andar descalça, entre a sopa e o puré que, de lama, preparava nos meus tachos de brincar.
Porque a terra estava ali mesmo ao sair da porta e era bom andar descalça.

Era no tempo de Outono tardio, o tempo em que a chuva solta o sol que a terra acolheu. Um breve tempo entre a terra humedecida e solta e a terra de pasta gelada da geada do Inverno.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"Fur Elise" e o piano de cauda

os dedos pianavam em teclas brancas e pretas, marcando escalas, naquele ritmo entediante do aprendiz de feiticeiro a quem falta um pouco de audácia criativa. O piano não era da cauda, era de caixa alta, encostado à parede da pequena saleta de iniciação da escola de música com aspirações a conservatório. A ante sala era um enorme salão onde isolado como rei e senhor estava o piano de cauda que havia de ser usado nos recitais. Este, vestido de madeira mel, contrastava em suavidade com o de caixa alta de madeira escura, que recebia portentosamente os exercícios dos pequenos aprendizes, que normalmente suspiravam ao passar frente ao cauda sonhando com o dia em que poderiam escorregar os dedos por um teclado escondido onde as melodias haviam de ser maravilhosas.
O salão tinha também um piano velho, de caixa alta, menos bem tratado onde os alunos, sem piano em casa ou nos momentos antes da lição, podiam fazer o treino de escalas e melodias simples. Era o meu amigo piano, de onde invejava também a banqueta do piano mel, quando uma ou outra tecla produzia uma nota mais metálica ou em timbre tremido dando uma cor desarmónica ao meu momento de pianista.
É, cheirava a música, a papel de pauta. O dó e o fá sustenido da clave de sol giravam incessantemente pelas salas e salão, os acordes estalavam e as pausas geravam sinfonias contínuas...o mundo era a música, mesmo na odiada sala de solfejo.
Não sei como se chamava, a professora. Era de um feio belo, entre mozart e liszt, escandalosamente musical, uma opereta. Óculos finos e nariz adunco, dentes atirados para fora da boca, bem espaçados, estrutura quase equina do perfil do rosto, exibia por isso uma espécie de sorriso constante e uma simpatia perfeita pela humildade do estar: não era pianista, era professora de piano e embevecia-se com as nossas escalas e melodias mais ou menos bem tratadas e adorava tocar a quatro mãos, connosco.
O nuno era o que iria ser o grande pianista, pensava eu, que por ele nutria uma pequenina paixão secreta, construída no coração da nossa sinfonia. Não éramos muitos, os aprendizes e aprendizas de piano, naquele primeiro ano de iniciação, nossa e da escola. Era por isso fácil cruzar-mo-nos entre aulas e em pequenos momentos de espera ou na observação que por vezes a professora queria que uns dos outros fizéssemos para melhorar técnicas incentivando pequenos prelúdios de toques a quatro mãos.

Os pianos exalam aquele cheiro de uma mistura de cordas afinadas com os óleos conservantes das madeiras e o papel, o muito papel, tantas vezes já amarelecido onde as pautas primam por brincar com notas que teimam em saltar-nos para os dedos e que se soltam em sons e sons e sons....
Um dia ele estava no canto do piano mel meio de lado na pose da banqueta com postura de pensador e não de pianista, cotovelo apoiado na borda do piano, pousando a testa sobre a mão e com os dedos da mão direita tocava as primeiras notas de"Fur Elise", sem pauta. Parei a observá-lo, o maravilhoso pianista que se soltava sem regras, sem pautas...foram só as primeiras notas e passei a querer beber mais desses momentos, no piano de cauda.
Só voltaram a acontecer em recitais, onde a música transbordava mas tínhamos invasores dentro da casa.
A sinfonia de olhares sumidos e olás pouco audíveis nos breves momentos em que nos cruzávamos, foi preenchida pela aventura a quatro mãos, de uma tal sonata que não recordo o compositor onde a professora nos entendeu como par ideal.
A saleta de aprendizagem fazia então eco à respiração e ao palpitar do peito junto de quem tocava "Fur Elise" no piano de cauda, enchia-se de notas vibrantes aconchegadas pelo constante e belo sorriso equino da professora que de olhos fechados nos transformava em breves colcheias e coloria-se com o rubor fascinado que me aquecia as faces. Éramos a sinfonia.
Um dia desisti, não gostava do solfejo, parecia-me pouco sinfónico e acho que o nuno também. Tenho saudades da professora.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

sobre o amor (de meu pai)

"o amor é tudo, é tudo, é tudo!
o amor é nada, é nada, é nada!
o amor é tudo, é nada!
é tudo, é nada"

quando conversamos sobre o amor
e tu me respondes que me adoras
meu amor!
meu amor!
eu acredito em ti

se mais conversamos sobre o amor
e eu te respondo que te adoro
meu amor!
meu amor!
eu não te menti

quando discutimos e brigamos
porque em certas coisas discordamos
meu amor!
meu amor!
o amor deixa-nos sós

mas quando nos beijamos e amamos
falar sobre o amor não precisamos
meu amor!
meu amor!
o amor fala por nós

(suponho que seria uma canção. ele nunca a cantou nem deixou a música)

e se eu tirar os sapatos, meu amor?

queres que eu comece a tirar os sapatos, meu amor?

Olha para mim, estou sexy? uma estrela de hollywood?
Venda-me os olhos e acaricia-me os seios
estou sedenta de um romance
de sentir a pele suada do meu corpo
cheia dos teus beijos...

queres que eu comece a tirar os sapatos, meu amor?

(2007)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

medos

o silêncio sobrepôs-se ao ruído e sem som aproximaram-se os medos, rastejando fantasias negras esfumadas, sem formas reconhecíveis, sem cheiros...Parou o respirar, ergueu em tensão os ombros, e os olhos abriram-se num grito desgarrado querendo ver o que não queria ver.
A pequena abertura da porta alargou-se, sem som, sem formas. Para além apenas a escuridão, sem cheiros. O grito saiu-lhe do fundo do peito, gutural e vagido, num estranho e lacinante lamento de não poder impedir o medo...E ainda não havia som!
Soou um estalo, violento, que lhe queimou a face, lhe rebentou as lágrimas e a fez respirar. Os sons voltavam, a vida voltava. O rosto recuperou cor, os lábios humedeceram-se e chorou e riu sem contenção, sem medo.
Do lado de lá da porta estão sempre, os medos, construídos no lado de cá.

domingo, 9 de outubro de 2011

o borboletear de Benedita

ali estavam, tantas e tão belas, num suave burburinho do bater de asas, espreitando as flores, borboleteando nas rosas trepadeira, beijando os rasteiros e coloridos amores perfeitos, construindo um segundo jardim, suspenso e vibrante.

o passeio alargava-se para se encostar a uma parede redonda de um branco um pouco escuro. Desse espaço explodiam canteiros geometricamente uniformes onde os amores perfeitos fulgiam de cores vivas e matizados inesquecíveis. Era Primavera, o toque aveludado das pétalas apetecia a carícia do Sol...E ali se debatia na seda de uma teia que lhe tolhia os passos e lhe fascinava o olhar. As pálpebras tremeluziam o bater das asas e os olhos encantavam-se naquele tapete suave e como se fora marioneta esvoaçava os braços, adornadas as mãos de uma ou outra mariposa fugidia. Entrava naquele mundo. Do outro lado da teia ficava a estrada onde continuava a andar, o olhar curioso virado para aquele fulgir e do lado de dentro podia devagarinho cirandar por entre os quadrados, os triângulos e os "losangulos". O acetinado da flor acariciava-lhe as canelas finas e o agitado jardim suspenso elevava-se em voos lânguidos deixando uma ou outra borboleta como adormecida nas pétalas ali abertas.

A borboleta, pequenina fada, vestida com as mais belas cores o mais delicado tecido, enreda-se em voo espiralado sobre a estonteada Benedita, e gentilmente inclina-a junto aos canteiros. Sem pressa Benedita segue o voo leve da pequenina fada, polegar e indicador em pinça, e segurando a respiração, agarra em cuidada tenaz as asas lilases pinceladas de amarelo forte onde salpicam uns circulos escuros e em suave roçar deixa que aquele pó de colorido intenso lhe cubra as pontas dos dedos e se solte na palma da mão. E as asas ficam frágeis, translúcidas e ao soltar-se, a fada, pequenina borboleta, parece desequilibrar-se no ar, perdida a dourada poeira que lhe aveludava as asas.

Benedita fascinada envolve-se naquele bocadinho de fantasia, passando os dedos pelo rosto, pelo peito, pelos braços, pelas pernas, mantendo uma lenta carícia do polegar sobre os outros dedos como se quisesse passar a borboleta...E voou assim um bocadinho do tamanho do sempre...


