terça-feira, 23 de agosto de 2011

arroubo



Espreguiçou o corpo num arroubo de sensualidade, arrepiando de nervuras a brancura do lençol fazendo com que o olhar preso do seu homem viajasse pela sua pele e em seco engolisse a luxúria do momento.

-Joaquim, seu tonto, disse, não me olhes assim.

Escondeu o olhar, baixando levemente o queixo olhando-o semicerradamente, fazendo beicinho, enrolando uma melena do seu cabelo no indicador. E assim desafiava a idade, sentindo-se de novo princesa, inocente e sedutora.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

entrar em Tânger

mohamed chamava-se o primeiro marroquino que encontrámos à chegada a Tânger.
A noite ia alta, era já madrugada, as confusões linguísticas impediram-nos de fazer a travessia de fronteira no barco, no tempo anunciado. Como castigo e em conjunto com outros quantos desatentos, saímos após o desembarque de todos os passageiros, efectuadas as formalidades de entrada no país. Mochila às costas iniciámos a caminhada de uma longa e escura via, do barco até à cidade, apenas interrompida por um fiat 600 que albergava um jovem casal espanhol, em lua de mel, e um conjunto infinito de malas e pacotes que atestavam até ao tejadilho o banco traseiro da viatura. -"se van con cuidado" e "buena suerte" foram as últimas palavras, aportuguesadas, do elemento masculino que tanto insistira em nos dar boleia, por causa dos perigos que podíamos correr, escusando-se a perceber a impossibilidade de o fazer pela ausência de espaço, que a companheira permanentemente lhe referia "mi amor", dizia " no puede, no hay espacio".
Na avenida, já na cidade, abriam-se luzes brancas e fortes dos candeeiros de rua, que contrastavam com a luminosidade amarelada e desmaiada do corredor de saída do porto de Tangêr, ladeado por múltiplos contentores que escondiam sombras e os perigos de que o amigo espanhol nos quisera prevenir. Não os vimos nem os sentimos pelo que continuámos a caminhada sem receios, apenas procurávamos alojamento.
Não ia ser possível acampar, como tínhamos planeado. O parque era fora da cidade e não havia transportes àquela hora. Pouca era a gente que circulava e começámos pelas pensões, que em número alargado naquela zona, poderiam ter quartos. Estava tudo cheio "no rooms", nada! Nem nas duas tentativas que fizemos em hóteis que ficavam já fora do nosso planeamento financeiro.
E continuámos a caminhar por Tangêr, de madrugada, em ruas escuras e apertadas, sem mapas, sem destino, à procura do hotel que nos daria guarida e, sem medos.
Não sei se estaríamos perdidos, achávamos que não porque procurávamos algo, mas não sabíamos por onde andávamos. O cansaço estava a ser complicado e equacionávamos a possibilidade de voltar à avenida luminosa e procurar dormitar na zona da estação de comboios. Foi quando, naquele nenhures onde ainda não nos tínhamos cruzado com vivalma, surgiu Mohamed, o marroquino que julgávamos impossível: louro de caracóis anelados, com uns lindíssimos olhos azuis, de jeans e polo . Nem acreditávamos, por momentos julgámos ser a maior patranha, porque o julgáramos estrangeiro, como nós. Árabe, era quase impossível, mas era.
E era mesmo madrugada, talvez entre as duas e as três da manhã, Mohamed levou-nos para dormir à casa de "verdadeiros" marroquinos, apesar da nossa insistência e preferência por pensões. E se foi fácil confiar em Mohamed que nos contou a história da sua família e da sua ascendência francesa, foi fácil também desconfiar e recear quando entramos naquela casa de luzes moles onde uma marroquina matrona e suposta dona da casa nos abriu a porta e nos conduziu, por corredores sombrios, ao quarto onde dormimos.
Ainda se trocaram conversas com Mohamed, que nos quis assegurar que ficávamos bem e nos garantia a sua presença no dia seguinte com um esforçado pequeno almoço de frutas e a sua companhia para nos guiar pelas terras de Marrocos. É na despedida, com um maravilhoso sorriso de dentes brancos, e por falta de experiência e informação nossa, que ao dizer-nos que gostaria de beber um scotch, para celebrar este encontro, que entendemos que tínhamos que pagar a amizade e a disponibilidade.
Pagámos-lhe uma cerveja, pensámos, porque o valor foi Mohamed quem o fez, ainda que o tenhamos negociado. Porta do quarto fechada, sem chave, o sono e o cansaço venceram o receio da completa ausência de referências de onde estávamos e com quem estávamos. Do outro lado da porta não sei que medos por lá residiam, para nós eram mesmo ameaças.
De manhã lá estava Mohamed, com duas meloas cortadas, e uma nova vontade de comemorar. A matrona surgia agora um pouco mais simpática na despedida.
Para nós começou o planear da fuga à simpatia de Mohamed que tinha já uns amigos que nos levariam naquela manhã soalheira de Tânger a Tetuã.


