quarta-feira, 17 de agosto de 2011

entrar em Tânger

mohamed chamava-se o primeiro marroquino que encontrámos à chegada a Tânger.
A noite ia alta, era já madrugada, as confusões linguísticas impediram-nos de fazer a travessia de fronteira no barco, no tempo anunciado. Como castigo e em conjunto com outros quantos desatentos, saímos após o desembarque de todos os passageiros, efectuadas as formalidades de entrada no país. Mochila às costas iniciámos a caminhada de uma longa e escura via, do barco até à cidade, apenas interrompida por um fiat 600 que albergava um jovem casal espanhol, em lua de mel, e um conjunto infinito de malas e pacotes que atestavam até ao tejadilho o banco traseiro da viatura. -"se van con cuidado" e "buena suerte" foram as últimas palavras, aportuguesadas, do elemento masculino que tanto insistira em nos dar boleia, por causa dos perigos que podíamos correr, escusando-se a perceber a impossibilidade de o fazer pela ausência de espaço, que a companheira permanentemente lhe referia "mi amor", dizia " no puede, no hay espacio".
Na avenida, já na cidade, abriam-se luzes brancas e fortes dos candeeiros de rua, que contrastavam com a luminosidade amarelada e desmaiada do corredor de saída do porto de Tangêr, ladeado por múltiplos contentores que escondiam sombras e os perigos de que o amigo espanhol nos quisera prevenir. Não os vimos nem os sentimos pelo que continuámos a caminhada sem receios, apenas procurávamos alojamento.
Não ia ser possível acampar, como tínhamos planeado. O parque era fora da cidade e não havia transportes àquela hora. Pouca era a gente que circulava e começámos pelas pensões, que em número alargado naquela zona, poderiam ter quartos. Estava tudo cheio "no rooms", nada! Nem nas duas tentativas que fizemos em hóteis que ficavam já fora do nosso planeamento financeiro.
E continuámos a caminhar por Tangêr, de madrugada, em ruas escuras e apertadas, sem mapas, sem destino, à procura do hotel que nos daria guarida e, sem medos.
Não sei se estaríamos perdidos, achávamos que não porque procurávamos algo, mas não sabíamos por onde andávamos. O cansaço estava a ser complicado e equacionávamos a possibilidade de voltar à avenida luminosa e procurar dormitar na zona da estação de comboios. Foi quando, naquele nenhures onde ainda não nos tínhamos cruzado com vivalma, surgiu Mohamed, o marroquino que julgávamos impossível: louro de caracóis anelados, com uns lindíssimos olhos azuis, de jeans e polo . Nem acreditávamos, por momentos julgámos ser a maior patranha, porque o julgáramos estrangeiro, como nós. Árabe, era quase impossível, mas era.
E era mesmo madrugada, talvez entre as duas e as três da manhã, Mohamed levou-nos para dormir à casa de "verdadeiros" marroquinos, apesar da nossa insistência e preferência por pensões. E se foi fácil confiar em Mohamed que nos contou a história da sua família e da sua ascendência francesa, foi fácil também desconfiar e recear quando entramos naquela casa de luzes moles onde uma marroquina matrona e suposta dona da casa nos abriu a porta e nos conduziu, por corredores sombrios, ao quarto onde dormimos.
Ainda se trocaram conversas com Mohamed, que nos quis assegurar que ficávamos bem e nos garantia a sua presença no dia seguinte com um esforçado pequeno almoço de frutas e a sua companhia para nos guiar pelas terras de Marrocos. É na despedida, com um maravilhoso sorriso de dentes brancos, e por falta de experiência e informação nossa, que ao dizer-nos que gostaria de beber um scotch, para celebrar este encontro, que entendemos que tínhamos que pagar a amizade e a disponibilidade.
Pagámos-lhe uma cerveja, pensámos, porque o valor foi Mohamed quem o fez, ainda que o tenhamos negociado. Porta do quarto fechada, sem chave, o sono e o cansaço venceram o receio da completa ausência de referências de onde estávamos e com quem estávamos. Do outro lado da porta não sei que medos por lá residiam, para nós eram mesmo ameaças.
De manhã lá estava Mohamed, com duas meloas cortadas, e uma nova vontade de comemorar. A matrona surgia agora um pouco mais simpática na despedida.
Para nós começou o planear da fuga à simpatia de Mohamed que tinha já uns amigos que nos levariam naquela manhã soalheira de Tânger a Tetuã.


1 comentário: