domingo, 27 de outubro de 2019

às vezes, sei que devia ser nómada

Sei que devia ser nómada
mas às vezes há viagens em que decidimos outras histórias e ali estava eu, olhando o horizonte pintado de linhas alvas, sufocada de paixão nesse beijo, ainda solto nos meus lábios, e os pensamentos distraídos nos meus olhos

não sei se há vazios.
Acontece que às vezes as estrelas e os planetas preenchem tudo o que é espaço.
sei que há imensidões que parecem vazias por estarem tão cheias,
às vezes aguardo que nasça esse universo.

havia nas palavras o som do vazio: "acho que a virgindade está na nudez"
e de repente pareço estar sozinha, assim sem mais
nessa beleza de tudo mostrar que apaga toda a maldade

"gosto de ter amigos crentes. emprestam-me o sabor da beleza da crença iluminada."
do meu lado fazem-me sentir crente, às vezes
quando as saudades me fazem comichão, naquele sítio onde a respiração se junta com o suspirar

Às vezes abraço-me.
encosto o meu corpo à sensação e deixo tombar nos joelhos, o meu rosto
então o Sol espreguiça-se sobre o mar, desenha uma estrada dourada até ao horizonte
Às vezes apetece-me caminhar por ali

O rapaz andava de gola alta na camisola verde escura, tinha a cabeça como a Terra, achatada, e o rosto branco onde caíam uns fiapos grossos do cabelo cortado à tigela.
às vezes parecia grande e de grande sabedoria, ainda que fosse pequeno e não soubesse o que dizia

a minha casa é onde eu souber fazer pão,
mas às vezes sei que devia ser nómada

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

dormideiras

adorava as vermelhas, ainda que lhes faltasse o cheiro. A mãe tinha-lhe dito que também se chamavam dormideiras, o que a deixara algo inquieta.
- sim, Benedita, dissera a mãe. Quando as pessoas grandes e às vezes as pequeninas não conseguem dormir, põem-se debaixo da almofada e logo se tem um sono mais descansado.
passou a olhá-las de outra forma, às papoilas.

eólicas

quando passo pela floresta de pás de eólicas alinhadas em montes por onde voam os ventos, por vezes penso que a Terra vai levantar voo e vamos encontrar outros destinos.
e logo sei que não, que a Terra não vai levantar voo porque já voa no espaço e entristeço.

pedacinhos do tempo fugaz



é tudo tão fugaz, que o tempo para sabermos da sua existência, escapa-se-nos

.....
quando não falamos as palavras do que sentimos, adoecemos

...
fundamentalmente amam-se memórias

...

quero sentir o teu corpo no meu para saber que existo

...

às vezes perduram os ódios, bem melhores do que rancores

...
não acordo pensamentos já adormecidos

....
sinto-te
arde-me quando não me tocas.
beijo-te, oh! como te beijo

...

o medo sorriu-lhe, estava atrás da porta

...
se eu te sentir
se eu te tocar
tu és toda a música que eu oiço 

....
é tudo tão fugaz, que o tempo para sabermos da sua existência, escapa-se-nos




terça-feira, 22 de outubro de 2019

Asharam, o poeta ou as terras dos caminhos perdidos

Tinha o musgo posto, um verde inquietante feito de vales e montes. A caixa de cartão esperava. era então tempo de construir uma história. Sentou-se no chão, a caixa respirava já...
Sindala sentou-se na beirinha da caixa, olhou interrogativamente Benedita, cocegou-lhe a pontinha do queixo, onde se abre o sorriso do olhar, e perguntou:
- Benedita, que triste olhar é esse?
-disseram-me que era Natal, Sindala.
-Ah!
- Sim, disseram, mas não sei o que é...
- Ah! Vens comigo?
- onde vamos?
- Dentro da caixa Benedita, vês como ela respira já?
- Mas..
 - Dá-me a mão, sim? Isso! um, dois, três, salta comigo
.......................................................
- Sindala, onde estamos?
- Nas terras de Asharam, o poeta..
no horizonte permanecia uma névoa. repousava sobre campos que pareciam verdes e acasalava com uma floresta, de árvores algo dispersas.  