terça-feira, 16 de agosto de 2011

revoluções

era 1974, mas não era o 25 de Abril, era 16 de Agosto. Uma revolução na família.Vinha ao mundo Ana Margarida a irmã caçula, inesperada prenda da menopausa semi-anunciada de minha mãe.
O fluxo menstrual tinha parado aos 47 anos e, como qualquer mulher, julgou estar no início da menopausa rapidamente confirmada pelo médico após os testes à probabilidade de gravidez.
Tal como a convulsão social que começava a marcar o país também o corpo de minha mãe ameaçava uma guerra estranha que ela mal compreendia. O cansaço que associava às aulas nocturnas que tinha para completar o 7º ano do liceu acrescido de uns estranhos "gases" que lhe revolviam a zona do estômago e um lento mas contínuo processo de engorda colocavam-na na massa de mulheres que tinham estranhos sintomas nessa passagem à idade da não procriação.
O 25 de Abril foi quase um "fait divers" naquela angústia, naquela revolução que o corpo não entendia e a mente não processava. Lidar com as manifestações e com as incursões que os filhos, menores ainda, faziam por essa onda de vibrantes alegrias e vontades era uma simples forma de lidar com as regras, algo que o seu corpo parecia na altura não entender.
Também naquele ano, calhara em sorte à família, 15 dias de férias na FNAT, no Algarve, algo quase improvável, mas deliciosamente agradável e que, apesar do 25 de Abril, se iria manter como prémio merecidamente ganho.
Mas aqueles estranhos gases que remexiam sobre o estômago não silenciavam, ainda que o soutiã de base descida os tivesse acalmado, o cansaço permaneceu mesmo acabado o calendário escolar. A breve confidência que me fez, pelos meus catorze anos, dava conta de uma angústia de morte:
" - Não sei que tenho minha filha, já fiz todos os exames, radiografias e sei lá mais e nenhum remédio me põe bem. Estou preocupada, devo ter alguma coisa muito grave". E calava a dor de não saber. "- O médico quer que eu faça outro teste de gravidez, só para tirar todas as dúvidas, mas acho que é uma perda de tempo.." Frases para não terem resposta, a que eu prestei uma atenção relativa, até que alguns dias passados, creio que em inícios de Junho de 1974, explode uma bomba: "- Vou ter um bébé, diz a minha mãe com um leve sorriso maroto (que hoje sei deveria estar marcado por imensa incerteza), os gases são um bébé". Foram imensas as histórias à volta desses gases que "faziam lembrar um bicharoco", imensos os incómodos por acompanharmos uma mãe grávida (ninguém tinha filhos com aquela idade), imensa a alegria da aventura de mais um(a) e imensa a ansiedade de um filho(a) sã(0).
Éramos três, o mais novo, meu saudoso irmão, era portador de trissomia 21 e o diagnóstico, aos seis meses de gravidez, quando soube estar grávida foi aterrador: "pode ser normal, mas tem grande probabilidade de ser igual ou pior."
Mas, a grande epopeia daqueles meses foi não perder os 15 dias de férias ganhos na FNAT.
Era assim a minha mãe, uma mulher revolucionária, que não sabia que o era: a revolução da sua vida aos 47 anos foi garantir o usufruto de umas férias para toda a família, pelas quais todos os anos batalhava, em Albufeira, na FNAT.
A 1 de Agosto partimos, enxoval de bébé e berço a bordo. Oito horas de viagem pela sinuosa serra do Caldeirão.
A 16 de Agosto, em Faro, nasceu Ana Margarida, nome degladiado com nosso pai que desejava a perpetuação de nomes familiares, pesados. Uma linda princesa de um desejo não desejado.
Ainda foi à praia, em Albufeira, em Agosto de 1974.
Foi minha mãe heroína em 1974 e minha irmã a eterna lembrança dessa força.


domingo, 7 de agosto de 2011

Sem roupa

Gosto da linha do meu ventre. Deixou de ser plano. Exibe um doce abaulamento por ter aconchegado os filhos que pari.

chega um tempo em que o corpo rejeita a roupa. É um tempo em que o corpo gosta de si como é e se cansa da roupa a que não se ajusta. O corpo desenha-se aí em histórias e emoções e quer-se assim amado, assim vivido.

Gosto de mostrar a linha do meu ventre, sem roupa. Descubro por isso que estou no tempo da Terra.
Ainda não saí, nua! De manhã repetem-se as rotinas e eu ainda viajo com roupa.
Amanhã sim, vou descansadamente parir o meu corpo, por aí.