sábado, 28 de maio de 2011

a avó, a menina e o peru

Nem era hábito comer peru, mas naquele ano a minha avó tinha-os criado, e ia ser o nosso almoço de Natal, um peru.
A meio da tarde preparou-se o alguidar grande de latão, e quase ao lado um mais pequeno onde a minha avó tinha já colocado uma boa dose de vinagre. A banqueta estava preparada, mais ao menos entre os dois recipientes, e atrás ardia um fogo de vime intenso que aquecia quase de repente a grande cozinha e puxava um bom lume aos cavacos que haviam de fazer ferver a água do caldeirão.
- Oh Maria Eufêmia, chamou a minha avó a mulher que há uns meses a ajudava, vá-me a pegar o garrafão da aguardente e um copo dos pequenos, e não se esqueça da funila.
- Sim Dona, respondeu a Eufêmia, tragola já.
- Então vá, avie-se que eu vou a buscar o peru. Ouviste Maria Adelaide, não te ponhas a mexer em nada! Até estremeci, que a minha avó era de poucas falas, por vezes parecia que nem existíamos. Mas na minha cabeça ruminava uma grande inquietação. Só me lembrava do frango que tinha corrido sem cabeça por toda a cozinha, por eu ter assustado a empregada com os meus gritos de pena.
Eis que chega a minha avó a arfar, o peru, enorme, bem agarrado pelas asas, com um farrapo enfiado na cabeça. Como a minha avó era bem pequenina, o peru quase lhe chegava ao pescoço, e era estranho aquele desafio de forças, as penas pretas e as vestes pretas, uns meio grunhidos e uns "glu-glus" pouco nítidos, que a minha avó com a outra mão bem que lhe apertava o gargalo.
- Oh Maria Eufêmia, então a aguardente ainda se está a fazer? Avie-se mulher que já aqui está a pirua, dizia a minha avó num grito meio guinchado, e logo se calou dirigindo-se para o banco com o peru a estrebuchar de tal maneira que pensei que ela ia parar ao chão antes de se sentar.
- Estou a ir Dona, lá se ouviu a Eufêmia num sonoro grito desnecessário porque acabava mesmo de passar a porta da cozinha.
- Vá pouse aqui tudo e agarre-me o peru, ordenou a minha avó passando para a Eufêmia aquela tarefa meio louca e começou a encher o copo com aguardente enquanto falava entre dentes para ela própria. Sentou-se naquele banco baixinho e enquanto a Eufêmia, com uma mão, agarrava as asas do peru e o entalava com as pernas, com a outra mão ajeitava a base daquele pescoço enorme e vermelho onde se destacava o pendente, para que a minha avó quase docemente lhe forçasse a abertura do bico, entre o indicador e o polegar, e pela goela foi-lhe vertendo a aguardente até o pequeno copo esvaziar.
Estava tão espantada que me atrevi a perguntar; porquê? E era mesmo, era mesmo para o peru ficar tão, mas tão bêbedo, que quando começasse a matança tudo acontecesse com imensa tranquilidade. Dizia a Eufêmia que as piruas não são como as galinhas, a força é tanta e têm o pressentimento, que bicam e estrebucham e fogem, assim quando estão atontados fica tudo mais fácil. E no meio destas explicações e de mais uns copos sorvidos pelo peru, ao qual a minha avó tinha também tirado o fiapo que lhe tapava os olhos, terá a Eufêmia lassado a força que com as mão e as pernas segurava o peru, saltando este, literalmente para o meio da cozinha e entre glu-glus insanos com soluços entrecortados da bebedeira começa a zigazear pela casa em velocidade feroz, batendo nas paredes escorregando pelo chão de madeira à procura da primeira oportunidade de saída.
- Vá a fechar a porta, gritava a minha avó, agarre-o. E a Eufêmia corria esbaforida pelo corredor, com o peru a conseguir fintá-la ainda que com a dificuldade da tonteria vinícola. Eu, a desejar que o pássaro ganhasse, mas sem saber como, que ele era mesmo maior que eu. E o cansaço e o alcóol tomaram conta do bicho que finalmente acabou nas mãos da Eufêmia, que arfava e mostrava uma cara tão ou mais vermelha que o pescoço do peru.- Dê-mo cá, ruminou a minha avó, já com um facalhão na mão, as pernas abertas para aí o apertar. - Segure aí o alguidarzito e apare-me o sangue.
O peru já mal se mexia, nem um glu-glu lhe soava quando a faca fez o corte profundo, que lhe agitou fortemente o corpo e lhe fez entoar uns glu-glus molhados e esmaecidos. Aquele poderoso bicho morria sem sentir a dor, dizia a minha avó, por estar bêbedo, e era assim que tinha que se fazer.
Escaldado na grande tina, depenado com a minha ajuda, passou a ser imaginado como o apetitoso e tostado naco que no dia seguinte ia ser o nosso assado, e só quando no corredor juntei algumas das penas que lhe tinham fugido no insane desatino, me apeteceu ter tido a altura suficiente para ter fechado as portas à Eufêmia e deixá-lo encontrar a oportunidade de escapar.
No dia seguinte achei o peru delicioso.

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