O fio sedoso daquela teia grudenta, cuspiu-a num repente. Ali do lado de fora olhava curiosa as rosas trepadeiras, os belos amores perfeitos a que roubou uma acetinada pétala e a borboleta a que faltava cor e que não fugia da sua tentativa de a segurar. Desistiu, procurava aquele pó mágico que esta não tinha e desatou em correria por entre os geométricos canteiros, espantando borboletas e até uma libelinha, descobrindo uma ou outra escondida joaninha, querendo agarrar em pleno voo a que lhe havia de emprestar cor.

Escorregou numa das rosas caídas e permaneceu em equílibrio de braços abertos, pousada na ponta da sua mão a borboleta despida..

Aii, aiii o vinagre, tinha que o ir buscar à mercearia. E por ali seguiu com o voar das borboletas, até ao centro da vila.


sábado, 8 de outubro de 2011

"je t`aime"

-" je t`aime", sussurrou com voz rouca ainda sem o encorpado da adultez, lábios grossos bem próximos da boca trémula de Carolina, soprando um ansioso desejo no hálito quente.
Carolina voltou lentamente o rosto e o beijo escorregou-lhe do canto da boca para um roçar leve e desejoso dos lábios, trocando o respirar ansioso de um momento que se queria mais e que se temia mais.
-"je t`aime", repetiu prolongadamente, acariciando-a da base da orelha ao meio do queixo, absorvendo com o olhar o olhar que ela, surpreendida e seduzida, lhe rasgava.
Olharam em frente, para a noite, sentados no degrau do alpendre da escola, encostados os corpos, lado a lado, trementes, braços sobre as coxas e o roçar da pele das mãos, nos dedos que se entrelaçavam envolvendo-se num bailado de carícias soltas como se os corpos ali estivessem, ali se amassem.
E a mão tocou-lhe novamente a face com um delicado nervoso, pontas dos dedos suadas, e o olhar que ela não conseguia olhar percorrendo-lhe o perfil, perguntando-lhe em silêncio (- e tu amas-me?) fechando em garra e com força a outra mão sobre a dela, o respirar quente vibrado no seu rosto, os lábios roçando-lhe o lóbulo dizendo-lhe: - "gosto de estar assim".
No alpendre o arfar, nos corpos apenas a dança voluptuosa das mão e os beijos nunca alcançados de lábios sobre os lábios, deixando na noite o desejo de um desejo que não se sabia desejado.
Chegada a casa, caminho feito de mãos dadas como namorados de um novo romance, Carolina sorriu, encheu-se de amores, mas não o amou, apenas amou a noite encantada.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tânger, a bela

mohamed era já uma memória distante. O argelino Redwin(!) tinha-o substituído com grande agrado nosso. Era um guia diferente, quase amigo e sem trocas comerciais à mistura. Conquistámos Tânger. Redwin tinha-nos possibilitado o impensável: percorrer a medina sem o assédio de outros guias, conhecer com os nossos próprio olhos, com o nosso toque e com os cheiros que ousávamos cheirar. E Tânger era linda. Caía-lhe um calor baço e húmido que as cores das vestes marroquinas transfigurava em emoção e nos enchia o peito de uma saudade ausente quando o vento quente do fim da tarde nos soprava os cabelos em rebelde confusão (quase quase se cheirava ali D. Sebastião).
O entrelaçado da medina era nosso conhecido: aventurámo-nos nas ruelas para além dos mercadores, marcadas apenas pelas janelas estreitas, quase sempre fechadas para afastar o calor, com espaços estreitos onde apenas cabia uma pessoa, e das quais se contavam mirabolantes estórias de turistas assaltados em formatos ousados e por vezes inverosímeis.
Ah, bom! éramos autênticos, herói e heroína, portugueses amados depois de confundidos com "italiani; franchesi; spain e quê?!" e sabia-nos bem o abraço de "portuguesi, amiqui". Era por isso incompreensível o choro da jovem portuguesa, que no fundo da escada de acesso à medina, desesperada pedia ao marido para irem embora quanto antes melhor. A tentativa de irem à medina, sem aceitarem os préstimos de qualquer guia resultara num extremo desagrado que já não suportavam. Estranhas realidades aquelas, talvez não tivessem sentido Sebastião...
Nós entrávamos e saíamos sem entraves, na medina, na cidade nova e até nos arredores, menos afoitos aqui e por norma com a vigilância de Redwin. Sabemos hoje que os diferentes códigos dos guias emitiam passaportes de níveis diferenciados e o nosso era seguramente de elevado nível.

Redwin tinha-nos levado a um hotel quase na praça central da medina, numa das ruas de principal acesso. Construção seguramente antiga, encaixada num casario apertado que quase cerrava a nesga do céu, alargava-se logo após o átrio amplo num pátio circular de luminosidade palpável que aconchegava o jardim interior que com uma timidez exibicionista nos atirava ao olhar plantas de folhagem larga e verde por onde escorregavam finos tubos de luz facetados pela enorme clarabóia de vidro que protegia o interior. E nesse olhar lançado em altura, perdido naquela luz quase sem existência, descobrimos o varandim, de ferro forjado, que protegia todo o pátio do 1º piso de acesso aos quartos.
Foi neste que ficámos. O quarto era pequeno, com portada sobre a rua e uma ligeira e diminuta visão da praça da medina e quase em frente, mas distante, o torreão de uma mesquita. Na parede lateral à cama de ferro um guarda fato com espelho arrumou os nossos haveres e o lavatório aí encostado servia-nos para as lavagens curtas, porque chuveiro e sanita só na casa de banho comum do hotel, situada felizmente naquele piso, sendo também por isso cobrado um pequeno excedente na diária. Turistas, europeus, só nós. Misturados com todas as famílias marroquinas que ali permaneciam por mais ou menos dias éramos "estranhos em terra estranha" mas, mais permanentes.
E neste hotel habitámos, todo o tempo de Marrocos, todo o tempo de Tânger.
Com Redwin, o vento quente do fim de tarde, o cheiro forte do chá de menta, o sabor doce apimentado da sopa de 1 dirham, a dança da palavra mercantil entrámos numa aventura de sentidos, perdido o desejo de Fez e de Marraquexe, como se Sebastião ali nos tivesse inventado.
Seguramente ali se perdeu de amores, em Tânger, como nós...perdida Alcácer.

...a manhã começa clara e fresca. É a única altura do dia em que o corpo não está suado, e a vontade de sair à rua se despeja na multidão que por lá já circula, no linguarajar que não entendemos, e no apelo que o torreão emite em tom grave, gutural, certo, ritmado, igual, melódico, quase hipnótico. É hora de ir ter com Redwin.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

saber a mel

...queria saber a mel e voluptuosamente envolver-te, escorregando sem pressa sobre o teu peito e maliciosamente derramar-me nas tuas nádegas adoçando a sofreguidão que em ti descubro, num luar nocturno naquela clareira que ainda não encontrei e onde sonho, lobo meu, dançar no luar espiral de mel, e voluptuosamente envolver-te escorregando sem pressa sobre o teu peito...

terça-feira, 20 de setembro de 2011

soubera eu, de Judas...

...e Judas enforcou-se num ramo de uma figueira....

