quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

amado meu amado


encanta-me meu amado, deita-te comigo na eternidade.
Lá, no princípio das manhãs quando o teu olhar toca a curva do meu ombro e os teus lábios se afogam no meu pescoço, meu amado deixa-me acordar no teu olhar.
é que os dias estão cinzentos e me encantou o corpo, a névoa.
desperta-me meu amado, beija-me ao amanhecer,
Lá, no dealbar dos tempos, onde a névoa é o teu sopro, ama-me sofrego, ama-me terno sobre a terra.
eTernamente, meu amado deixa-me viver no teu olhar.
amado meu amado, meu corpo, minha vida deita-te comigo na eternidade.



sábado, 21 de dezembro de 2013

era uma vez...um presépio (tempo1) o musgo

era uma manhã gélida e orvalhada.
Seguiram pela quelha ladeada de muros de granitos soltos em busca dos tufos de musgo que iam atapetar a terra de Deus. não chovia mas o ar estava pejado de gotas que se lhes colavam nos rostos e nas farripas de cabelo que espreitavam sob os gorros de lã. era como uma sauna fria, aquecidos os corpos pelo caminhar apressado, as bocas fumegantes nas faces coradas e um brilho estrelado nos olhares...
os musgos passeavam-se pelo empedrado: uns mais ralos outros mais espessos e verdes mas pequeninos ainda para os propósitos a que se destinavam. O ar frio e molhado não convidava a ir além da fronteira do casario no encalce dos musgos dos pinhais pejados de caruma e pequeninos fetos, por isso era mesmo ali que precisavam de o lascar...todos os pedaços que cobrissem mais que uma pedra eram desejáveis.
Pousarem a cesta. as facas rombas serviam para iniciar a tarefa do desapego da planta à pedra como se de uma esfoliação suave se tratasse de forma a que a placa de musgo se largasse inteira e densa.  não que as mãos fossem a melhor ajuda, que o frio as tornava garanhas e lhes arroxeava as pontas dos dedos, o que significava que uma ou outra placa de musgo se escangalhava quando as seguravam nas pontas insensíveis e as depositavam na cesta.
E a manhã continuava gélida e orvalhada.
- Já está! disse Benedita quando colocaram na cesta o musgo centésimo primeiro. - Anda, vamos, já podemos fazer o presépio. Agarraram no peso das asas, ela de um lado ele do outro, seguiram na volta da quelha, subiram a escadaria e, corredor fora, acolheram-se no fogo da lareira onde a avó resmungava das modernices que faziam ao menino Deus que, dizia ela, devia estar apenas no coração dos homens. Que canseira esta avó- pensava Benedita - mas depois ela havia de gostar.
A roupa fumegava com o calor do lume, tal a orvalhada da rua e sabia bem encharcarem-se no cheiro quente do fumo. as faces afogueavam-se e os dedos ardiam do sangue que por lá voltava a correr. gargalharam e contaram do frio da rua e de como tinham grandes e lindos bocados de musgo. o presépio ia ficar lindo!
a grande pedra de granito, uns calhaus rolados, uns quartzos e as caixas viradas espalharam-se na soleira da janela e vestiram-se de musgo verde, sedoso e húmido, envolvido no céu de cartolina azul escura com milhares de estrelas prateadas. Desenharam monte e vales que pratearam de rios e lagos. Ao longe bem perto do princípio do céu espalharam as areias de um deserto onde poisaram a caravana dos reis magos. semearam carreiros e estradas e bem por baixo da estrela grande o estábulo.
Benedita estendeu-se no chão mãos sob o queixo e achou que aquele era o mais lindo musgo para nascer o menino.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

o tempo de dentro



gostava dos dias compridos, tão compridos que nem tinham tempo. passava os dias compridos a perder-se dentro do milheiral que se abria do outro lado da rua. as canas chegavam ao céu. Eram tão compridas quando olhava o azul lá de cima que acreditava que se as pudesse trepar ia encontrar a terra das fadas.
Acordou num dia comprido, entrou no labirinto verde e saiu do tempo das coisas certas. dentro dos trilhos das canas, por entre maçarocas, barbas e folhas largas ia espreitando o azul por onde chegava a voz da mãe quando era preciso voltar ao tempo de fora. Suspirou, encolheu os ombros e caminhou pelo tempo de dentro. Fechou os olhos e deixou que as mãos fossem esbarrando nos caules e as folhas e barbas mais compridas lhe arranhassem o rosto. sabia-lhe a boca ao milho verde, ainda tenro e leitoso levemente adocicado que costumava rapinar de uma ou outra maçaroca nas suas jornadas. mais p`ra logo haveria de os comer, aos bagos.
- Benediiiiita, Benediiiiiiiita, para casa. Soava-lhe a voz da mãe pelo azul do céu e já tinham passado milhares de tempos. disse adeus às formigas, seguiu o som e entrou no tempo de fora, o certo. Não sabia se havia de contar à mãe da fada, tinha sido há tanto tempo....decidiu que era melhor falar das formigas e dos carreiros.
gostava dos dias compridos, de caminhar no tempo de dentro, sem tempo.

domingo, 8 de dezembro de 2013

olhar do meu amor

gosto que me olhes assim, quando o teu olhar me aquece o rosto e se encanta no meu corpo.
gosto do pudor que me envolve ao caminhar no teu olhar,  que me tomes, que me adores. 
deseja-me então de mansinho, afaga-me com ardor.
fica em mim olhar do meu amor.
gosto que me olhes assim.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

mesmo quando eu não existir?

- e depois?
- depois?!
- ficas sempre comigo, mesmo quando o sol que está no céu estiver quase a morrer?
- sempre...
- mesmo quando eu não existir?
- sempre...
aninhou-se-lhe no colo, escorregou-lhe os dedos pelos lábios e fechou os olhos. O arcanjo envolveu-os e cairam do céu.
o lago baloiçava barquinhos, nenúfares e restinhos de sol.
- olá!
- Olá!
- Como te chamas?
- Basil.
- Ah! Basil eu sou Sindala. Quantos anos tens?
- Humm...esqueci-me, mas disseram-me que muitos.
Basil sorriu, coçou a cabeça e apanhou um restinho de sol.
- Toma, para ti, disse a Sindala.
- Porquê?
- o sol está quase a morrer....
- Ficas comigo?
- Sempre...
apertou-lhe a mão com o restinho de sol, sentaram-se à beira do lago e cairam do céu.
...........
- Olá!
- Olá!
O sol nasceu e olharam-se como sempre.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

as tardes que esperavam os tempos

respirou a vida.
inalou-se das melodias que o sol escrevia nas linhas de vento e lembrou-se das andorinhas pousadas em pautas em dia de partida. Eram nesse tempo dias de ventos, de tardes que esperavam os tempos para o tempo ser. 
Benedita pendurou-se no portão de ferro forjado, trepou pela cancela ao topo da coluna de granito que o alicerçava e pendurou as pernas para o lado da estrada. o céu pintava-se do azul cinzento que o sol deixara ao esconder-se atrás da colina das grandes pedras.
rasgaram o céu enquanto os fios baloiçaram as notas que tinham escrito. Nos beirais os ninhos ficavam sózinhos, aqui e ali umas penas soltas presas nas pequeninas aberturas. Benedita esticou o dorso na pedra áspera a saber ainda ao quente do fim do dia e as andorinhas desenharam dezenas de pontos pretos mesmo no céu que os seus olhos viam.
ouviu a música que o bater das asas tocava. naquele dia soava a harpa. era a melodia escolhida para esperarem o tempo de se saberem o bando daquele dia e partirem, para além do sol.
Benedita partia com elas, um bocadinho, todos os dias. mesclava-se na agitação do bando, e voava o olhar para cá e para lá num adeus de até breve. eram as tarde que esperavam os tempos até a mãe a chamar para a mesa do jantar.
Andava à procura dessa tarde. quando a encontrou respirou a vida, inalou-se de melodias e lembrou-se das andorinhas.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

era o meu amor a amanhecer

quando o tempo não aconteceu
e a morte veio e escureceu
houve uma razão
para te dar a mão
era o meu amor a amanhecer
 era a madrugada do meu ser
quis-te todo o tempo no meu leito
acordar no quente do teu peito
cantar uma canção
gemer uma paixão
ser o tempo todo a acontecer
ser a vida inteira do teu ser

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

a carica

havia um caminho, uma linha de sinuosas e redondas curvas na planície. era sem destino, um caminho que sempre que chegava ao fim voltava de novo a começar. Cansava-me o caminho, cansava-me o destino de sempre começar. Lembrei-me de me lembrar de mim.
"a carica percorreu uns centímetros na borda do lancil.  era a estrela da sua colecção. tinha conseguido acolchoá-la com um pedaço de borracha que lhe dava equilibrio e direcção sem a tornar pesada. garantia-lhe sempre a vitória, a ela naquele grupo de meninos.  laranjina C, eram os dizeres quase sumidos na carica de rebordos gastos de tanta jogatina. Sem ela não entrava na certa na brincadeira dos garotos."
Sentei-me na pedra do caminho. Do outro lado os barrocos descansavam em tufos de giestas e abriam frestas para aléns desconhecidos. Estava meio enterrada na areia do caminho uma carica de letras sumidas de um alaranjado ferroso. Coloquei-a no topo da pedra do caminho e mirei, um olho fechado, a fresta dos barrocos.
A carica voou, percorreu uns centímetros na borda do lancil...
Lembrei-me de me lembrar de mim.

domingo, 27 de outubro de 2013

o cheiro da espiga

estava frio, o frio das primeiras noites de outono, quando os dias ainda são quentes e o Sol encharca em ouro portais, lagos e colinas. a noite adormeceu devagarinho e as estrelas acordaram no céu. Quis-te  na manta que aconcheguei no corpo. Cheirava ao cheiro da espiga da tarde em que te deitaste no meu corpo. E amei-te. a noite encheu-se de luz de lua, abriu-me as portadas do sono embalado e tocou-me a pele de arrepios. do lado de lá esperavas-me. naveguei na nuvem que os teu sonhos me trouxeram. Acordei no calor da tua pele.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

feitiço

se me olhares como olhas o sol,
na viagem até ao leito do mar,
vais tomar-me do corpo a alma
e eu, neste rio que quero navegar
perdida nas vagas de maré calma
cubro-me dos véus do teu olhar.
e se me amares no canto do rouxinol,
encantado no meu fica o olhar teu
e partimos na barca
de um feitiço cantado
neste mar que é o teu corpo no meu

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

desenhou o Outono

desenhou o Outono no fim do ditado. apetecia-lhe mais desenhar a casa, os vasos com flores e o Sol no canto da página, mas a professora queria o Outono.
A lição tinha ficado cheia de folhas a cair, de cores douradas entre o amarelo e o vermelho quente, como se os ventos ali tivessem entrado e revolvido toda a sala. quando assentaram a  professora fez contas de mais e de menos e deixou os problemas para pensarem em casa. Também eram sobre folhas...
Gostava do Outono, até o confundia com Outubro e o tempo das letras e das contas, mas era muito difícil de desenhar porque era difícil desenhar o vento e colorir aquelas cores das folhas...tinha que pedir à mãe a caixa de lápis com o dourado...
Ajeitou-se no banco da carteira e braço arredondado sobre a tampo, em jeito de protecção do trabalho, foi narrando o empenho na tensão com que deambulava a língua sobre os lábios, encostando-a com força desmedida nos cantos da boca, como se assim o vento soprasse no desenho, as folhas caissem e as árvores ficassem com os seus ramos despidos.
No fim, que era o fim da lição, deixou o caderno junto da professora que lhe disse: "- Até amanhã Benedita! Fizeste um bonito desenho".
 - Adeus, professora!, disse Benedita e saiu em correria contida. Encontrou-se à porta com o desenho, mergulhou nas folhas soltas que o vento fazia girar e pisoteou as que se aglomeravam nos recantos do caminho fazendo vibrar criics e crracs pelo ar.
Faltava o Sol, tinha que ficar no canto sobre os galhos nus da árvore do páteo da escola. Desenhou-o, com o lápis amarelo, e o Outono não deixou de ser Outono.

... cogitava consigo mesma e confabulava com os traços e as cores que lançava no papel, era assim como dançar, nem tudo tinha que lá estar...

A professora tinha dito que a lição do outro dia era sobre os frutos do Outono.
Não gostava de desenhar frutos, mas gostava do sabor dos bagos da romã. Encostou a língua bem no canto da boca tirou o lápis vermelho da caixa e desenhou os bagos no galho nu. Amanhã estariam no desenho no fim do ditado.

sábado, 5 de outubro de 2013

E dança...


dança...
e deixa-te vogar entre os meus braços
sonha que o meu corpo baila, no teu entrelaçado
e ama...
docemente, ternamente,
o fogo que o meu corpo emana
e dança...
o teu olhar encantado na pele que uso nua
e sonha...que te tomo vestida de luz de lua
e ama...
ardentemente, perdidamente,
o deserto da minha cama


domingo, 29 de setembro de 2013

nas danças de roda

voa meu amor,
apanha-me nas danças de roda,
leva-me e senta-me na via das estrelas.
voa comigo, meu amor
deixa que o anel caia nas minha mãos
e que eu estremeça para me adivinhares
voa meu amor
entra nos jogos de roda com as flores das nuvens rosa
deita-te comigo sob as estrelas
voa comigo meu amor
adivinha-me por entre as ervas das danças de roda
toca-me com o sol que o teu olhar transporta
leva-me no teu voo, meu amor



sábado, 28 de setembro de 2013

do indizível

há o indizível.
onde a paixão se esconde nas sombras da candeia e dança solta no crepitar do fogo na madeira.
entraram com as sombras. Ficaram os ecos dos corpos, dos sons, da volúpia.
há o indizível.
a paixão acontecida. um outro universo.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

o malote vermelho

tinha um malote vermelho, e o malote tinha uma chavinha. Lá dentro o lencinho de mão a moeda para pôr na missa e a moeda para dar esmola.
Era domingo de manhã, dia do banho de imersão e do aparar das unhas dos pés e das mãos. a mãe vestia-lhe a combinação e a saia de pregas, branca. depois a blusa, os soquetes e os sapatos de domingo. o casaquinho de renda aconchegava o fresquito da manhã e após o passar do cheirinho no lóbulo da orelha agarrava no malote vermelho e descia a escadaria, como senhora crescida.
no caminho até à vila, de mão dada com a mãe, ia saltitando, malote a batucar-lhe nas pernas na evidência de uma chavita em oscilação pendular que guardava mirabolantes segredos e secretos objectos. "Que bonita malinha, Benedita" diziam-lhe as senhoras amigas da mãe na antecâmara de conversas antes da missa, sob o olhar de esguelha de algumas meninas da sua criação. E Benedita sorria e dizia "Foi a mãe que deu".
A missa iniciou, entre orações e pregações, com as vestes de ouro brilhante do pároco, na desenfreada ginástica entre estar de joelhos e estar de pé, até ao sermão, hora de descansar o corpo para estar atenta às palavras sábias do senhor padre. O malote descansou também, sobre os seus joelhos, bem vermelho na fila de crentes. Benedita agarrou na chaveta de duas línguas e abriu o fecho. devagarinho levantou o tampo, e retirou o pequeno espelho que estava na bolsinha interior. Mirou-se, vaidosa, lançando olhares laterais para as suas rivais e esfregou os lábios, como a mãe quando punha batôn. Vitoriosa começou a fechar criteriosamente o malote, dezenas de olhares colocados em si quando, no silêncio das consciências que pareciam ouvir o sermão, o esparvalhado do seu irmão disse:"- Mamã, hoje dá o Piruças?"
Até o malote lhe escorregou, toda a igreja sorriu e acabou-se a atenção.
Mas tinha um malote vermelho, que abriu e fechou dezenas de vezes durante as conversas do adro cheias de sorrisos ligados ao Piruças.
A mãe deu-lhe mais tarde um resto de batôn vermelho que, religiosamente, juntou ao espelho.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

a barca

leva-me contigo
abraça-me
prende-me nos teus sonhos
deixa-me ser rainha
ser alma, dançar a tua calma.
É que hoje
o sol brilha no céu
o mar canta nas vagas
e ao porto chega uma barca,
livre e bela,
no voo das gaivotas...
e o amor voga...voga...

terça-feira, 24 de setembro de 2013

em valsa nua

ondulava o corpo, ancas ao sabor das ondas e o ventre tocado nas cordas de um violino.
prendeu-lhe as ancas e dançou com ela, pés na areia branca e fina da praia, coxas nas coxas, os corpos suados nos sons das teclas, das cordas e dos batuques.
soltou-se nos braços dele, o corpo em valsa nua banhado de luz de lua.
roçou-lhe o colo, a pele dos lábios, os olhos de sonhos fechados.
ergueu-a nos braços e dançou noite fora com ela, em valsa nua.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

a seara em que te amo

quero-te comigo na palha de cheiro a searas,  quando o Sol se deita à sombra das nuvens
que o vento não sopra.
E voo por sobre os campos lisos e doces das terras quentes quando o calor do teu corpo é meu.
e quando o vento sopra
é porque canto no vento o meu amor ardente,
no voo em que te tenho, na seara em que te amo.

sábado, 21 de setembro de 2013

na casa perdida

havia uma casa perdida. estava na esquina da minha memória, preenchida de quartos repleta de sobressaltos. amei-te na casa perdida, no canto aberto para o regato das névoas. amei-te em lençois soltos e na erva do quintal.
entrei no espaço sem porta e sentei-me na rede da cama esquecida. o veludo dos teus dedos perdeu-se nos meus ombros. Cheiravas-me à hortelã do vaso que tinhamos no peitoril da janela.
o vestido escorregou-me da memória e encostaste o teu corpo no meu...acordei nos teus braços.
amei-te assim na casa perdida. guardo no corpo o sabor dos teus lábios a hortelã.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

a gavinha inquieta


cocegou-lhe o pescoço quando tombou da esguia haste. era uma gavinha inquieta e Benedita recolheu-a para junto das flores lilases e cheirosas da ervilheira. Ali, naquela floresta encantada de sombras rendilhadas, o caminho do meio deixava-a entrar no mistério. mal entrava sumia-se o mundo, até o cocuruto da casa deixava de tocar o céu.
bem por cima da sua cabeça a arcada verde enredava-se numa tela quase sumida de azul e de um lado e outro do caminho do meio as canas seguravam gentilmente fiadas de plantas altas salpicadas de cheiro lilás. aqui e ali havia princípios de vagens doces e algumas gavinhas soltas do entrançado da cana.
o caminho do meio não tinha fim, nem tempo.
Benedita ousava-se por lá na perdição do suco doce das vagens, aquelas que mascava quando a mãe debulhava mil e uma ervilhas nas manhãs pardas de primavera. gostava desse encontro antecipado, antes da colheita, quando as flores chiavam cheiros e as vagens tenras  exibiam uma cor amarela desmaiada e suculenta.
percorreu o caminho do meio, sem fim. a borboleta esvoaçou quando a gavinha inquieta tombou. Benedita seguiu-lhe o voo de flor a flor, por entre os caminhos estreitos das fiadas de ervilheiras carregadas de vagens doces e as hastes abriram-se em Tempo. Encontrou Sindala com Zi pousada no ombro. Deu-lhe a mão e seguiram adentro de Tempo, a gavinha enredada no tornozelo de Benedita.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

no silêncio ausente

às vezes é nada, mesmo nada. um silêncio ausente de sons e de imagens.

espreitou o espaço para lá da arcada em pedra. o caminho era estreito e sinuoso por entre dois pedregulhos sólidos. a luz rareava no entrelaçado das copas do arvoredo que sombreavam a cor do dia. o ar escaldava os movimentos e não havia chilreios, nem um!
decidiu cruzar a arcada. a luz cegou-a e envolveu-a o som do silêncio, aquele eco escuro que o ouvido vê ao ouvir. No topo da encosta de um vale profundo cercado de serranias, sem som sem imagem, a eternidade. ficou lá, no silêncio ausente.
passou-lhe uma aragem na pele e galgou dos caminhos do interior.  Poisou-lhe mesmo nos pés o pássaro grande que atravessara o horizonte. Chamou-se Ugardila  porque o pensou.
Então acordou da eternidade.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

a dança do canto


surpreendia-se sempre com o silêncio diferente de todas as madrugadas, como se o som do silêncio corresse em diferentes regatos e ficasse suspenso precisamente antes de saltitar no cascalho seguinte. nesse instante a manhã deslumbrava-se em rosa dourado e aquecia em doces trinados de melros.
-fica...
- vem...
Assim o canto dançava na copa das árvores...
roçou-lhe o joelho pelos recantos das coxas, os dedos perdidos no cabelo sedoso, o corpo cativo daquele calor de aconchego que a manhã em murmúrio queria quebrar... "parte, o sol vai alto".
-Vem, disse-lhe.
- Fica, murmurou...
o silêncio saltitou no cascalho seguinte.
- Volto, e sorriu.
O sol rompeu portadas dentro, louco em trinados de pássaros. Ela adormeceu.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

sonho

adormeceu no acordar da madrugada.
sacudiu os braços e deixou que as gotas deslizassem, pequeninas, sedosas e escorregadias. a água brincava aos rios de prata sobre a sua pele, sulcava brilhos e o sol perdia-se em pérolas no seu ventre.
desejou-lhe o corpo, quente e seco, perdido no seu.
abriu a nuvem solta e a borboleta esvoaçou, pousou-lhe no ombro fresco, sacudiu as asas do cansaço e adormeceu.
acordou antes da alba. enroscou-se-lhe no peito e quis voltar ao sonho.



domingo, 18 de agosto de 2013

Pias, a chegada

a carreira chegou,  pontualmente atrasada. O ronco forte do motor parou com o estertor final da volta da chave na ignição e o veículo abanou como se se fosse partir.
o motorista,  Abílio Passarinho, girou o corpo para os passageiros e passando um lenço amarelado sobre o pescoço suado, arranhou com voz pastosa, de intenso sotaque alentejano:
- "Senhores passageiros estamos chegados a Pias. Quem s`apeia e tem carga venha comigo a levantá-la". Içou o corpo do banco e numa camisa encharcada em suor lá desceu os degraus da camioneta, bufando quase como se arejasse o rosto.
Lúcia esticou as pernas, agarrou o apoio de braço do lugar e puxando o corpo pôs-se em posição de tirar o malote pequeno que colocara na rede sobre os bancos. O vestido branco de saia pregueada que levava, adornado de uns botões grandes, pretos e pérola, colara-se-lhe nas pernas. Soltou-o do corpo e deixou que essa ligeira aragem do movimento do tecido lho refrescasse . Agarrou o chapéu de palhinha, que a mãe lhe tinha arranjado junto dos despojos das filhas dos Manatas. Ficava-lhe bem, e a fita preta que lhe tinha acrescido dava-lhe o ar chique e novo que lhe protegeria o rosto do Sol, no quente Alentejo.
A rádio tocava uma melodia da Maria Clara de que conhecia o refrão, mas o calor seco do meio da tarde e a vontade de esticar as pernas nem à memória lhe trouxeram qualquer vogal. Também se apeavam o senhor padre e o Ernesto da mercearia. Já os conhecia do primeiro ano  que ali passara, "e que ano! Deus meu", pensou Lúcia.
-Então Lucinha - assim lhe chamava o senhor padre - preparada para mais uma etapa? E olhe que agora o calor não deixa muito tempo para a cabeça pensar, verdade não é Ernesto?
- Pois então senhor padre, muitos caldos me arrochou o meu pai à conta do calor...
Lúcia sorriu e retorquiu: - pois senhor padre, o calor convida à sorna, mas eu trago umas ideias, quem sabe não preciso da sua ajuda e os pequenos vão andar mais acordados e...O calor  apertou-lhe o peito, entrava em golfadas pela porta da camioneta e parava ali, denso e rude. Pôs o lenço de mão sobre os lábios para evitar o pó, ainda no ar, que o rodado do veículo levantara e desceu os degraus.
Pias, lá estava, mesmo ali à sua frente, mesmo nos confins da nação, quente e fria. E a vida andava devagarinho.
- Senhora professora Lúcia, disse-lhe Abilio Passarinho que fazia parte dos seus alunos adultos da noite, aqui tem a sua mala. A minha piquena já há-de estar chegando para a ajudar até casa.
- Obrigada Abílio, é muito gentil a sua Amélia.
- Ora, senhora professora, nada de mais e este calor matava a senhora.
Lúcia sentou-se no banco de ferro sob a cobertura da paragem. Estava com o coração acalentado por ter conhecido na viagem tão simpáticas colegas de Beja que logo a convidaram para o fim de semana seguinte. Claro que iria, que em Pias não tinha muito com quem conversar. Brilhou-lhe o olho escuro. Abriu a mala de mão e passou o baton vermelho sobre os lábios. A cor dobrava o calor bravo do horizonte e sexta feira já estava próxima.

noutro lugar (1980)

eu, naquele outro
e a ponta do cigarro ardendo
pensando-me do outro lado
vendo-me, sem me ver
a minha masturbação desgozante
o filtro que me não coa
aquele verde escuro de um céu negro
os outros meus olhos fitando-me
estremecendo-me
o medo da imagem, que eu sou outra
escondida pela cortina de fumo

sábado, 17 de agosto de 2013

a flor distraída

procurou os cachos sob as parras. queria-os de bagos sumarentos e doces, daqueles que se trincam e estalam nos beiços e logo refrescam a boca.
cabia-lhe na palma da mão. era um cacho bem apessoado, quase elegante. desatracou-o da vide, um golpe seco com a navalha, e amparou-o com a mão.
aberto o tapete de plantas verdes por onde passeavam umas cabra-cegas, mergulhou o cacho no fresco frio das águas da mina. e a água dançou ao sabor dos bagos...
Maria mostrava-lhe uma nesga das coxas por entre as folhas desordenadas da hera que enredava o tronco da cerejeira grande. sabia-a recostada na manta a dormitar a languidez, a pele sedosa a aguardar-lhe o toque.
Sorriu. Envolveu o cacho em duas parras e colheu a flor distraída de uma planta que não conhecia o nome. Maria dormia, envolveu-a com o olhar quente e de manso aconchegou-se pertinho dos ombros dela.
-Maria..-sussurrou-lhe- e devagarinho passou-lhe o cacho fresco sobre os lábios.
Partiram de mãos dadas. Maria levava no decote a flor distraída de que Luis não conhecia o nome.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

memória 24

abriu a porta da memória 24.
O azul forte dos vasos da entrada quase lhe magoou o olhar de tão intenso. tocou de leve nas folhas verdes da planta que nunca dava flores e sentiu-as frescas. a passadeira de sisal vermelho debruada a azul estendeu-se pelos degraus e Benedita subiu: um, dois, três, quatro, cinco e ali estava a porta de vidrlhos a separá-la do imenso hall. encostou a testa à pequena vidraça, lá dentro fervia vida. a criada de servir cantava uma moda minhota enquanto esfregava o chão acompanhada por uma pequena imitação de pessoa grande que a par com ela passava a escova no soalho.
era cedo de mais para entrar, não fosse ficar presa na memória 24, e havia muitas outras para reencontrar.
o passadiço devolveu-lhe o som dos passos das brincadeiras que sozinha ali tecera. sentou-se no degrau e encostou ao peito a boneca princesa que costumava enfeitar a cama da mãe. Era a boneca dos dias de brincar sózinha às bonecas porque tinha sempre que voltar a sentar-se no meio da grande cama dos pais. Por isso só saía até ali, à entrada atrás da porta. Nessa altura as folhas verdes das plantas dos vasos azuis cresciam pelas paredes e pelas portas, que nunca abriam, dos salões dos dias diferentes.
Chamava-se Odete a boneca princesa, não era o nome mais apropriado mas era porque era uma boneca crescida e tinha que ter nome de gente grande. Falou com Odete, a ela podia contar-lhe coisas, ficavam com ela, atrás dos seus olhos azuis que fechavam quando a embalava, bem guardadas no sorriso que lhe atirava da colcha de tecido fresco e macio onde se sentava.
O tule da saia comprida de Odete cocegou-lhe o nariz. afastou-o com os dedos e deixou que o raio de sol das cinco horas, das tardes de Inverno, pintasse aquele caminho de partículas  soltas pelo ar e por ali escorregasse o príncipe de Odete.
O pó da memória 24 fê-la espirrar. Fechou a porta e pôs a chave no seu sítio secreto.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

fez-se flor

agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!

---------o postigo batia lento na portada, era o silêncio do tempo quente que o alentava. dir-se -ia que esperava gente. aguardava que o viajante se lhe acercasse, espreitasse e gentilmente levantasse e lingueta do trinco.
o fresco da sombra de dentro puxou-o para o átrio forrado de madeiras claras. o postigo bateu lento. passou-lhe no olhar o eco rubro de um tecido e no rosto a macieza branca da pele. trancou-se o postigo, trancou-o com o corpo na porta.
o postigo bateu lento na portada.o viajante adormeceu os sentidos na manta de trapos sobre o soalho de cheiro a pinho. levantou a lingueta, soltou a sombra fresca na rua e saiu.-------------------------------------

agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

a tempestade

ousava ousar a tempestade. sem ela morria-lhe o corpo, apodrecia-lhe a mente. ousava acontecer-se.  vagueava  nua e, descalça, pisava a terra, a lama. logrou chegar ao sagrado quando o corpo, suado, gemeu de prazer e a névoa a envolveu num lençol aveludado. e adormeceu, assim mesmo, bem dentro da tempestade que ousou.
Cresceu uma folha verde água no ramo solar da casárvore. Balbuína tinha acontecido.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

caminho

envolve-me a emoção de sombras que o sol afaga. a carícia sopra-me a face e os teus dedos percorrem-me o peito. o mar encharca-me a alma e mareja-me o olhar. navego no sopro que os teus lábios desenham no meu ventre, nas vagas que as tuas mãos soltam no meu corpo. o mar alcança-me, belisca-me os pés e faz de mim sereia. Ah! meu amor, meu amado leva-me contigo, caminha comigo. abraça-me na areia, refesca-me a pele e faz de mim amada.  o sol volta amanhã e eu quero caminhar contigo.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Uma História de Amor: Do acto do conhecimento "escreva qualquer coisa, sim?"


                                                                                                "  2-7-958


                                                Sr. Doutor

     Recebi sua carta e muito lhe agradeço a atenção que dedicou à minha modesta pessoa.
     Em presença de tal atenção não podia de forma alguma deixar de responder-lhe, pois julgo que não há carta alguma que não mereça resposta e demais tratando-se de uma pessoa pela qual tenho grande simpatia e consideração.
     Não sei se é disparate dizê-lo, mas creio que acima de tudo está a sinceridade, predicado que muito admiro, e como tal, vou sê-lo para si.É certo que algumas vezes me tenho prejudicado por esta minha maneira de ser, mas não me interessa, ser sincero é adorar a verdade e a franqueza.
     Pois Sr. Doutor, comigo passa-se a mesma coisa, isto é recordo também o desejo de nos podermos encontrar e falarmos um pouco, trocarmos as nossas impressões, mas creia que nunca  pela cabeça me passou que o sr. Doutor teria o mesmo desejo, pois mesquinha como sou sentir-me-ei um pouco inferiorizada junto de si. O nosso convívio foi pouco, por isso pouco ou nada dissemos, e muito poderíamos ter dito, mas no meio daquela confusão, daqueles olhares indiscretos, limitámo-nos apenas a saborear a música que parecia às vezes embalar-nos e a observar as reacções de cada.
     Muito gostava de estar mais uma vez com o sr. Doutor para falarmos um pouco, pois tenho sempre grande prazer em conviver com pessoas com mais conhecimentos do que eu, para não cristalizar. Aqui é impossível esse convívio.
      As pequenas de Moura convidaram-me para ir passar o domingo com elas, mas disse-lhes que não pois receava que o sr. Doutor pensasse que só ia lá por sua causa. Teria grande prazer se o visse e lhe falasse, mas desisti e resolvi ir a Beja ver uma "matinné" se a houvesse ou visitar umas amigas. Como vai também, essa notícia deu-me imensa alegria, pois como é o desejo de ambos, temos assim a oportunidade de nos voltar a ver e passear um pouco, talvez sem terceiros.
      Pode ser? devo ir daqui na auto-motora das 11h e 8m a não ser que queira ir na da tarde, o que para mim é um pouco tarde porque às 6h toda a gente anda passeando e como conheço lá muita gente é um bocado aborrecido se me vêem sózinha consigo.
     Escreva qualquer coisa, sim?
     Sou a Lucilia ao seu dispor.

P.S. Não me troque o nome."



                                                                             "15-7-958


                                           Meu querido



Não podes imaginar quanto me custou passar o domingo. A todo o momento me estava lembrando de ti.

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Estou como tu a contar os dias pelos dedos,mas parece que o tempo não anda, só quando estamos juntos é que ele foge.
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Dizes então que as algarvias ainda não te fizeram esquecer-me. Fico-te muito grata pelo amor que me dedicas e para ti meu querido vai todo o meu carinho, todo o meu amor.
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E pronto querido. Dize lá se não fui tua amiguinha, escrevendo logo após a recepção da tua carta? Para ti serei sempre pronta a escrever-te, mas não sei se te aborrecem as minhas longas cartas,

Num grande abraço beija-te a tua    Lucilia"

(in cartas de uma história de amor- espólio pessoal)

domingo, 21 de julho de 2013

a brisa

o mar estava cálido,acariciava a pele. as ondas batiam suaves. rolavam em espuma branca no verde transparente das águas, cavalgadas pelos inúmeros surfers de fim de tarde.
Cobri-me de mar, flutuei por entre a espuma e vi desenhada a estrada de prata até ao Sol. A brisa passeava por entre o quente, beijava-me os lábios de sabor salitre.
Lia, a princesa, pincelou os pés de areia e correu nos regatos de água de mar deixados pela maré baixa. O pequenino beagle corria atrás dos pássaros e Lia soltava risos de contentamento.
No areal a brisa soprava a luz do sol, o cheiro do sal, o som das ondas do mar.
Lia abraçou o mundo e pulou-me no colo. o som do fim do dia escorregou-me no olhar húmido e quis assim a eternidade.
Lia apontou o Sol e disse: "-Tátá"

sábado, 20 de julho de 2013

deitou-se em mim

deitou-se em mim, amou-me assim
sem tempo
com todo o tempo
perdeu-se em mim
beijou-me o ventre, mordeu-me ardente
soltou-me ao vento, num barco quente
navegou-me o corpo, de porto em porto
sem tempo
com todo o tempo
encontrou-se em mim
deitou-se em mim e amou-me assim

quarta-feira, 10 de julho de 2013

na tua rua

passei na tua rua e entrei devagarinho. o pássaro azul abriu-me a porta.
passeei na tua rua, um rendilhado de sombras e luz com os sons do amanhecer. os sons frescos do amanhecer quando os dias são tórridos e gélidos.
o amanhecer pintava, na tua rua, as ondas do meu corpo, curvas de sedutoras sombras. o pássaro azul bicou-me as orelhas. e tu chegaste, entraste na tua rua, nas sombras sedutoras do meu corpo.
o amanhecer aquecia devagarinho os recantos da tua rua. o pássaro azul saltitou-nos no redondo dos nossos ombros, chilreou o sol da manhã e aninhou-se no meu pescoço.
hoje ou ontem, não sei, passei na tua rua. o pássaro azul voou sobre os meus cabelos mas a manhã esqueceu-se de amanhecer.
acordei ao amanhecer, nos sons frescos do pássaro azul poisado na minha cama. lá, no centro da tua rua.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

as improváveis palavras

saltou, caiu na arena do improvável e rasgou as palavras já construídas. procurou as frases na plateia e de repente estava no país de Pequenu...o gnomo que vivia no país dos livros grossos e que lhe acalentara a infância. É que aí as letras eram grandes e não precisava de óculos e o livro era gordo mas lia-se depressa.
procurou a mudança da marcha atrás porque a chave não rodava na ignição. mas a verdade é que não conseguia juntar os pedaços espalhados. e o atoleiro aumentava e escorregava, escorregava....
saltou, caiu na arena das improbabilidades e reconstruiu o vazio. tinha atravessado um buraco negro e suspendera-se no tempo.
Abriu os olhos e lá estava na biblioteca itinerante, a casinha de cheiro a livros e cheia de histórias. Levava um novo Pequenu, quase tão grande quanto ela.
- Benedita, disse a mãe sorrindo-lhe, vamos minha filha. Deu-lhe a mão e pulou no empedrado. Suspirou e deixou-se ser menina, por um bocadinho, na história das palavras que tinha rasgado. Tinha encontrado o colo da mãe.