Seguiram pela estrada, quase asséptica. parecia-se com os caminhos sem fim das terras quentes, cortada pela névoa longínqua que não deixava adivinhar o destino.
corria uma leve brisa que lhes afagava o rosto e os dedos e fazia das terras quentes uma memória distante.
- sabes para onde vamos?
- não estou certa. Por aqui perderam-se os caminhos para chegar a Asharam. Dizem que se encontram quando acontece a poesia
- Sindala, choramingou Benedita, como vamos chegar? estou muito cansada. E sentou-se na beirinha da estrada, no começo das fumarolas de neblina que acoitavam  mistérios que a brisa desnudava.
- Escuta Benedita, escuta!
- o que escuto?!
- Shiuuuu!
Foi quando ouviu que a flor crescia. a leve brisa abriu uma brecha na neblina e Sindala gargalhando disse:
- Poesia Benedita, poesia, vês o caminho? Por aqui vamos.
- E já sabes para onde vamos?
- Não estou certa Benedita, mas para aí vamos
Benedita pensou "disseram-me que era Natal". Cocegou a pontinha do queixo e sorriu.

domingo, 20 de outubro de 2019

bonança (após o Leslie - 2018)




gosto do embalo do som do mar, seja como for, mesmo quando levanta medos.
gosto do toque do vento, seja como for, mesmo quando entrega tempestades
gosto da cor da terra, seja como for, mesmo quando escorrega em lamas
hoje havia uma tempestade no pôr-do-sol, um redimir da natureza, da violência passada, há apenas uma semana.
hoje o horizonte é poesia



domingo, 9 de junho de 2019

My love

a tarde era tépida. repercutia uma suave sensação de dolência no corpo, um desejo de abandono aos sons do fim do dia. Num lampejo o voo da cegonha rasgou o lusco-fusco e ecoou a poesia:

so come and breathe me, my love
take my hand at your heart
and dance inside my eyes
e naquele momento parou o mundo. o espaço era eu e tu e pequenos vendavais de melodias. o teu olhar segurou o meu, e os meus dedos tremeram ao tocar os teus.
E entraste em mim, assim, quando o coração me bateu descompassadamente, a alma se me encheu de pirilampos e dançaste no meu  o teu olhar.

you came, my love...




quinta-feira, 2 de maio de 2019

l´amour du vent

- et toi? tu ma fait l´amour, soava uma voz encantada numa melodia doce.
O teu corpo bailava no meu e havia um sussurro amoroso, um sopro de palavras diáfanas e de toques volúveis no meu rosto
e o teu corpo bailava no meu.
Toi, tu ma fait de l´amour comme le vent, avec le vent

as terras dos bailados

no horizonte, o azul assim esticado nas ervas, por entre hastes finas e flutuantes, sussurrou os sons da aragem e do correr da águas.
Senti-te. Sei que és tu, quando te cheiro no sentir do sopro dos teus lábios no meu pescoço, na minha nuca, como pena leve que me alvoroça a alma. e tocaste-me como se o meu corpo fosse porcelana e a minha pele a mais sedosa pétala.
Disseste-me "para além da colina, meu amor, estão as terras dos bailados..." Segui, agarrei no azul do céu e escorreguei. Era como um ninho, quente e aconchegante e a sombra da árvore grande fazia-me cócegas
"amo o luar do teu rosto", disse-te quando te olhei..
e os teus olhos, cheios de vento, disseram-me "meu desejo, meu anseio, como deixar-te ir? como?"
"salta comigo" disse-te "se me queres, respira-me, possui-me a alma"
Saltaste e caminhámos prado adentro, a tua pele colada em mim.
"Amo-te" disse. E fomos pássaros, encantados em danças e cores nas terras dos bailados

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

o cedro e o Sol

havia um cedro.
Era um cedro alto no topo da pequena e doce colina da aldeia. diziam-no plantado pelo avô.
Era tão alto, tão alto que até a pontinha do cocuruto parecia ir para além do azul do céu.
Voava por lá um melro de bico forte, amarelo, como todos os melros.
E voando e voando, ia poisando nos galhos, cada vez mais alto, cada vez mais alto.
Voavam os olhos de Benedita nas asas do melro preto de bico amarelo e com ele subia mais e mais e sempre mais, poisando nos ramos verdes do cedro alto.
E fez-se noite e madrugada.
Soltou.se o melro dos dedos de Benedita e em volteios largos e fortes, por entre os ramos, tocou o céu e poisou no galho mais alto do cedro.
- Canta, disse-lhe Benedita, num murmúrio soprado pelo balancear dos ramos.
e quando cantou e passou o bico para além do céu azul, nasceu o Sol