a quinta exibia a luxuria da fruta de fim de Setembro que obrigava a uma apanha sistemática para não se perderem os sabores e os odores que o calor gordo do início de Outono soprava para dentro do povo. Maçãs, pêras, pêssegos, uvas, figos...marmelos de um ou outro marmeleiro, explodiam por entre a folhagem em cores fortes e cheiros açucarados, aguardando gulosamente poderem soltar-se em madurez absoluta, cheios, túrgidos e sumarentos! Bicados pelos pássaros, os mais doces, e exibindo o veio de saída de algumas lagartas, eram estes que tantas vezes acabavam num suave mastigar de quem os apanhava, ou na cesta que se podia levar até casa, por lhes faltar alguma da beleza para a venda.
Claro que com as uvas a conversa era outra. A vindima era quase um acto de fé, uma labuta dura ainda que suavizada pelo bago que na sombra da parra refrescava a boca seca da jorna de sol a sol.
Naquele dia, a apanha era da avelã. As fiadas de avelaneiras carregadas dos casulos em coroa da avelã, largavam-nos em chuva por sobre os toldos, que no Inverno recolhiam também a azeitona, logo após o forte varejamento feito por alguns dos homens da equipa. Ficavam as mulheres na apanha das que, mais ladinas, tinham caído fora dos toldos e se escondiam por entre uma erva fina e restolhada, já meio seca, que enfeitava o ondulado da terra lavrada. Faltava a esta apanha a frescura do morder da fruta, porque precisa do partir da casca e a semente é quente e oleaginosa mas, também se mordiscava.
E a jorna era de sol a sol. O nascer do sol soprava uma brisa que exigia já um agasalho leve, mas o meio do dia era de calor, quente e seco e obrigava a abrigo sob a copa das avelaneiras e a um breve descanso na altura das buchas e no aguadar da garganta.
Tínhamos uma vantagem, não cumpríamos horários escrupulosos, por isso quase em tom de brincadeira chegávamos quase a meio da jorna da manhã, mas juntávamo-nos depois ao rancho com quase o mesmo fervor que os movia. Gostávamos de ouvir as chacotas e os ditos, alguma má língua e também "estórias" de verosimilidade questionável. E ali era passado o dia, porque o campo tem lá tudo, até o espaço para as aflições.
As aflições não são frequentes na jorna do campo, normalmente aguentam até ao tempo de estar em casa. Naquele dia a aflição não aguentou sequer a corrida que podia ser feita até casa. Meu pai lá me indicou o espaço por trás de uma fiada de videiras. Pareceu-me a mim que havia aí demasiada exposição e fui-me chegando a um espaço mais recatado de olhares, abrigado pela folhagem de uma frondosa figueira que crescera junto à mina. Foi rápido o passar da aflição, mas a pressa impedira a recolha das folhas de couve necessárias que cresciam no pequeno lameiro da quinta. Esse inconveniente foi rapidamente reparado com um suspiro de alívio por estar tão próxima a folhagem grande da figueira. A higiene foi rápida. Era muito mais importante voltar para o ajuntamento de mulheres e homens que apanhavam avelãs. Mas, ao chegar, um ardor violento obrigou a uma dança de pernas e a um lacrimejar cheio de ais a que meu pai procurou dar a resposta, mandando-me de imediato para casa para que minha mãe me ajudasse com o castigo da folha da figueira.
Foi grande a humilhação por ter pensado ser tão esperta! Ninguém na aldeia usa a folha da figueira para fins de higiene, todos o sabem...Judas lá se enforcou por ter traído Cristo e a folha tornou-se acre e azeda e nunca, nunca mais pode servir para qualquer bem humano...soubera eu!
É que nem aprecio figos, mas antes de Cristo era seguro despejar aflições sob a folha da figueira.

sábado, 17 de setembro de 2011

do cheiro da terra ao cheiro da alma: era uma vez um jardineiro

o sol tinha-o tornado escuro, de um castanho terra onde os olhos miúdos, e ainda mais escuros, brilhavam ao falar dos bichos. Estranhamente eram poucas as rugas na pele tisnada. As faces encovadas pela falta de dentes abriam-se num estranho sorriso sempre que as crianças lhe falavam. Tirava logo o boné e procurava compor a alça da jardineira, que com o constante cavar descaía sobre o braço. Então pousava o metal da enxada e com as mãos entrelaçadas sobre o cabo, aguardava as perguntas, por vezes tontas, dos garotos, aproveitando para limpar o suor que lhe escorregava pelas têmporas.
Encontrava sempre um lugar para os bichinhos, mesmo os da peçonha, como os sapos. Todos eram precisos, dizia, e todos têm um cantar próprio.
Aprendemos o cantar da minhoca, do rendilhado que sob a terra escura e húmida tece arejando o solo, sempre que nelas pegava e abrindo-nos a palma da mão, as lá colocava para sentirmos uma leve viscosidade de ruído cocegante. Os bichos de conta já os exibíamos nas mãos, enroscados como pequenas bolas, e ele como por magia, com um pequeno toque com a ponta dos dedos fazia-os desenrolar e deslizar sobre as múltiplas "patas". Mostrou-nos como os rabos das sardaniscas, cresciam depois de cortados e disse-nos que tínhamos era de ter cuidado com os alacraus, muitas vezes escondidos debaixo das pedras. E sorria, aquela boca desdentada onde despontava um incisivo grande e meio podre, falando pouco, ensinando sempre e ouvindo a terra.
Ainda o ouço, no shlap, shlap das galochas com as chuvas do outono, e no criic, criic do arrastar do ancinho sobre a terra revolvida. Na rua, no reservado do jardim, sempre que podia, aquele cheiro da terra acompanhava as nossas aventuras com os bichos que ele tão bem explicava.
O sr. Aurélio, jardineiro, rejubilava de prazer por ter o mesmo nome do menino da casa. Já não era o jardineiro, era o contador das histórias do jardim e entrou na nossa casa de afectos.
Mesmo assim, precisei de cortar um rabo de sardanisca, para me certificar que a magia acontecia.

sábado, 10 de setembro de 2011

1969, 28 de Fevereiro: terramotos e uma pensão

a minha casa era uma pensão e viver numa pensão era estar no lado dos bastidores: permitia conhecer os segredos que os pensionistas ocasionais apenas sonhavam. Havia outros que também lá viviam, mas não com a mesma perpetuidade. A nossa permanência era permanente, de segunda a domingo sem interrupções.
Para além de nós havia então os semi-permanentes que se ausentavam ao fim de semana, os periódicos que ali passavam determinados dias da semana ou do mês, os ocasionais para breves fins de semana ou uma ou duas noites e os de passagem que apenas almoçavam. Eram os clientes!
Extraordinariamente, e sempre aos Domingos, os casamentos preenchiam com a boda toda a sala de refeições da pensão. Nesses dias não havia lugar para os clientes, mas nós tínhamos um canto da cozinha e, ao fim do dia sempre se comiam os restos do bolo de noiva com o seu glacé encimado por múltiplas bolas prateadas e se apanhavam os confetis desleixadamente largados pela sala.
O salão de refeições era em T, abrindo-se em três varandins, no topo mais largo, para a rua. A nossa mesa era no canto direito do ângulo interno do topo mais alto do T, por isso víamos toda a sala, e a mim permitia-me sentir-me uma quase anfitriã, com direito a tomar posse das histórias dos clientes.
A minha refeição favorita, sempre ao almoço por haver mais clientes, era polvo cozido com todos. Serviam-me as ventosas dos tentáculos para saborear contactos com outros convivas, por mostrar as mesmas, coladas na ponta da língua, saracoteando-me ao longo da sala, como artista de um teatro inventado.
A base do T da sala tinha duas janelas sobre a varanda corrida das traseiras da pensão que era sobranceira a um largo quintal com parreiras onde se lavava e estendia a roupa em uso na pensão. Do lado esquerdo a porta larga abria o espaço ao corredor e ficava frente a frente com a porta da cozinha, onde só os residentes tinham acesso.
A cozinha tinha duas residentes permanentes: a dona da pensão, mulher pequena e magra como um pau de virar tripas, que fazia uma gestão completa do processo, nunca estando quieta, cirandando pela sala para melhor acolher os clientes; e a cozinheira, mais velhota, de permanente roupagem escura: de poucas falas era a eficiência do processo, as batatas estavam sempre descascadas na altura e quantidade certas, as saladas lavadas e cortadas os peixes e as carnes prontos para o cocção. Sem pressas, em contraste absoluto com a dona existia para ter tudo pronto. Uma ou outra ocasional ali acorriam em dias de maior agitação para dar uma mão nas louças e no serviço de mesa. Dois cheiros permaneciam na cozinha que se expandiam com maior ou menor acuidade pelo salão: o da sopa e o da cozedura de um arroz que ficava escuro e solto e quase se desfazia na boca...cheirava a casa!
A varanda exterior traseira rodeava todo o edifício da pensão e permitia o acesso aos aposentos privados dos donos. A mim permitia-me navegar nessa sensação de fazer parte da família porque podia partilhar os momentos dos penteados da filha mais velha, que enrolava o longo cabelo numa banana interiormente ripada e cheia de laca e colocava um longo risco preto de eye liner nas pálpebras, bem junto às pestanas, fazendo-me pensar estar junto de uma bela estrela de cinema italiana.
O corredor de onde se salientavam a cozinha e o salão de refeições era encimado por um hall que cortava, em tom de descanso, a comprida escadaria, dois lances para baixo e dois lances para cima desembocando num corredor largo, onde ficavam os quartos de hóspedes e a casa de banho comum. Para a direita era encimado por dois varandins estreitos, abertos sobre a rua, ficando o nosso quarto do lado esquerdo desse corredor. Para a esquerda ficava o maior número de quartos, que no total não passava de oito, e a casa de banho que apenas lembro ser grande.
O nosso quarto era o nosso lar. Na cama grande de casal dormia com a minha mãe que estava em tempo de fim de gravidez, sendo de lá expulsa quando ao fim de semana meu pai nos visitava. Encostado à parede e colado ao guarda fatos, um divã acolhia o meu irmão. Algumas malas pelo chão, um roupeiro cheio davam uma impressão de barraca de feira, onde a roupa, por todo o lado, nos invadia de uma suave langura como se estivéssemos numa permanente alcova em constante mudança. O nosso quarto era quente e cheirava a algodão.
Os outros quartos eram habitações insípidas, mais ou menos marcadas pelos clientes semipermanentes e ocasionais: o advogado; o notário; os caixeiros-viajantes; o estagiário, uma ou outra familia a que inventava o histórico...
Enamorei-me do estagiário, e fiz roupa de bonecas com as amostras de tecidos dos caixeiros-viajantes. Os outros eram uma espécie de tios.
Não sei bem em que altura do ano fomos viver para a pensão, sei que era Inverno e sei que em Fevereiro desse ano já éramos "os residentes", quase família. O Carnaval já tinha sido ou ia ser e a epidemia era de papeira...O meu irmão estava com papeira que eu lhe tinha passado, na fase de um inchaço ainda forte e ainda ligeiramente febril e eu já na verdadeira convalescença.
Não me lembro de estar frio, foi como se o clima se tivesse apagado nessa noite e nesse dia. Dormíamos quando de repente fui acordada por minha mãe. O candeeiro aceso e uma fosca luminosidade amarela fizeram-me ver o balancear do espelho do guarda fatos que parecia fugir e quase cair da parede sobre nós. Minha mãe procurava ansiosa acordar meu irmão que ferrado no sono de ligeira febre se recusava a abrir os olhos.
- Mãmã, o guarda fatos está a mexer - comentei sem medo e sem perceber.
- Filha sai da cama, veste o teu roupão temos que ir para a rua, dizia minha mãe e continuava a abanar o meu irmão e a chamá-lo, conseguindo finalmente acordá~lo e levantá~lo quase no mesmo instante em que parámos de abanar.
- Depressa, vamos, disse minha mãe enrolando-nos nos cobertores e enxotando-nos porta fora aos encontrões de sono, sem sapatos.
No corredor a agitação era grande, os hóspedes tinham quase todos saído dos quartos e, esparvoados agitavam-se à volta da pergunta - O que foi isto? e pareciam não saber o que fazer.
-Temos que descer, sair da pensão, dizia minha mãe. E todos se foram aproximando do topo da escadaria.
-Mas falta o notário, comentou um hóspede, será que lhe aconteceu alguma coisa?
- Vou lá ver, disse o estagiário, que correu para bater à porta do quarto do notário.
Nessa corrida e nesse bater agitaram-se as paredes, falhou a luz e um crassh sibilou no edifício. Alguns gritos, sumidos. Minha mãe agarrou-nos numa braçada e segurando-se ao corrimão da escadaria, disse - Temos que descer...
O abalo parou, foi curto e a luz pareceu voltar de forma intermitente.
O estagiário aproximou-se do grupo e disse:
- O notário está-se a calçar, diz para irmos andando que está bem.
A parede oposta à escada estalou, a brecha era tão estranha quanto o comentário do notário mas, sem mais delongas o grupo iniciou a descida das escadas, agarrado ao corrimão.
No meio da viagem novo abalo, longo, agarrei-me ao balaústre do corrimão, sentindo minha mãe bem atrás de mim a segurar fortemente o meu irmão. Aí aconteceu a escuridão. Sem luz, nem um grito, nem um som, só um forte tom cavo do fundo da terra, e a ofegância de múltiplas respirações.
Parou. Do cimo da escadaria o notário disse, abrindo a grata luz de uma lanterna: - agora para baixo todos, depressa.
Assim fizémos. O hall de baixo reencontrou-nos com a família da pensão e com o cheiro da sopa e do arroz solto, estávamos em casa!
Estava tudo vivo e inteiro, estava tudo de pijama com roupões e cobertores, menos o notário, sobriamente vestido de fato, gravata e sapatos, com lanterna. O dono da pensão com um candeeiro de caça mostrou alguns sorrisos em lábios trémulos e guiou-nos para a rua, para fora do edifício, onde as gentes da vila se aglomeravam e se procuravam para descansar os medos.
Estávamos descalços, de cobertores enrolados, sem frio e a tiritar de emoção. O tempo tinha parado. Os cães e as galinhas acompanharam-nos com latidos e grasnidos aliviados. Comentaram-se os abalos, os pratos que se partiram, os relógios que pararam, as cadeiras que deslizaram, os uivos que uivaram e o silêncio do ribombar do terramoto.
E os risos gargalhados, nervosos e incrédulos por o notário ter aparecido completamente vestido e, bem vestido, soaram estranhos nos medos despejados a eito pela noite fora.
No dia seguinte não houve escola. As carteiras tinham deslizado e os armários tombado e eu apreciei o terramoto.
Era 28 de Fevereiro de 1969. O meu irmão nasceu a 6 de Março, com trissomia 21, outro terramoto.
Sobrevivemos todos, felizes e mais fortes, aos terramotos.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Berenice, guardadora de fogo

Da lareira saltitavam labaredas brincalhonas que preenchiam as paredes de uma coloração quente, como se o sol ali tivesse deixado os seus vermelhos dourados de fim de dia. De vez em quando uma agitação mais vigorosa, precedida de um vento quase brando, levantava um lume intenso, logo morno de seguida, que acordava a sombra de Berenice e lampejava um sacudir intenso de pestanas.

- Será que acorda? Perguntavam-se as saltitantes labaredas, dançando mais alguns passos entre as lajes vigorosas da lareira, será que acorda? E numa doce audácia crepitavam em gélidas pontas azuladas que lambiam os dedos soltos de Berenice, buscando o cuidado que tinha em as proteger.

Berenice era guardadora de fogo. Comprometera-se, ainda ladina, em nunca deixar esmorecer o lume sagrado. A verdade é que lhe saltara para o regaço, numa noite fria, uma pequena labareda que lhe acariciara a face e lhe aquecera a alma, numa noite em que procurava apenas um abrigo quente. E, o fogo sussurrara-lhe de mansinho: Berenice, estamos a deixar o mundo, não há quem nos cuide, não há quem nos ame… Berenice acariciara então a pequena labareda e prometera ser uma eterna cuidadora do calor do mundo.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

arroubo



Espreguiçou o corpo num arroubo de sensualidade, arrepiando de nervuras a brancura do lençol fazendo com que o olhar preso do seu homem viajasse pela sua pele e em seco engolisse a luxúria do momento.

-Joaquim, seu tonto, disse, não me olhes assim.

Escondeu o olhar, baixando levemente o queixo olhando-o semicerradamente, fazendo beicinho, enrolando uma melena do seu cabelo no indicador. E assim desafiava a idade, sentindo-se de novo princesa, inocente e sedutora.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

entrar em Tânger

mohamed chamava-se o primeiro marroquino que encontrámos à chegada a Tânger.
A noite ia alta, era já madrugada, as confusões linguísticas impediram-nos de fazer a travessia de fronteira no barco, no tempo anunciado. Como castigo e em conjunto com outros quantos desatentos, saímos após o desembarque de todos os passageiros, efectuadas as formalidades de entrada no país. Mochila às costas iniciámos a caminhada de uma longa e escura via, do barco até à cidade, apenas interrompida por um fiat 600 que albergava um jovem casal espanhol, em lua de mel, e um conjunto infinito de malas e pacotes que atestavam até ao tejadilho o banco traseiro da viatura. -"se van con cuidado" e "buena suerte" foram as últimas palavras, aportuguesadas, do elemento masculino que tanto insistira em nos dar boleia, por causa dos perigos que podíamos correr, escusando-se a perceber a impossibilidade de o fazer pela ausência de espaço, que a companheira permanentemente lhe referia "mi amor", dizia " no puede, no hay espacio".
Na avenida, já na cidade, abriam-se luzes brancas e fortes dos candeeiros de rua, que contrastavam com a luminosidade amarelada e desmaiada do corredor de saída do porto de Tangêr, ladeado por múltiplos contentores que escondiam sombras e os perigos de que o amigo espanhol nos quisera prevenir. Não os vimos nem os sentimos pelo que continuámos a caminhada sem receios, apenas procurávamos alojamento.
Não ia ser possível acampar, como tínhamos planeado. O parque era fora da cidade e não havia transportes àquela hora. Pouca era a gente que circulava e começámos pelas pensões, que em número alargado naquela zona, poderiam ter quartos. Estava tudo cheio "no rooms", nada! Nem nas duas tentativas que fizemos em hóteis que ficavam já fora do nosso planeamento financeiro.
E continuámos a caminhar por Tangêr, de madrugada, em ruas escuras e apertadas, sem mapas, sem destino, à procura do hotel que nos daria guarida e, sem medos.
Não sei se estaríamos perdidos, achávamos que não porque procurávamos algo, mas não sabíamos por onde andávamos. O cansaço estava a ser complicado e equacionávamos a possibilidade de voltar à avenida luminosa e procurar dormitar na zona da estação de comboios. Foi quando, naquele nenhures onde ainda não nos tínhamos cruzado com vivalma, surgiu Mohamed, o marroquino que julgávamos impossível: louro de caracóis anelados, com uns lindíssimos olhos azuis, de jeans e polo . Nem acreditávamos, por momentos julgámos ser a maior patranha, porque o julgáramos estrangeiro, como nós. Árabe, era quase impossível, mas era.
E era mesmo madrugada, talvez entre as duas e as três da manhã, Mohamed levou-nos para dormir à casa de "verdadeiros" marroquinos, apesar da nossa insistência e preferência por pensões. E se foi fácil confiar em Mohamed que nos contou a história da sua família e da sua ascendência francesa, foi fácil também desconfiar e recear quando entramos naquela casa de luzes moles onde uma marroquina matrona e suposta dona da casa nos abriu a porta e nos conduziu, por corredores sombrios, ao quarto onde dormimos.
Ainda se trocaram conversas com Mohamed, que nos quis assegurar que ficávamos bem e nos garantia a sua presença no dia seguinte com um esforçado pequeno almoço de frutas e a sua companhia para nos guiar pelas terras de Marrocos. É na despedida, com um maravilhoso sorriso de dentes brancos, e por falta de experiência e informação nossa, que ao dizer-nos que gostaria de beber um scotch, para celebrar este encontro, que entendemos que tínhamos que pagar a amizade e a disponibilidade.
Pagámos-lhe uma cerveja, pensámos, porque o valor foi Mohamed quem o fez, ainda que o tenhamos negociado. Porta do quarto fechada, sem chave, o sono e o cansaço venceram o receio da completa ausência de referências de onde estávamos e com quem estávamos. Do outro lado da porta não sei que medos por lá residiam, para nós eram mesmo ameaças.
De manhã lá estava Mohamed, com duas meloas cortadas, e uma nova vontade de comemorar. A matrona surgia agora um pouco mais simpática na despedida.
Para nós começou o planear da fuga à simpatia de Mohamed que tinha já uns amigos que nos levariam naquela manhã soalheira de Tânger a Tetuã.


terça-feira, 16 de agosto de 2011

revoluções

era 1974, mas não era o 25 de Abril, era 16 de Agosto. Uma revolução na família.Vinha ao mundo Ana Margarida a irmã caçula, inesperada prenda da menopausa semi-anunciada de minha mãe.
O fluxo menstrual tinha parado aos 47 anos e, como qualquer mulher, julgou estar no início da menopausa rapidamente confirmada pelo médico após os testes à probabilidade de gravidez.
Tal como a convulsão social que começava a marcar o país também o corpo de minha mãe ameaçava uma guerra estranha que ela mal compreendia. O cansaço que associava às aulas nocturnas que tinha para completar o 7º ano do liceu acrescido de uns estranhos "gases" que lhe revolviam a zona do estômago e um lento mas contínuo processo de engorda colocavam-na na massa de mulheres que tinham estranhos sintomas nessa passagem à idade da não procriação.
O 25 de Abril foi quase um "fait divers" naquela angústia, naquela revolução que o corpo não entendia e a mente não processava. Lidar com as manifestações e com as incursões que os filhos, menores ainda, faziam por essa onda de vibrantes alegrias e vontades era uma simples forma de lidar com as regras, algo que o seu corpo parecia na altura não entender.
Também naquele ano, calhara em sorte à família, 15 dias de férias na FNAT, no Algarve, algo quase improvável, mas deliciosamente agradável e que, apesar do 25 de Abril, se iria manter como prémio merecidamente ganho.
Mas aqueles estranhos gases que remexiam sobre o estômago não silenciavam, ainda que o soutiã de base descida os tivesse acalmado, o cansaço permaneceu mesmo acabado o calendário escolar. A breve confidência que me fez, pelos meus catorze anos, dava conta de uma angústia de morte:
" - Não sei que tenho minha filha, já fiz todos os exames, radiografias e sei lá mais e nenhum remédio me põe bem. Estou preocupada, devo ter alguma coisa muito grave". E calava a dor de não saber. "- O médico quer que eu faça outro teste de gravidez, só para tirar todas as dúvidas, mas acho que é uma perda de tempo.." Frases para não terem resposta, a que eu prestei uma atenção relativa, até que alguns dias passados, creio que em inícios de Junho de 1974, explode uma bomba: "- Vou ter um bébé, diz a minha mãe com um leve sorriso maroto (que hoje sei deveria estar marcado por imensa incerteza), os gases são um bébé". Foram imensas as histórias à volta desses gases que "faziam lembrar um bicharoco", imensos os incómodos por acompanharmos uma mãe grávida (ninguém tinha filhos com aquela idade), imensa a alegria da aventura de mais um(a) e imensa a ansiedade de um filho(a) sã(0).
Éramos três, o mais novo, meu saudoso irmão, era portador de trissomia 21 e o diagnóstico, aos seis meses de gravidez, quando soube estar grávida foi aterrador: "pode ser normal, mas tem grande probabilidade de ser igual ou pior."
Mas, a grande epopeia daqueles meses foi não perder os 15 dias de férias ganhos na FNAT.
Era assim a minha mãe, uma mulher revolucionária, que não sabia que o era: a revolução da sua vida aos 47 anos foi garantir o usufruto de umas férias para toda a família, pelas quais todos os anos batalhava, em Albufeira, na FNAT.
A 1 de Agosto partimos, enxoval de bébé e berço a bordo. Oito horas de viagem pela sinuosa serra do Caldeirão.
A 16 de Agosto, em Faro, nasceu Ana Margarida, nome degladiado com nosso pai que desejava a perpetuação de nomes familiares, pesados. Uma linda princesa de um desejo não desejado.
Ainda foi à praia, em Albufeira, em Agosto de 1974.
Foi minha mãe heroína em 1974 e minha irmã a eterna lembrança dessa força.


domingo, 7 de agosto de 2011

Sem roupa

Gosto da linha do meu ventre. Deixou de ser plano. Exibe um doce abaulamento por ter aconchegado os filhos que pari.

chega um tempo em que o corpo rejeita a roupa. É um tempo em que o corpo gosta de si como é e se cansa da roupa a que não se ajusta. O corpo desenha-se aí em histórias e emoções e quer-se assim amado, assim vivido.

Gosto de mostrar a linha do meu ventre, sem roupa. Descubro por isso que estou no tempo da Terra.
Ainda não saí, nua! De manhã repetem-se as rotinas e eu ainda viajo com roupa.
Amanhã sim, vou descansadamente parir o meu corpo, por aí.

sábado, 23 de julho de 2011

Era um fim de tarde de Setembro...

Era um fim de tarde do mês de Setembro. A aldeia estava imbuída dos cheiros das colheitas. Estava aquele aprazível calor que a leve brisa nos aconchegava ao corpo. Não era ainda a hora do regresso do campo e, pelo casario, apenas circulavam algumas crianças engalfinhadas nas suas brincadeiras.

por baixo daquele ar franzino e quase frágil (a minha avó era pequenina, mesmo muito pequenina) coberto de uma constante cor preta desde a sua viuvez escondia-se uma dureza de pedra que eu julgava chegar-lhe ao coração. As palavras eram parcas, as carícias inexistentes e como não tinha dentes (nem sequer postiços) não sabia se alguma vez sorrira. Acho que adorava fazer tudo o que ela não gostava, brincar com a “canalha” da aldeia e fugir a sete pés quando ao longe, alguém de sobreaviso a via chegar de vergasta na mão a chamar pelo meu nome.

Maria Adelaide, oh Maria Adelaide, gritava, são horas de vires para casa… e a vergasta agitava-se de encontro às ervas… nunca me bateu mas também nunca me achou perdida nas brincadeiras com a canalha da aldeia.

Gostaria de mim? Eu não gostava dela, era a avó “má”, dura e seca que não me encostava ao peito. Não me preocupava muito com o assunto, no fundo ela era a minha brincadeira porque a enganava nas fugas à sua preocupação…Ah, sim eu era muito mais esperta do que ela!

Na aldeia não era amada mas também não era odiada, nem sequer temida. A sua secura repercutia-se nos sentimentos dos outros. Mas era respeitada e dignamente respeitada.

Não sei se recordo alguém com rugas tão fundas como as dela, com a face afogada na cavidade bocal onde os lábios finos se escondiam sobre um queixo avançado e um nariz adunco que fazia lembrar a bruxa da história de João e Maria.

A minha avó tinha casado aos dezasseis anos, com o meu avô, bastante mais velho e já viúvo e ao que contavam (porque não o conheci) muito bonacheirão e boa pinta. Teve a minha avó 12 filhos, 10 rapazes e 2 raparigas. Destes faleceram 6, 5 em criança entre os quais as duas meninas, situação que a levava a culpar a enteada do facto, e um já adulto. Esta coisa de ela ter sido mãe era para mim tão distante que nunca senti vontade em perceber bem o que ela poderia ter sentido (eu achava que não teria sido nada até porque estes tios e tias bebés eram quase o mesmo que bonecos na minha imaginação).