Iluminavam a avenida

caminharam como se os corpos não se tivessem emaranhado e o cheiro das peles húmidas não inebriasse as folhas das árvores da alameda. sorriram uma cumplicidade disfarçada que as mãos desejavam demonstrar.
Iluminavam a avenida, o sorriso que a ela lhe bailava no olhar, o orgulho que a ele lhe gingava nas ancas. - "ninguém vai saber, dizia-lhe, caminha assim, só ao meu lado" e ajeitava-lhe um caracol sobre o rosto. é que era inseguro deixar imaginar!
Seguiram, lado a lado, o cheiro de um no cheiro de outro, o corpo de um no corpo de outro. e lado a lado, conversa fiada de rua, atiravam-se nos braços um do outro, enredavam-se em sôfregas carícias e gemiam prazeres imensos. E sorriam das memórias que só eles sabiam.
É que era delicioso deixar imaginar!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

tenho-te no cheiro...

sei saber-te pelo cheiro. sei se te gosto, se te quero comigo no corpo, se é na carícia que te anseio.
saboreio-te pelo cheiro. sinto-te o sal suado, a viscosidade do barro, o sabor a esteva e alecrim.
sei que te  quero no cheiro. ter-te em mim, volúpia de chocolate menta, onde adormeço o cansaço, e acordo a poesia.
tenho-te no cheiro.... por aí te encontro se me perder.

domingo, 9 de junho de 2013

o lado contrário do sol

ela saiu assim. o peito apertado de uma saudade tão grande quanto a chuva que caía dolente nos sábados dos dias cinzentos. era por isso uma saudade que escorregava na calçada por onde os seus passos ecoavam. o eco dos saltos, ouvia-o nas gotas de chuva.
ele estaria no cabo do mundo, numa nau de madeira à espera de levantar âncora. assim ela lhe aconchegasse a saudade do peito mal as gotas de chuva lhe invadissem a amurada.
apertou-a no peito, a saudade feita de presença ausente. embalou-a nas velas que os suspiros enfunaram e zarpou, rumo ao lado contrário do sol.
amou-a na gota de sol  feita da saudade da chuva dolente.

domingo, 2 de junho de 2013

o baloiço perdido

a aragem traz-me o som das vigas onde o baloiço geme. estou mais perto do céu, a copa da velha tília ao alcance da minha mão, os cabelos soltos a rasar o chão quando lanço os pés para ir mais longe. assim viajo nas linhas que os meus olhos tecem, na rota que me traz de lá para cá, de cá para lá, uma viagem sem princípio nem fim na cadência forte do universo escondido no baloiço do meu jardim. e vogo na barca dos sonhos, na espuma das nuvens brancas, ao sabor do vento que faço quando o meu corpo se abre e balanço, só balanço...o sol navega comigo,baila nas pontas do horizonte, lambe-me a pele e aquece-me o rosto que o vento arrefece.
a aragem traz-me o som das vigas onde o baloiço geme. entre o quente e o frio procuro o baloiço perdido do meu varandim
leva-me, vai vem do vento que faço.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

o sagrado

o coração saltou-me do peito, desastrado, enrubesceu-me as faces e as palavras colaram-se na garganta. Engoli em seco, tremi da cabeça aos pés e humedeci os lábios. As tuas mãos seguraram-me o rosto e a tua boca aproximou-se da minha. o tempo tornou-se espaço e o meu corpo deixou a existência. o mundo era a tua boca sobre a minha. sempre sobre a minha, entre o romance e o drama.
e queria-te a esmagar-me os lábios como pluma, tua na eternidade do teu beijo, sem tempo, só espaço onde a minha boca preenchia a tua.
olhei-te no brilho doce do teu olhar e tocou-me a alma o sagrado.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

tempo de aurora

agarrou no sol caído sobre o empedrado da rua. pendurou-o na ponta da cor azul, aquela que fazia uma dobra sobre a ombreira da porta. devagarinho a luz foi crescendo do meio do sol para o meio da rua. as sombras agitaram-se nas laterais e foram sendo empurradas para os cantos.
Tomou-lhe as mãos e sentou-se com ela na soleira da porta. O sol subia no azul que lhes pintava as fronteiras. Contou-lhe um conto: "- que ela viria quando as cores gemessem no arco-íris".  e limpou-lhe com os dedos a lágrima roliça que lhe saltara do olhar.
Balbuína encostou-se-lhe no ombro e decidiu ser ouvidora de histórias. Saberia assim da vinda da princesa. Por enquanto ia-lhe tecer a manta dos sonhos. É que Tempo precisava do Sol pendurado no gancho eterno.
Basil acariciou-lhe o rosto, sussurrou-lhe "quero-te" e Balbuína sorriu.
xxxxxxxxx
Zi bateu as asas e salpicou Lia de pó de borboleta. A pequenina princesa agitou os braços numa dança louca e gargalhou o ar.
nasceu o tempo da aurora.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

...agora

 ...... agora leva-me até ao sul, sempre até ao sul onde os ventos correm quentes.
é que aqui o vento norte arrefece-me o corpo.
e eu quero abraçar-te o corpo húmido que me devora e secar-te a sede por donde me sorves.

....agora leva-me no galope que me percorre o olhar quando o sabor do vento se enlaça na erva seca.
é que aqui o vento norte arrefece-me o corpo
e eu quero afagar-te por onde cavalgamos, enroscar-me no dorso quente e suado do fim da viagem.

....agora leva-me a achar o sol que me sorri do topo da grande tília onde os ventos correm ledos.
é que aqui o vento norte arrefece-me o corpo.
e eu quero dançar-te na alma, voar na viagem do teu olhar e ficar na barca em que navegamos

...agora

leva-me aos ventos quentes e aquece-me o corpo

quarta-feira, 15 de maio de 2013

sopro


pintaram-se no azul da paisagem
e das cores dos pincéis escorregaram
depois num sopro se fundiram
descolaram dos corpos, as pinturas
e no peito um do outro se impregnaram.

Ele


pintou-o na paisagem.
soprou-lhe e ele, ele escorregou do pincel
depois fingiu que ela era a paisagem
descolou-a do corpo, à pintura
e ficou com ele pintado no seu peito.

Ela


pintou-a na paisagem.
soprou-lhe e ela, ela escorregou do pincel
depois fingiu que ele era a paisagem
descolou-a do corpo, à pintura
e ficou com ela pintada no seu peito.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

o véu: do sagrado e do profano

o véu era rendilhado, matizado em diáfano preto carregado de flores douradas. envolvia-a de mistérios, assim o colocava sobre os cabelos e passava a porta da igreja. cheirava por isso a sagrado e a profano porque pleno de equívocos (aquelas sombras de luz que a nave projectava e o altar reflectia em mirabolante epifania).
Benedita adorava ficar à beira da mãe no banco corrido da nave. olhava-a de esguelha e via-a princesasanta, devota na oração, épica nos cânticos ao Senhor. envolta na luz de sombras apagava o mundo à volta e por momentos eram só elas, Benedita e sua mãe, e as sombras profanas raiadas da sacrossanta luz do altar.
Ai! que lhe lampejava o olho pela cobiça da mantilha da mãe. queria-a só por um bocadinho, um poucochinho de tempo e embeber-se naqueles mistérios da luz e sombra, ser princesa e santa, ser mulher menina. A mãe achava que era a mantilha de tule branco, com um rendilhado de bolinhas a que lhe ficava bem, porque era menina e às meninas ficava bem a alvura da inocência.
Um dia os padres disseram que já não era preciso ter os cabelos cobertos pelos véus e a mãe começou a deixar a mantilha em casa. a luz de sombras da igreja mudou, os mistérios esconderam-se atrás das colunas e do altar dourado.os cabelos desnudos da mãe pareciam-lhe um pecado porque então podia desejar a sério o véu dos mistérios.
Curiosamente a mãe emprestou-lhe o véu para ela brincar, quando um dia o descobriu no fundo de uma gaveta e o colocou sobre a cabeça. Ainda tinha o peso dos equívocos mas faltava-lhe a leveza dos mistérios. emocionada, aplicava a mantilha bem ajustada sobre os cabelitos curtos e com a mão atirava uma melena de véu para o alto. E assim errou, em brincadeiras de meninice com a convicção de ter um longo e belo cabelo.
O véu voltou ao fundo de uma gaveta, permanece-lhe o cheiro do sagrado e do profano, e os equívocos de sombra e luz.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

beijou-a sem a beijar


olhou o baloiçar do trevo no campo. a flor roxa seduzia-lhe o olhar. queria roçá-la por entre os seios, passeá-la na dobra do joelho, deixá-la adormecer sobre a sua orelha.
Envolveu os cheiros seus nos da flor de trevo roxo.
Ele colheu-a, beijou-a sem a beijar. Ao de leve poisou-a nos seus lábios, a flor, e ela surgiu a baloiçar por entre o trevo.
Tomou-a sem a tomar, quando se alijou no campo e a envolveu, flor de trevo roxo, nos cheiros seus.
olhou o baloiçar do trevo no campo, beijou-o sem o beijar, tomou-o sem o tomar.
vestiu-se de flor de trevo roxo e deixou-se amar, por entre os seios, por sobre o dorso por todo o corpo.
deu-lhe a mão, levantou-a do trevo, sacudiu-lhe as flores roxas do cabelo e beijou-a sem a beijar...

terça-feira, 30 de abril de 2013

as terras do fim

tinha o toque das pétalas, tão suave e doce, tão cálido e intenso por tão breve.
a brisa passava mansa nas colinas do vale, agitando a primavera.
Benedita suspirou e ajeitou-se no leito de esteva e giesta. Tinha cruzado o regato das terras do fim, ali onde os ventos segredavam carícias. Tinham-lhe dito que nas terras do fim a água beijava os lábios que a bebiam e as pessoas acordavam nos seus sonhos de meninas. Agitou a cabeça e espraiou os cabelos sobre os cheiros da esteva. o deslizar salpicante do regato murmurava-lhe o caminho da fonte.
rolou sobre o corpo e aspirou o fresco da flor de giesta. deslumbrou-se com os tufos de amarelo intenso que atapetavam o relevo e a água chamava-a...como rasto de esteva quente caminhou para o fim das terras do fim, onde estava a fonte.
encostou-lhe os lábios e acordou no sonho.
tinha o toque das pétalas, tão suave e doce, tão cálido e intenso por tão leve.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

o silêncio de mim

encontrei-me com o silêncio de mim. era um cais de partidas e chegadas, de pontes entre movimentos. os bancos estavam despidos de gente, excepto aquele que lá ao fundo quase se perdia na bruma do silêncio. chegava de lá o som vago de uma melodia, uma canção de embalar "..vai-te embora gavião.....deixa dormir o menino..". Aqueceu-me o coração, pintou-me de rubor a face e embalei no meu peito o sonho.
os saltos soaram sólidos quando caminhei para o o fim do cais, onde nascia a melodia.
- Olá, - disse eu à menina de chapéu de palha e balão na mão - como te chamas?
- Benedita - disse-me olhando-me de olhar esperto. Saltou do banco e cantarolou .."de cima desse telhado"..deu-me o balão e desvaneceu-se na bruma!
- Olá!- disseram-me do banco, num som cálido e doce - come se chama?
- Benedita - disse eu.
- Sente-se comigo Benedita, - disse-me a mais bela anciã - cante-me uma canção.
Cantei-lhe uma canção de embalar. Ela encostou os cabelos brancos no meu peito e adormeceu.
Encontrei-me com o silêncio de mim, um cais de partidas e chegadas.

domingo, 21 de abril de 2013

no teu sopro


o vento soprou de mansinho. amaciou as paredes sujas do mosteiro e transportou o grasnar das cegonhas pelos meandros sombrios das entranhas das ruínas.
Lá dentro as heras caíam em grossas melenas pelos torreões e o mundo parecia acabar.
"E tu,
no voo das cegonhas
levas-me no teu sopro, o breve instante do ondular do meu cabelo no teu rosto, quando em mim te encostas e  o meu dorso esmagas no tronco da oliveira.
e eu
levo-te no meu sopro, o breve instante em que foste vento, quando em ti me embebo, trepadeira verdejante do tempo de primavera"
as cegonhas agitaram o silêncio das paredes, como um sopro, cortaram o azul do céu.
- até onde nos encontrarmos com as estrelas, quero que me leves no teu sopro! disse-lhe Sindala.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

o looping e a carruagem de cristal

por vezes o nada encharca de tudo aqueles momentos...zen?! então fecho os olhos...............................

embalo o corpo e danço. de repente a estrada faz um looping e o carro cai. o caminho é estreito e jinga nas colinas da serra, dança comigo uma dança de roda mas está difícil saber quem tem o anel.
O sol amarra-se no horizonte na hora dos dourados e vermelhos quentes, por vezes lascivos. A dança percorre um espaço que se julga floresta e eu finjo que ainda uso diáfanos tecidos e que posso voar. Cheguei ao cabo. o farol abre caminhos no escuro. não sei se escorregue para a água se embarque nas sombras das ravinas. a estrada em looping mudou-me o horizonte, é agora o cruzeiro do sul que me ilumina o céu, ainda que eu saiba que não é aí que estou.
Ah, bom ali está uma porta. passo, porque não sei se entro se saio e encontro-me com as acácias, naqueles cachos de pó amarelo...parece-me que o sol veio ter comigo.
um abraço rodeia-me o colo e o bafo quente do meu amor chega-me ao coração. no meu regaço descansa o rosto, no meu regaço o acaricio.
o looping da estrada desfaz-se. o carro torna-se a minha carruagem de cristal. agora vou cinderela em busca do sopro no meu regaço, talvez escorregue para o mar...
O Sol picou-me as pálpebras, espreguicei os olhos e acordei. Sorri quando olhei a carruagem de cristal e o meu amor me bafejou...

domingo, 14 de abril de 2013

sabes-me a sal

saboreou-lhe o corpo. o sal que o sol lhe secara na pele adoçava-lhe os lábios. sentia-lhe a pele quente e o roçar ondulante de sal e de moura.
Quis-lhe os lábios sobre o peito, um beijo em regato no leito da nuca, desaguado na boca, salgado ardentemente salgado.
e o mar agitava-se-lhes nos corpos, vagas intensas e cavadas, o sal a morder-lhes a pele. Ele entre as coxas dela, ela nele enlaçada.
roçou-lhe os dedos sobre o ombro, afastou-lhe o cabelo da testa, sobre a orelha. beijou-lhe a ponta do nariz e descansou-lhe o rosto sobre o peito.
- Sabes a mar, princesa!
- Sabes-me a  sal, amor.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

remanso

se me imaginas, vivo
se me imaginas, morro
porque te imagino,
de amor vivo e morro.

se me imaginas, desperto
se me imaginas, descanso
porque te imagino
de amor desperto e descanso

se me imaginas, porque te imagino
em ti vivo e morro
em ti desperto e descanso
amor, meu amor
meu remanso

sábado, 30 de março de 2013

melancolia

envolvo-me com a melancolia, uma profunda ausência de sentir o teu corpo enroscado no meu, assim como se a procissão  do Senhor dos Passos, invadisse a minha alma e o olhar triste da Senhora me levasse ao suspiro último.
a aragem que sopra cresce no tremeluzir das velas. aconchego a minha ao peito e a luz brinca com as sombras do meu rosto. A Senhora segue-me ou eu sigo a Senhora; o andor acompanha-me, Ela vestida de roxo, ardente de dor, eu vestida de melancolia, ardente de paixão (e era ainda menina naquele tremeluzir). Os cânticos entoam-se iguais, tristemente lamuriosos, ardentemente apaixonados. Prepara-se a ressurreição.
envolvo-me com a melancolia, um tempo de desejo incompleto. amanhã quero o teu corpo no meu.

sexta-feira, 29 de março de 2013

sussurro

respiro, resgato, revivo
rapto o que rasgo, retorno
renovo, resigno
rebato o que rogo, rezo
rumo ao recato,
sussurro

respira-me, resgata-me, revive-me...


quinta-feira, 28 de março de 2013

o grilo e a primavera e a cigarra

não sei porque naquele tempo tinham uma gaiola com um grilo, mas  tinham. Todos os anos naquele tempo havia o dia de apanhar grilos. Era antecedido da compra da pequenina gaiola plástica, por norma vermelha e amarela, no dia da feira. No dia da caçada, desandavam em bandos pelos campos e montavam umas pequenas armadilhas com caixas de fósforos e folhas de alface e com paciência esperavam que os grilos caíssem no logro. Os gaiatos mais expeditos apanhavam-nos com as mãos, mas eram poucos os que o conseguiam.
Grilo apanhado, caminhada de regresso a casa. instalava-se então o bicho na gaiola e durante uns dias a gaiola era espaço de romaria quando o grilo cantava, quando o grilo comia, quando o grilo se agitava
Benedita não achava grande piada ao insecto preto, que também ao fim de poucos dias acabava por morrer, nem dava tempo de gostar dele. Um ano o grilo passou com eles todo o tempo do Verão. extraordinariamente não morreu depressa. Cantava todos os dias, parecia feliz em cativeiro, foi até preciso levá-lo na viagem até à aldeia. e foi, na sua gaiola muito compenetrado, no porta chapéus do carro, nem cantou. Benedita gostou dele, era tão resistente aquele grilo, ultrapassou o tempo dos outros grilos todos e cantava todos os dias. E todos os dias comia da alface que Benedita lhe dava através das grades.
Ainda que encantador continuava a ser aquele insecto preto pouco convidativo que de dentro da gaiola lhe sussurrava gri-gris de amor. Era sempre primavera no tempo do grilo cantante...Até morrer! Benedita ficou triste e, pela primeira e última vez fez o enterro do grilo.
Numa certa altura deixaram de ter grilos.Assim como gaiolas.
E a primavera distraiu-se.
Sem tempo  do canto da cigarra  Benedita procura o grilo que atravessa o Verão, a ver se chega a Primavera. é sempre bem vindo, sem gaiola.

terça-feira, 26 de março de 2013

o talo de couve

escorregou pelo talo da couve.
o tempo de Tempo tinha madurado a menina princesa. Zi cuidara que os ventos soprassem zelosos de lhe amaciar a pele e refrescar o rosto. Ugardila trazia-lhe as sementes e as gotas de orvalho que as plantas lhe ofertavam. Lia sorrira, balbuciara, acordara e sentara e começara a abrir as folhas da couve galega. e Tempo estava triste, só a couve protegia Lia do cinzento mundo de fora.
-Oo..lá, balbuciou Lia, e agitou os braços em alegre contentamento. - Olá, disseram-lhe Zi e Ugardila. - É tempo, Lia, de viajar, disse-lhe Zi. - Xim, disse Lia, voá, xim.
Aproximou-se da beira e escorregou pelo talo da couve. Em voo Ugardila acoitou Lia no dorso, e partiram rumo ao centro de Tempo. Zi foi acordar as fadas.
No talo de couve nasceu um pedacinho de sol.

pérola de mim

larguei-me de mim. assim, sem mais nem menos, larguei-me.
 Puff! assim soou quando me larguei de mim e acordei pérola numa concha. soltei-me da concha e puff! acordei donzela envolta num manto. despi-me do manto e escolhi-me a mim de quem me tinha largado. encontro-me largada de mim, pérola e donzela.

domingo, 24 de março de 2013

e foi no barco grande

e foi no barco grande.
À saída do cais a chuva caía, miúda e revolvida nas rajadas curtas dos ventos marinhos. Ao longe, bem fundeado, o navio aguardava sob um céu cinzento a carga que havia de lhe chegar, da ilha.
Entraram no barco pequeno. O malote vermelho e o senhor do bote esperavam-nos. dentro do barco   formava-se um pequeno lago, sob as traves grossas da base.
- a menina ponha os pézinhos aqui, para não se molhar, e a senhora agarre-se bem com as cordas e encoste os meninos a si, que a viagem ainda é comprida e as vagas estão picadas! disse o timoneiro.
o barco arrancou, motor em cadência lenta, a singrar as ondas em jogo de curvas que o mar estava fresquinho. a chuva envolveu-se com os salpicos do mar e fustigou-lhes os rostos e as mãos sob a capa de um resguardo plástico. Benedita escondeu a cara no peito da mãe para afastar o medo e só pensava na sua casa de armários vermelhos...
Chegaram lá, a uma parede preta imensa no meio do mar, o navio. Benedita estremeceu, encostou-se no calor da mãe que lhe dizia "vai minha filha, passa para lá" e, olhando o abanar agitado da beira do bote, bem encostado à escada de ferro daquele muro preto achou que não queria ir.
Um ligeiro toque da mãe e a mão estendida do marinheiro de farda preta e, zááás, ficou com os pés sobre o primeiro degrau, da escada de ferro, o maior deles todos. por baixo, no espaço vazio entre os degraus dançava um mar picado que parecia puxá-la para o abismo.
ao rosto chegavam-lhe os salpicos de chuva e de mar que lhe davam um gosto salgado nos lábios e lhe empapavam os cabelitos curtos. Concentrou-se na saia de pregas e nos sapatos de verniz pretos, deixando que o marinheiro a guiasse pé atrás de pé, até estar segura no convés.
Quando olhou a ilha tinha ficado, presa no fundo do mar, a baloiçar com as vagas em dança com o Infante.
E Benedita foi, o mar picado no intervalo dos seus passos.
Meia terra, meia mar foi, com gosto de sal, no barco grande.

sexta-feira, 22 de março de 2013

síndrome

quando ele chegou ainda não era Primavera
e a primavera que ele era entrou na primavera da rua como um vento frio
e essa primavera que soprou um gelo duro nos corações que o amavam
fez-se doce primavera do sorriso aberto que ele era
e o que ele era,  poesia pura
era
um manso vento por ramos verdes
um ser diferente por tão igual
uma ternura

ele era poesia, magia encantada de peças de teatro
folha verde da floresta antiga, menino de encanto tão breve

meu breve irmão amado, síndrome da mais doce primavera

quinta-feira, 21 de março de 2013

o navio


chegou-se à beira do recorte do retrato, estendeu a mão e os dedos mergulharam no vai vem das ondas. o navio apitou grave e prolongadamente, partia para o continente. a ilha mergulhava na sua própria história esperando as novas na volta do Santa Maria.
Benedita pulou a cerca da fotografia mergulhou os pés na areia da praia e perdeu o olhar no barco grande... o pai sorriu-lhe, o navio apitou de novo, e Benedita decidiu ficar, por ali.

domingo, 17 de março de 2013

tombaram no cetim

sussurrou-lhe atrás da orelha "quero passear os meus lábios sobre os teus".
e passeou, num toque húmido, logo de seguida seco,
um beber de frescura de um oásis no deserto.
e prendeu-lhe os lábios entre os seus, e num aveludado quente
sussurrou-lhe sobre os lábios "quero-te no meu corpo"
e tomou-lhe as coxas sobre os flancos,
prisioneiro dos braços dela, do sopro dela
do arfar dela
sudados de paixão, corpos nus e quentes
tombaram no cetim.

sussurou-lhe atrás da orelha "quero assim a eternidade"
ele murmurou-lhe "sim".

sábado, 16 de março de 2013

quando quiser

queria, quando puder
poder partir,
quando quiser
levar corpo e tudo
e não perder
o que sei de mim

domingo, 10 de março de 2013

o sol azul

um dia o sol nasceu em cor azul e os homens espantados ficaram a olhar para um sol azul no céu azul!
-azxul, avó!? e Lia sorria.
- Sim, princesa, azul, tão azul que o céu ficou cor de prata. Então as cores começaram a mudar e os homens ficaram esquisitos porque já nada era certo. Começaram por ter fome e depois sede porque já não sabiam como era a cor do trigo e a cor da água.
-Aba, avó, vem com a Lia à aba.
- Sim, flor, vamos.
- E depois, avó?
- Pois, depois os homens não sabiam o que fazer, tinham medo de tudo e não sabiam como viver sob um céu azul. precisavam de um aventureiro para experimentar, assim como tu fazes, meu amor, a brincar!
- a Lia gota de brincá, pode ser a Lia vó, pode? - Pode sim, Lia, mas os homens demoraram muito tempo a encontrar o aventureiro, porque se tinham esquecido dos meninos e das meninas e, entre os homens ninguém se quis aventurar. Foi quase no fim do dia de azul que repararam que as crianças pareciam chapinhar no que parecia ser um regato e lambiam nos lábios umas coisas estranhas.
"Elas sabem, as crianças sabem" correu o segredo pelo mundo e os homens voltaram a conhecer o trigo e a água nos sorrisos das crianças. Ah! e o Sol voltou a ser dourado.
- Poquê, avó?
- por ser o teu sorriso, Lia. o Sol é o sorriso dos meninos e das meninas.
Lia, deitou-lhe os braços roliços no pescoço, deu-lhe uma beijoca e desatou em corrida na areia dourada.
O sol pulsou um raio azul, de feliz.

sexta-feira, 8 de março de 2013

as magas

conheci-as já velhas. a curandeira e a bruxa. a doce e a agreste.
"Esmelindra", complicavam-lhe o nome na aldeia, dura e seca. Tinha sido mãe menina, analfabeta, criadora de sete dos doze filhos. Amou, amou tanto que nem sabia deixar-se amar.
Adelaide, a doce e risonha curandeira. escritora de longas cartas à minha mãe, escrita de fim de século, letra de caligrafia desenhada. Amou, amou tanto e sabia deixar-se amar.
Não dei conta delas durante, pelo menos não tanto quanto hoje queria.
Existiam, tinham saberes exóticos e excêntricas formas de vida.
São magas da minha vida, nas histórias que me deixaram.
Deusas de um tempo breve agora eterno.
"Esmelindra" a bruxa, Adelaide a curandeira, deixaram-me poderes mágicos.
a viagem com Lia é numa vassoura. Até à eternidade

deusas

 deusas da terra, deusas do sol
deusas do ventre, deusas da lua
ágeis serpentes de sedução
moiras ardentes na devoção
frágeis meninas de força dura
belas mulheres de esperança crua
deusas de terra, deusas da lua
mater eternas de bens maiores
mulheres de esperança
mulheres de sol
dançai na luta
bailai no amor

um tempo quente

aquece-me como o sol, torna o meu corpo um tempo quente,
aquece-me como a neve, torna o meu corpo um tempo branco
aviva-me a pele. Fá-la roçar-se leve com a tua e abrir um universo.
veste-me de espigas e coroa-me de papoilas, ama-me como à terra
abre-me regos, rega-me de orvalhos...

aquece-me como o sol, torna o meu corpo um tempo quente

quinta-feira, 7 de março de 2013

a peregrinação: é bom ser longe

era longe, mas era bom ser longe. Ser perto perdia o encanto da paciência, perdia a essência da peregrinação.
Em Cuzcar todos os lugares eram longe. Cada partida era antecedida de mil preparos. No mínimo havia uma merenda e sempre um agasalho para a manhã mais fresca ou aconchegos de fim de tarde. no caminho cruzavam-se sempre viajantes e, na estrada até Balbuína, trocavam-se histórias, por vezes em silêncios, na procura da manta das memórias.
Basil descobriu-se na viagem. Ainda não sabia para onde ia, mas começou a seguir os trilhos de outros caminhantes. Reparou que não tinha alforge quando a fome lhe segredou que os viajantes iam merendando.
Sentou-se na berma, sobre um tronco onde tamborilou os dedos. Havia um malmequer a desabrochar na ponta e Basil sentiu-se acompanhado. Contou-lhe a história do caminho que tinha feito e percebeu que era tempo de ter companheiros. Foi quando eles passaram, um grupo de viajantes. trocavam palavras e risos e ali junto ao tronco abrandaram o passo e olharam-no: - Olá companheiro, disse-lhe um sorriso aberto de um rosto de mulher, podemos juntar-nos no seu espaço e repousar o corpo? - Claro, respondeu Basil. Chegou-se ao malmequer e a fome voltou a apertar-lhe o estômago ao ver os nacos da pão e queijo que os viajantes merendavam e receoso perguntou: poderão dar-me um pouco de pão e queijo? A mulher de sorriso no rosto logo lhe deu e perguntou: Não se preparou para a viagem, caro companheiro? - Pensei que era perto, quando entrei em Cuzcar, disse Basil enquanto dentava sôfrego o pão com queijo, mas já percebi que é longe. Já fiz um longo caminho, senhora de sorriso no rosto!
-Sindala, disse-lhe a senhora de sorriso no rosto, sou Sindala. Fez uma breve pausa olhou Basil segurou-lhe na mão e disse-lhe: queres acompanhar-nos na viagem?
Basil sorriu e partiu, com eles. Sabia-lhe bem ser longe, estava em peregrinação.

domingo, 3 de março de 2013

dançaram de paixão

o horizonte corria à sua frente. a noite era escura e a rua alaranjava com o reflexo dos candeeiros no piso molhado. Aconchegou-se, na breve separação do frio e da humidade, no casaco astrakan comprido, herdado da sua mãe.
os saltos batiam no empedrado e corriam a par do horizonte. era uma cidade escura numa noite escura. a chuva parara mas as nuvens teimavam em esconder a lua, e a cidade era escura.
o horizonte tinha-se mexido de novo e deixara uma nesga no céu escuro. escapou-se por ali um riacho de luar.
os passos soaram mais rápidos e o horizonte corria. a rua chegou a uma praça e aí desaguava o riacho de luar. o piso era de prata, luzidio.
do outro lado, do horizonte, soaram outros passos e ele surgiu, casaco escuro solto sobre as ancas, chapéu de aba descida sobre o olhar.
escorregou-lhe o astrakan. o vestido de cetim vermelho humedeceu-lhe a pele. deu passos com o horizonte no riacho de prata enluarado. levantou o braço rodeou-lhe o pescoço e encostou-se-lhe bem no peito. Caminharam  em andamento tenso ao contrário do horizonte.
Dançaram de paixão.
Ainda hoje lá estão, no riacho de prata do luar, na noite da paixão