A casa tinha sido pobre e a luta pelo sustento foi dura e a minha avó nunca foi menina. O tempo para o pão consumia todo o seu amor e era por aí que com certeza ela amava.

A minha avó não comia peixe porque estes comiam os afogados, nem caranguejos nem camarão, só abria excepção para o bacalhau, porque era diferente, dizia ela. Nunca acreditou que o homem tivesse pousado na lua, porque se assim fosse tinha que se ver (e aqui já ela era bem velhinha). Mas acreditava na Ressurreição e em Jesus Cristo.

Aprendi com ela que as filhoses da beira se devem fritar ao lume, na lareira, numa frigideira de ferro e ajeitadas com um pau de vime bem descascado. Eram deliciosas e ela passava um dia inteiro a fritá-las, de manhã à noite e depois duravam do Natal ao Ano Novo. Aprendi com ela a enfeitar as campas dos entes queridos com flores campestres e umas bagas brancas de que não sei o nome.

Era um fim de tarde do mês de Setembro. A aldeia estava imbuída dos cheiros das colheitas. Estava aquele aprazível calor que a leve brisa nos aconchegava ao corpo. Não era ainda a hora do regresso do campo e, pelo casario, apenas circulavam algumas crianças engalfinhadas nas suas brincadeiras.

Atrás da minha avó seguíamos, talvez 3 a 4 endiabrados cachopos, que estavam endemoniados para tirar prazer de quem já não ouvia nem via bem.

A minha avó seguia, corcovada, na beira da estrada, numa tarde de Setembro, para ir até à leira de terra onde algumas árvores de frutos ainda precisavam de guardiã. Eis quando, pára, e encostando a mão ao muro fronteiro do caminho abre as pernas…

Agitados, os endemoniados cachopos (entre os quais eu), estacam, semi - escondidos, sem saber bem o que esperar….

Era um fim de tarde de Setembro, e o Sol começou a reflectir brilhos por entre as gotas de água, que abundantemente regavam o caminho sob as pernas da minha avó.

A minha avó não usava cuecas!

Que ousadia, que ultraje! E acompanhei o riso desproporcionado dos amigos de brincadeiras. Nunca contei aos meus pais, nem pedi para me explicarem. Era uma vergonha estranha e uma sensação de liberdade imensa.

E …passei a adorar a minha avó, ainda que nunca tenha tido a coragem, nem a oportunidade de docemente a abraçar.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

desejo

desejo-te no não ter-te
tenho-te no desejo de te não ter
despejo-me de ti quando te tenho
para te desejar ao não te ter
quando te tenho

de meu pai


milai, milai,
olha o que quis teu pai
sonhou um dia dar-te em presente a lua
para seres diferente da banal criança
que passa pela rua



mas ai milai
que louco foi teu pai
serás tal qual outra qualquer mulher
terás na vida o sonho, a dor e a esperança
e eis porque teu pai tanto te quer

(para mim e por meu pai que partiu na madrugada seguinte aos meus anos, em 2008)

terça-feira, 19 de julho de 2011

O quarto dos sapatos e a engraxadora

era estreito e comprido. Frente à porta bem mesmo em linha estava outra: a porta de pequenos vidrados que se abria sobre uma sacada quase rente onde um gradeamento singular a separava da queda. De tão pequeno, era o maior quarto da casa . Ocupava-o um armário de portadas de vidro, onde uns cortinados de chita florida, escondiam o que ali se acoitava.
Soltava-se do chão por quatro pés, pouco menos que um palmo, que deixavam um bom espaço para a limpeza da vassoura, ou para por lá se perder algum objecto de brincadeira. Não era alto, o armário. Do topo ao tecto quase caberia outro, mas o espaço era mesmo do armário que por ali se agigantava, parecendo por vezes dobrar-se sobre Catarina sentada no seu banco de engraxadora.
Ali, Catarina era a engraxadora. Mergulhava nas profundezas das prateleiras e cá fora dispunha toda a sapataria que por lá encontrava: os sapatos de bico da mãe, os sapatos de laçada do pai, os de trabalho, os dos Domingos, os das festas, as botas de cano...Na banqueta pousava a caixa de papelão de onde sussurravam as escovas, para limpar o pó e a terra, para pôr a graxa, para dar brilho. As latas de graxas em pomada preta e castanha e os panos de espalhar e de polir saltavam de entre as escovas, para as mãos de Catarina que logo os colocava ordeiramente sobre a banqueta.
As portadas do armário abertas de par em par descobriam uns sapatos cansados, envelhecidos, sem brilho. Alguns ainda com um ou outro torrão de terra davam uma cor acinzentada ao conjunto só cortada pela brejeirice de uns "verniz" dos dias de festa, que apesar do pó garantiam uns brilhos ao fundo do armário.
Pelo quarto, em espiral, alargavam-se os cheiros das graxas, moles e doces, cortados aqui e ali por um certo acre do rícino, a que se juntavam os cheiros dos pés da mãe, do pai, do mano e dela. Eram cheiros cansados e brandos, os dos pés; enérgicos e vivos, os das graxas.
Catarina colocava o avental, sentava-se decidida e começava sistematicamente a limpar: primeiro o pó e a terra, depois a graxa, umas vezes com o pano, outras com a pequena escova de cabo. A lata de graxa castanha por vezes seca remediava-se com um bocadito de cuspo (e até que dava mais brilho, como bem sabia Catarina). Os sapatos iam-se reafileirando, como o mais limpo regimento, já esperando o remate final: o vigoroso polimento, quase carícia, do pano macio que os transformava em novos.
Catarina olhava deliciada para a coluna. Não resistia ao chinelar com os sapatos de Domingo da mãe, quando ela vestia aqueles lindos vestidos; ao rastejar dos pesados sapatos de trabalho do pai e a cheirar as suas botas de cano da escola. A graxa estava por todo lado, na ponta do nariz, nos dedos, no avental, no intenso e saboroso cheiro que se vinculava à sapataria.
O brilho, pois o brilho! Não era fácil porque Catarina queria ter a forma do sapato, como o engraxador de rua, o pé lá dentro e ver o olhar de satisfação do dono por se reflectir no espelhado do calçado. Mas, os joelhos serviam de torno, primeiro o lado do calcanhar, depois o espelho do sapato. Um bafo aqui, outro acolá, e os sapatos iam-se arrumando nas prateleiras, tão brilhantes e vivos como os "verniz". O cheiro ajeitava-se aos brilhos. Cheirava a fresco, a novo,cheirava a graxa preta e castanha, um acre doce e vivo por onde perpassavam os cheiros da casa, dos pés renovados da mãe, do pai e do mano. Os de Catarina também. E brilhavam, como brilhavam. Devagarinho ia-os encostando mais ao fundo, ao seu descanso, e no bico dos pés fechava as portadas de cortinas de chita floridas, onde acomodara a caixa de papelão.
Pela sacada entrava o Sol de fim de tarde.
O armário retrai-se para o seu espaço e Catarina sai, fechando devagarinho a porta, cabeça meia dentro, não fosse algum sapato fugir. A última espreitadela assegura-lhe que o seu segredo de brilhos e de cheiros está bem guardado, e clic, a porta fecha-se.
- Mãe, mãe, grita Catarina ofegante, descendo em corrida a escadaria da casa. Mãe tens que vir comigo ao quarto dos sapatos, está lá uma surpresa que eu fiz para ti!
Era o quarto dos sapatos, apenas dos sapatos. Uma vez uns gatinhos recém nascidos por lá se abrigaram, sob o armário, onde só cabia uma vassoura e a mão de Catarina.

sábado, 16 de julho de 2011

Libério no vale de Orbs


recortada no horizonte, surgia uma sombra silenciosa, compacta e negra, com um suave perfil ovalado, que rasgava a harmónica linha de montanha inundada de brilho lunar. Libério procurava o rumo para a jornada que tinha iniciado para encontrar Alicia.
Algures tinham-se perdido, quando passaram por entre uma cortina de bruma e, ainda sem entender, surgira sozinho num vale, onde a noite começara e por trás da montanha se elevava uma enorme esfera amarela. De Alicia nem sinais e sentia falta da sua mão macia e cálida e do cheiro a jasmim que dela emanava.
Orbs!! Tinham passado por um Orb, só podia ser isso, e um Orb não catalogado, pelo que estavam num mundo completamente desconhecido em Venestia. Libério deixou-se abalar por uma pequena tontura enquanto o corpo esguio e tenso se alagava num brilho de suores intensos. Enfraquecido e confuso sentou-se, encostando a testa na palma de mão, inspirando em profundas e longas golfadas o ar até sentir que a calma tinha voltado.
Olhou para cima, onde a esfera estava já mais pequena e longínqua. À volta dispunham-se múltiplas entradas circulares, de brilho intenso, quase ofuscando de luz aquele bocadinho de horizonte e o vale onde estava . Nunca, Libério, tinha visto tal junção de Orbs. A beleza a que assistia provocava-lhe um aperto forte na garganta: Como saber qual o que deveriam usar? Como voltar?
Alicia, tinha que a encontrar. Sem ela não iria conseguir. Nas suas costas agitaram-se umas suaves penugens que logo se aquietaram. Libério ergueu-se olhou a montanha e decidido começou a caminhada.
Recortada no horizonte, surgia uma sombra silenciosa, compacta e negra, com um suave perfil ovalado, que rasgava a harmónica linha de montanha inundada de brilho lunar. Libério procurava o rumo para a jornada que tinha iniciado para encontrar Alicia. No rochedo um Orb mantinha-se ainda visível. De lá iria traçar o destino para encontrar Alicia.

terça-feira, 12 de julho de 2011

O assalto às Rennie

adorava pastilhas Rennie, as que faziam bem à digestão. De vez em quando conseguia um pedacinho que chupava gulosamente deixando que aquele sabor a espuma de farinha doce refrescasse o hálito quando aspirava o ar circulante.
As Rennie faziam parte do tesouro que todos os dias procurava encontrar, devassando gavetas e recantos de toda a casa. A actividade era extremamente perigosa. A ameaça de umas chineladas apenas a tornava mais audaz.
O crime de assalto e roubo, vandalizando os lenços e as echarpes, as cuecas e as camisas, aconteceu um dia, quando encontrou a caixa das Rennie, quase cheia.
Agachou-se na lateral da cómoda e descansada e sorrateira chupou, uma a uma, todas as pastilhas, deliciando-se, no fim da cada uma, com a frescura vibrante do ar aspirado através dos dentes cerrados que se prolongava pela língua e céu da boca como se um regato de ar por ali se escoasse.
Na última pastilha o coração começou a bater mais depressa ao olhar para o chão pejado de papéis plásticos e a caixa tombada e aberta.Do castigo não se safava e o medo estava a crescer. E, se morresse? A mãe bem lhe tinha dito que aquilo era remédio. A quase certeza das chineladas era um "fait divers", o problema era se morria e a mãe a castigava por isso.
-Dilita, onde estás? - ouviu a mãe, e encolheu-se mais, atenta a qualquer sinal de dor de barriga, que não chegava.
- Dilita, ecoava em prolongado som a voz da mãe, já sabes que se mexeste nas gavetas o chinelo está à espera.
Dilita encostou a cara à ponta da cómoda e espreitou a porta que se abriu num repente para deixar entrar a mãe.
Nem um som, um bom puxão de orelhas, fê-la levantar do chão e perceber que não estava a morrer. Estava bem viva, escapar às chineladas foi uma sorte, afinal a mãe tinha receio que as Rennie pudessem ter-lhe feito mal, por isso a diminuição da pena.
Não escapou foi à dor de barriga que mais tarde a incomodou e quando se queixou à mãe que a encostava no regaço, logo se arrependeu pela resposta:
-A menina portou-se mal por isso lhe dói a barriga e para a próxima o chinelo está à espera!
Este é que era o castigo, mas estava contente, não tinha sido castigada por morrer.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

a mosca e a aranha

zzzap!! Fechou a mão sobre a mosca, que andava já lenta naquele fim de tarde de um fim de Setembro quente, e sorriu aos garotos que à sua volta abriam sorrisos de vitória.
Apanhei-a - disse, abanando a mão com rapidez. - Agora é pô-la tonta que já lhe arrancamos as asas - e sorriu novamente.
Na ruela que desembocava no largo, na casa que fazia esquina as paredes juntavam pequenos blocos de granito, sem forma, criando múltiplas e minúsculas cavernas entrelaçadas pelas teias das suas habitantes, as aranhas, que nunca se viam. Tinha sido essa a teima, existiam mesmo, as aranhas, e eram assim tão gigantes como ele dizia?
- Só saem para comer, repetia o primo, estão lá. Por isso a mosca!
Os fins de tarde de Setembro, na aldeia, eram invadidos pelas moscas, que retiravam o prazer de se estar sentado nas soleiras, obrigando a um constante levantar das mãos e sacudir de pernas. E picavam, as moinantes. Nesse fim de tarde admiravam-se as teias que ao pôr do sol envolviam as paredes, esburacadas e cavernosas, da casa de um diáfano brilho aracnídeo.
Mal amadas, as aranhas, exerciam um estranho fascínio nos garotos, e as moscas precisavam de ser punidas.
- Já a não sinto a voar, há-de estar cansada - e foi abrindo a mão cuidando de uma precisa lentidão, de forma a que a mosca fosse apanhada antes de voltar a conseguir voar, que algumas tinham já escapado.
-Ahh! Cá está - e a mosca apenas caminhava na palma semifechada, pronta a fechar-se se as asas esvoaçassem. - Rosita, vai, tens que lhe arrancar uma asa - e sorriu, a fileira de dentes certos e brancos.
- Urrgh, que nojo,não sou capaz, disse Rosita com um esgar na cara.
- Então tu, Lelo, tem que ser já senão ela foge - disse o primo.
Uma, duas, arrancou as asas e a mosca já não voava, estrebuchava.
- Cá vai ela agora, disse o primo. Colocou-a na teia e toda a rede de brilhos sobre a parede baloiçou.
O tempo abrandou, os olhares pararam e cintilaram sobre aquela zona mais escura, entrada de um reino secreto, à espera da aranha.
E o sol do fim de tarde de Setembro aqueceu brandamente os ombros dos garotos e do primo, iluminando o debater da mosca à aproximação da escura e grande aranha.
- Primo, vamos fazer outra vez, para aquela mais acima, disse Lelo.
E a Rosita foi-se embora.

terça-feira, 5 de julho de 2011

a alcova

o cheiro e o quente das dunas são a minha casa, quase a minha cama. Não há areia naquela alcova. Há tão só o cheiro das dunas no revoltear de lençóis mornos que ondulam em pequenos vales, que escondem beijos e olhares, carícias lentas e beijos húmidos e longos.
O cheiro entrelaça-se nos cabelos, afaga as espáduas douradas e luzidias, escorre sobre os seios e estremece por entre os ventres.
o quente, aquele calor tão tépido, adoça a ligeira brisa que sopra lá mais acima, agitando um suave restolho de ervas altas mais ou menos espaçadas.
E o Sol começa a descer fulgindo em vermelho na encosta do vale, das dunas.
A alcova é deixada, de mãos entrelaçadas, rasto de pegadas na areia destapada.
Hoje nos passadiços, passa-se sobre as dunas, não se ferem as dunas, não se entrelaçam os cheiros.

sábado, 2 de julho de 2011

o pé, no sapato...

o pé estava no sapato. Não, não, estava numa sandália, descobria-se num vermelho escarlate que sacudia de energia a unha do dedo grande. E o pé balançava, num jeito desprendido de quem espera uma dança, a curva arqueada de pontas de ballet.
Ah!! era Verão, por isso a sandália, apesar do frio da alma, que disparate era verão, não podia haver sapato, apenas a alma queria um casaco.
E o pé baloiçava num jeito cansado da espera. Pendia e parava e num improviso arquejava para cima e para baixo.
-Dona Maria.... , ouviu-se a chamada e o pé pousou em tensão, "já temos a bexiga cheia?" -"Humm...", e o dedo de ponta escarlate elevou-se incrédulo e pousou abatido, "ainda não" -" Mais um pouco então, pode esperar."
E o pé voltou ao baloiço, um nervoso miudinho de cansaço, e a alma sem casaco, pousou sobre os pés que apenas esperavam a chamada.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O bom ladrão

Olá, disse Celina.

Olá, disse ele, abrindo um meio sorriso.

Celina sentou-se no beiral da janela, com grade, invadiu de perguntas o interior da cela, rodeando o cheiro metálico acre e moribundo do ferro e passou a amiga-cliente das histórias do senhor da cadeia.

O preso, sem nome, dava vida à cadeia. Não era hábito ter presos, era até raro manter prisioneiros, mas quando tinha era um acontecimento, social. A janela virada para o largo possuía um robusto gradeamento em ferro que não exercia qualquer atracção, excepto quando tinha um prisioneiro. Era o tempo em que as grossas portadas de madeira se abriam e permitiam mergulhar no mistério, para lá da grade.

Os grandes pareciam desconhecer que ali estava o prisioneiro. A janela gradeada ficava-lhes pelas pernas, e mesmo sabendo da existência de gente, lá dentro, era como se a cadeia não existisse. Os grandes pelos vistos, não queriam desvendar mistérios.