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

a semente



Era uma vez uma semente redondinha de cor castanha. A semente queria ser semeada, ficar aconchegada nos grãos de terra quente e entrar em amena cavaqueira com as sementes suas vizinhas. agradava-lhe o banho refrescante do fim do dia, hora em que relaxava a pele e podia dar aqueles guinchos loucos de euforia. as outras sementes suas vizinhas também se agitavam, loucas. os grãos de terra começavam um samba que acabava em tango e abriam pequenos espaços em volta da semente. algo crescia, germinava uma pequena vírgula que fazia sorrir a semente. quando as sementes sorriram todas, a terra encheu-se de virgulas. dali nasceria a revolução.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

a travessa cor de prata

a mãe tinha um malote de verga, como um baú e, por isso, cheio de improváveis delírios. a proibição de lá mexer fazia-lhe uma terrível comichão nos dedos curiosos, por isso o dia da limpeza do malote era extraordinário. Naquele dia foram para a saleta rodeada de janelas onde encostavam umas banquetas, como divãs, com almofadas largas. a mãe começou, meticulosa, a separar objectos: o monte dos deita fora, o monte dos ver como fazer e finalmente o dos para voltar a guardar, iam-se organizando sobre a almofada e Benedita podia remirá-los, tocar-lhes e fascinar-se com aquelas coisas belas da mãe.
como era bom experimentar o baton bem vermelho que todos os dias a mãe usava! e abrir a bolsa prateada das moedas que tilintava como uma caixa de música e o pequeno frasquinho de perfume...
"- Mãe! põe mãe para eu cheirar bem!" e a mãe sorria e com o dedo passava-lhe um leve odor por trás das orelhas e ela ficava logo com cheiro de mãe.
Nesse dia, já de lábios carregados em vermelho forte e cheiro de Tabu, descobriu um estranho pente, que  a mãe lhe disse chamar-se travessa e que lhe segurava o encaracolado dos cabelos pretos. Era uma bela travessa cor de prata, com uma flor desenhada. Encostou-se à mãe, de pé sobre o divã, e desatou a passar-lhe a travessa nos cabelos, deixando que se soltassem ondas fortes dos caracóis largos do cabelo da mãe. e a travessa ia e vinha numa lenta dança no cabelo da mãe. de vez em quando Benedita parava, puxava o rosto da mãe para si e dizia: "ainda não estás mesmo linda mãe, vou pentear outra vez." E a mãe pespegava-lhe uma beijoca rechonchuda e doce.
Foi naquele dia também, que a avó, aquela personagem estranha, sempre de preto, lhe deu uma caixa de música já esventrada e fascinante, porque se via o som da música.Tocava uma Avé Maria que ia bem com os caracóis da mãe e com o remendar das roupas da avó.
Foi a caixa de música, o mistério que guardou. a travessa voltou ao malote-baú.
O cheiro do cabelo da mãe solta-se com a Avé Maria de Schubert. Nesses dias os cabelos de Benedita enchem-se de belas e largas ondas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

no labirinto do milho

um dia falei com ela.
foi no dia em que acreditei que o vento de gelo, velado, existia e me queimava o rosto nas manhãs pardas dos invernos da vila. Só se fala com ela quando sabemos que há vento, e a pele se avermelha, nas bochechas e na ponta do nariz, e nos sai um bafo quente que se perde no ar. Ela era estranha, quase não existia, pelo menos nunca lhe vi a bochecha vermelha do frio e isso  era como não existir. Mas estava lá, atrás da parede da Casa Grande, no sítio das perguntas.
Não lhe queria perguntar nada, porque nada se pergunta a quem quase não existe, por isso falei com ela, como se existisse. Gostou de mim, ela. É que eu disse-lhe que até podia existir desde que ficasse com a bochecha e a ponta do nariz vermelha.
Nesse dia não me entrou o frio na alma nem a manhã parda me escondeu no labirinto do milho.
Esqueci-me de lhe perguntar o nome...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

dá-me a mão

dá-me a mão, entrelaça os teus dedos nos meus, e fecha forte os teus dedos com os meus.
abre a mão devagar, escorrega os teus dedos nos meus e deixa que aí nasçam suaves ondas do mar.
dá-me as mãos, prende-mas nas tuas e escorrega os teus dedos sobre a pele dos meus braços.
deixa que os meus dedos, bem devagar, se demorem na palma da tua mão.
dá-me a mão e deixa que o ruído do silêncio se encha do som das tuas mãos.

sábado, 26 de janeiro de 2013

no vento quente

um dia esperei por ti, lá onde o sol cheira a deserto e a hortelã me apaga a sede.
lá, naquele calor feito de vento ainda hoje espero por ti
e daquele momento, em que fiquei presa no teu olhar
vogo ainda no vento quente

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

fica comigo...

e com o indicador tocou-lhe o queixo e, num jeito de branda energia, virou-lhe o rosto para si: - Estás linda!, disse.
- linda! repetiu, num sussurro quente, e roçou-lhe a pele com o olhar.
Suspirou devagar, quase sem som, para esconder o tremor do corpo. olhou-o, o rubor a colorir-lhe a face.
desejou atirar-se de braços, apertá-lo no peito e morrer de paixão.
Suspirou  e humedeceu os lábios: - obrigada, disse, vemo-nos depois. afastou-lhe a mão e virou-se para a rua.
- Fica comigo...
atirou-se-lhe nos braços, varreu-o de ternura e ficou.

Foi assim Benedita- dizia-lhe a oliveira- que Basil e Sindala se amaram e eu nasci!

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

o prédio

na vila as casas sorriam e choravam sobre as ruas, as praças e as calçadas. Algumas aconchegavam-se em becos estreitos, outras desenhavam-se como canteiros em pátios rodeados de parreiras. Aí, as janelas abriam-se para intimidades de tímidas volúpias, cheiros mais frescos nos pátios, mais húmidos nos becos.
Nesse tempo, das casas, nasceu na vila, o prédio. Não se aninhava no corpo da vila, estava ligeiramente fora, como as casas de campo, mas era um prédio.
Exercia o fascínio de uma catedral, porque não era uma casa.
viviam lá três, isso mesmo, três meninas da sua  criação. Eram filhas de mães mais lindas, sempre muito bem ajeitadas (era o que pensava na altura) e tinham a sorte de viver no prédio. Foi assim que pode conhecer um prédio e brincar nos seus segredos, muito parecidos com os das catedrais.
E, era verde, muito verde! Mas podia ser verde porque era o prédio. A verdade é que gostava mais da alvura das casas da vila, o prédio era apenas uma viagem à modernidade.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

vou contigo à lua

quase sempre perdia-se. decidiu por isso que o melhor era estar num prado. para não se perder nem se encontrar. Apenas colheria flores sem as colher. entrançaria o vermelho das papoilas com a alvura dos malmequeres.
para onde o olhar fugisse não veria dentro ou fora somente o azul bem junto ao amarelo do prado e os caminhos desenhados, para além do horizonte, em encarnado-branco.
deu-lhe a mão. seguiram pelos entrançados, cruzando-se, perdendo-se e encontrando-se, ela grande, ela menina. Quando chegaram ao horizonte ele já lá não estava, esgueirara-se para mais além, outra vez a beijar o prado dourado.
- Sabes?!- disse ela menina- encontrei uma escada para chegar à lua. queres vir comigo? Ela grande, sorriu, acenou que sim e disse: - Leva-me contigo!
Caminharam. nunca mais se perderam.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

a gata vadia

Havia uma gata, sem nome. Era vadia aquela gata, uma gata vadia! Aninhava-se no seu colo e ronronava mansinha e quente. Benedita acariciava-lhe a macieza do pelo do lombo e ela roçava a pata no seu nariz, como quem se coça de ternuras. Decidia então cambalhotear e aninhar-se em sentido inverso. Encostava-lhe o rosto àquela macieza do pelo e fazia-lhe fosquices. Era quando ela, aquela gata vadia, tremelicava as orelhas, em espasmos de plena langura e se espreguiçava toda, barriga virada para cima, no seu colo e quase dele caía sobre o degrau da escada. Depois, satisfeita, saltava aristocraticamente para a pedra do degrau e lentamente afastava-se pelo caminho, rabo empinado de ponta rolada. Lançava no ar um miado doce e desaparecia por entre as ervas do campo de trás. Era o fim da manhã e a mãe quase a chamava para o almoço e nesse quase Benedita pegava no seu João chorão e embalava-o nos seus braços, ronronando como a gata vadia.

Toca-me, meu amor.

toca-me meu amor! baloiça-me nas cordas do desejo que o cheiro da tília envolve.
Toca-me meu amor, envolve-me o corpo no teu abraço e respira-me de beijos sobre a nuca.
Baloiça-te comigo, meu amor, deixa que a aragem nos afague a pele e as cordas nos queimem as mãos.
Faz-me um baloiço, meu amor, deixa-me morrer num vai-vem de paixão que o cheiro da tília adoça.
toca-me meu amor. dá-me a mão e leva-me contigo ao jardim das tílias! quero andar de baloiço.
Toco-te meu amor quando me baloiço nos sonhos sob a tília...toco-te meu amor!