As histórias eram comuns, o senhor preso tinha filhos, até da sua idade, de quem tinha saudades e que desconheciam estes problemas. Tinha sido tentado para roubar santos das igrejas e capelas e estava arrependido.

Celina achava estranha aquela vida de tirar santinhos, que só serviam para se rezar, por isso nem percebia bem porque o senhor preso não podia sair. E Celina queria entrar, ver para lá da escuridão que cá de fora vislumbrava, saber como se dormia, sem janela de vidro e sem cama e com o permanente cheiro de uma humidade seca e ferrosa que Celina levava nas mãos e na roupa quando se despedia.

Ficava mal a Celina conversar com o priosineiro, e o pai disse-lhe: “Celina, não quero que mais ninguém me venha dizer que estiveste a falar com o preso. Não fica bem, minha filha, ele fez uma coisa feia, é um ladrão, e está a ser julgado no tribunal”.

Ficou confusa porque o pai era o juiz do tribunal e era bom, mas o senhor preso tirava santos, que só serviam para rezar, devia ser bom também por querer rezar tanto…mas o pai dizia que ele era um ladrão!

Deixou os bocadinhos de conversa e apenas trazia emprestados os romances da Crónica Feminina, que o senhor preso coleccionava, impregnados do cheiro misterioso da cela.

Um dia, as portadas de madeira estavam fechadas, o senhor preso desaparecera. O pai disse-lhe que tinha sido condenado e estava agora numa grande prisão.

Celina ainda achava estranha aquela visão do seu amigo ladrão, porque se ele roubava Santos, era porque gostava de Santos, e era bom gostar de Santos, mas se o pai dizia e parecia que as pessoas estavam contentes…

O pai levou-a à cadeia, para desvendar o mistério. O Sr. Guarda, já velhote e bonacheirão, pegou numa grande chave em ferro e deu a volta na fechadura. A porta de madeira grossa, abriu-se sobre um pequeno número de escadas, que desceram, e logo o cheiro húmido seco e ferroso se colou nas narinas, um cheiro de cela fria e escura. Uma luminosidade acinzentada deixou perceber melhor o interior, a tarimba num canto, um pequeno lavatório no outro e uma mesa e uma cadeira, mais próximas da janela gradeada, que mal se viam lá de fora. E ninguém, sem cheiro de gente.


O mistério ficou lá, naquele cheiro que naqueles dias todos tinha feito parte da vida do seu amigo ladrão, que roubava Santos e que afinal não gostava de Santos. Celina não mais se sentou no beiral da janela a conversar, apenas harpeava pelas grades com os dedos, cativando o odor a ferro da prisão.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

com asas nos pés

a água fria sacudiu-lhe as memórias. Nos pés nasceram-lhe as asas perdidas, pequenos leques propulsores da viagem interrompida. E a água avançou um pouco mais empurrada pela lenta subida da maré, marejando-lhe as pernas e as coxas em suaves encostos, beijos de frescura fugidia, que foram abrindo a prata luzidia.
o sol brincava-lhe no olhar aquecendo a suave curva dorsal que ela foi imergindo sob as ondas até que o mar a envolveu e lhe sussurrou: além é o mundo...além é o mundo....
Alicia abriu os olhos e uma lágrima escorregou-lhe na face. O corpo pulsou agitado pelo bater das pequenas asas. Com um impulso elevou-se, o brilho da prata refulgindo nas suas longas e inquietas pernas, libertando miríades de gotículas de água e voou na direcção da brisa. As memórias sacudidas mordiam-lhe os sentidos e as certezas. Nem sabia porque voava, mais estranho ainda, como voava.
Tinha que encontrar Libério. Libério sabia mas ela não sabia como encontrar Libério.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

a sala de espera

uma sala de espera é mesmo o que diz que é, é uma sala de espera. O estranho é que para além da espera nunca temos a certeza do que nos espera na sala de espera. Talvez, por isso a espera na sala de espera seja uma pequena aventura emocional, que torna a espera na sala de espera uma história para ser contada. Nem que por vezes apenas consigamos contar: ouve lá, passei horas indecentes à espera de ser atendido!
Falta-nos só encontrar o que se passou nas horas indecentes passadas na espera da sala de espera.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O areal a amanhecer

o areal prolongava-se por dunas suaves carregadas de plantas verdes rasteiras e turgidas, que na primavera abriam flores lilases intensas e brancas perladas, num jogo de cores envolvente. A areia era docemente cálida e sedosa ganhando uma aspereza vivificante quando se aproximava das águas que a rodeavam, as do mar e as da ria.
Mais acima, num planalto dunar, pousava um casario disperso, onde a tradicional casa em madeira era já rodeada de um ou outro casarão urbano a roubar a graciosidade do conjunto. A igreja, quase orada, congregava os olhares e permitia um respirar de espiritualidade que acompanhava os pescadores na sua faina diária.
A manhã estava carregada de neblina. As gostas de água não choviam, colavam-se no corpo, frescas e húmidas provocando o eriçar dos poros e a procura de um abrigo breve, numa barraca de praia, acabada de montar. O mar soava, neste silêncio falante, de forma ondulada movimentando vagas mansas e espessas que se derramavam languidamente no areal, e a ria sussurrava em pequenos estalidos provocados pelo leve roçar de encosto e desencosto nas areias envolventes, balançando os barcos que aí repousavam. E, cheirava a sal, a maresia.
Algumas gaivotas, no voo matinal, rasgavam estes sons de silêncio, com uns pios agudos anunciadores da entrada das primeiras embarcações no mar. Empurrados pela leva de homens e rapazes necessários, o "amor de mãe", o "maria antónia" ou o "vai com Deus" entre outros, largavam-se à faina da pesca artesanal, quase à hora do sol nascer por entre a névoa da madrugada. Soluçavam no embate com as vagas mansas, borbulhando pequenos remoinhos de sonoridade eruptiva que logo de seguida eram abafados pelo splash dos quatro pares de remos que em sincronia absoluta se absorviam no marulhar das águas. E, aos poucos, voltava o silêncio de sons macios, a pequena brisa que antecipava os primeiros raios de sol, o marulhar do mar e da ria e um eco distante do mestre que na embarcação marcava o ritmo da remada.
Na areia, junto ao mar, passeavam-se gaivotas e pequenos pássaros deixando trilhos de três dedos que não conduziam a parte nenhuma e que as águas apagavam na sua lenta subida de maré.
Alguns "criich" destoaram, por estranhos na sinfonia que tocava, mas logo integraram o jogo melódico pelo restolhar de tecidos que se lançavam pela estrutura de madeira das barracas. Os banheiros feriam a uniformidade da areia arrastando volumosos e pesados sacos que cheios de panos riscados iam criar o casario dos banhistas permanentes. Tisnados das horas de sol constantes, com cabelos de louro palha, tão pouco frequentes no lugar, eram o primeiro indício da invasão que mais tarde acontecia.
De repente o silêncio, uma densa quebra da melodia soou por tão forte ser o silêncio, e o primeiro raio de sol despontou, em breves traços por entre a névoa. Suspendeu-se a vida em adoração à luz, e o breve e suspenso instante eclodiu em pios e grasnidos, num vendaval de bater de asas, numa vaga de forte reverberação, no ondear vibrante das embarcações da ria e em inspirações profundas e amplas. A sinfonia ecoou em "vibrante allegro" temperada pelas carícias hesitantes do sol que aquecia as gotas de água que não choviam e que agora secavam sobre a pele.
Os banheiros despiram as camisolas e amarraram-nas na cabeça, continuando no arranjo do casario riscado, cada um na sua fiada de barracas.
E o dia começou.
- Eh, Tóino está na hora de fumarmos um cigarrito.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

os rios da paixão

há rios que escorregam com picardia sobre as pedras roladas que foram esculpindo, em leitos baixos e límpidos, soluçando curtas gargalhadas cristalinas. São rios lavados, quase sem margens, que abrem pequenos regatos laterais, pequenos fios de água que buscam novos contornos regressando mais à frente à corrente saltitante.
há corpos que serpenteiam, meios nas águas, meios ao sol por estes meandros. Deslizam o ventre, antebraços e coxas por sobre as pedras e a areia grossa em voluptuosa dança. Erguem as pernas e os braços salpicando a corrente de gotas de água. Sacodem os ombros em alegre desvario e tombam a nuca e num repente a elevam trazendo um manto de diamantes aquíferos que se espalham em todas as direcções. Os risos soltam-se, vaporosos, os corpos rolam e deitam-se, costas sob a água abrindo-se às quentes picadas dos raios de sol, e os risos soltam-se apaixonados.
Uma vez, apaixonei-me assim por um rio...por lá desliza ainda o meu corpo.