a carreira chegou, pontualmente atrasada. O ronco forte do motor parou com o estertor final da volta da chave na ignição e o veículo abanou como se se fosse partir.
o motorista, Abílio Passarinho, girou o corpo para os passageiros e passando um lenço amarelado sobre o pescoço suado, arranhou com voz pastosa, de intenso sotaque alentejano:
- "Senhores passageiros estamos chegados a Pias. Quem s`apeia e tem carga venha comigo a levantá-la". Içou o corpo do banco e numa camisa encharcada em suor lá desceu os degraus da camioneta, bufando quase como se arejasse o rosto.
Lúcia esticou as pernas, agarrou o apoio de braço do lugar e puxando o corpo pôs-se em posição de tirar o malote pequeno que colocara na rede sobre os bancos. O vestido branco de saia pregueada que levava, adornado de uns botões grandes, pretos e pérola, colara-se-lhe nas pernas. Soltou-o do corpo e deixou que essa ligeira aragem do movimento do tecido lho refrescasse . Agarrou o chapéu de palhinha, que a mãe lhe tinha arranjado junto dos despojos das filhas dos Manatas. Ficava-lhe bem, e a fita preta que lhe tinha acrescido dava-lhe o ar chique e novo que lhe protegeria o rosto do Sol, no quente Alentejo.
A rádio tocava uma melodia da Maria Clara de que conhecia o refrão, mas o calor seco do meio da tarde e a vontade de esticar as pernas nem à memória lhe trouxeram qualquer vogal. Também se apeavam o senhor padre e o Ernesto da mercearia. Já os conhecia do primeiro ano que ali passara, "e que ano! Deus meu", pensou Lúcia.
-Então Lucinha - assim lhe chamava o senhor padre - preparada para mais uma etapa? E olhe que agora o calor não deixa muito tempo para a cabeça pensar, verdade não é Ernesto?
- Pois então senhor padre, muitos caldos me arrochou o meu pai à conta do calor...
Lúcia sorriu e retorquiu: - pois senhor padre, o calor convida à sorna, mas eu trago umas ideias, quem sabe não preciso da sua ajuda e os pequenos vão andar mais acordados e...O calor apertou-lhe o peito, entrava em golfadas pela porta da camioneta e parava ali, denso e rude. Pôs o lenço de mão sobre os lábios para evitar o pó, ainda no ar, que o rodado do veículo levantara e desceu os degraus.
Pias, lá estava, mesmo ali à sua frente, mesmo nos confins da nação, quente e fria. E a vida andava devagarinho.
- Senhora professora Lúcia, disse-lhe Abilio Passarinho que fazia parte dos seus alunos adultos da noite, aqui tem a sua mala. A minha piquena já há-de estar chegando para a ajudar até casa.
- Obrigada Abílio, é muito gentil a sua Amélia.
- Ora, senhora professora, nada de mais e este calor matava a senhora.
Lúcia sentou-se no banco de ferro sob a cobertura da paragem. Estava com o coração acalentado por ter conhecido na viagem tão simpáticas colegas de Beja que logo a convidaram para o fim de semana seguinte. Claro que iria, que em Pias não tinha muito com quem conversar. Brilhou-lhe o olho escuro. Abriu a mala de mão e passou o baton vermelho sobre os lábios. A cor dobrava o calor bravo do horizonte e sexta feira já estava próxima.
Em defesa da língua portuguesa, este blog não adopta o "Acordo Ortográfico" de 1990 devido a este ser inconstitucional, linguísticamente inconsistente, estruturalmente incongruente (para além de, comprovadamente, ser causa de crescente iliteracia em publicações oficiais e privadas, na imprensa e na população em geral)
domingo, 18 de agosto de 2013
noutro lugar (1980)
eu, naquele outro
e a ponta do cigarro ardendo
pensando-me do outro lado
vendo-me, sem me ver
a minha masturbação desgozante
o filtro que me não coa
aquele verde escuro de um céu negro
os outros meus olhos fitando-me
estremecendo-me
o medo da imagem, que eu sou outra
escondida pela cortina de fumo
e a ponta do cigarro ardendo
pensando-me do outro lado
vendo-me, sem me ver
a minha masturbação desgozante
o filtro que me não coa
aquele verde escuro de um céu negro
os outros meus olhos fitando-me
estremecendo-me
o medo da imagem, que eu sou outra
escondida pela cortina de fumo
sábado, 17 de agosto de 2013
a flor distraída
procurou os cachos sob as parras. queria-os de bagos sumarentos e doces, daqueles que se trincam e estalam nos beiços e logo refrescam a boca.
cabia-lhe na palma da mão. era um cacho bem apessoado, quase elegante. desatracou-o da vide, um golpe seco com a navalha, e amparou-o com a mão.
aberto o tapete de plantas verdes por onde passeavam umas cabra-cegas, mergulhou o cacho no fresco frio das águas da mina. e a água dançou ao sabor dos bagos...
Maria mostrava-lhe uma nesga das coxas por entre as folhas desordenadas da hera que enredava o tronco da cerejeira grande. sabia-a recostada na manta a dormitar a languidez, a pele sedosa a aguardar-lhe o toque.
Sorriu. Envolveu o cacho em duas parras e colheu a flor distraída de uma planta que não conhecia o nome. Maria dormia, envolveu-a com o olhar quente e de manso aconchegou-se pertinho dos ombros dela.
-Maria..-sussurrou-lhe- e devagarinho passou-lhe o cacho fresco sobre os lábios.
Partiram de mãos dadas. Maria levava no decote a flor distraída de que Luis não conhecia o nome.
cabia-lhe na palma da mão. era um cacho bem apessoado, quase elegante. desatracou-o da vide, um golpe seco com a navalha, e amparou-o com a mão.
aberto o tapete de plantas verdes por onde passeavam umas cabra-cegas, mergulhou o cacho no fresco frio das águas da mina. e a água dançou ao sabor dos bagos...
Maria mostrava-lhe uma nesga das coxas por entre as folhas desordenadas da hera que enredava o tronco da cerejeira grande. sabia-a recostada na manta a dormitar a languidez, a pele sedosa a aguardar-lhe o toque.
Sorriu. Envolveu o cacho em duas parras e colheu a flor distraída de uma planta que não conhecia o nome. Maria dormia, envolveu-a com o olhar quente e de manso aconchegou-se pertinho dos ombros dela.
-Maria..-sussurrou-lhe- e devagarinho passou-lhe o cacho fresco sobre os lábios.
Partiram de mãos dadas. Maria levava no decote a flor distraída de que Luis não conhecia o nome.
quarta-feira, 14 de agosto de 2013
memória 24
abriu a porta da memória 24.
O azul forte dos vasos da entrada quase lhe magoou o olhar de tão intenso. tocou de leve nas folhas verdes da planta que nunca dava flores e sentiu-as frescas. a passadeira de sisal vermelho debruada a azul estendeu-se pelos degraus e Benedita subiu: um, dois, três, quatro, cinco e ali estava a porta de vidrlhos a separá-la do imenso hall. encostou a testa à pequena vidraça, lá dentro fervia vida. a criada de servir cantava uma moda minhota enquanto esfregava o chão acompanhada por uma pequena imitação de pessoa grande que a par com ela passava a escova no soalho.
era cedo de mais para entrar, não fosse ficar presa na memória 24, e havia muitas outras para reencontrar.
o passadiço devolveu-lhe o som dos passos das brincadeiras que sozinha ali tecera. sentou-se no degrau e encostou ao peito a boneca princesa que costumava enfeitar a cama da mãe. Era a boneca dos dias de brincar sózinha às bonecas porque tinha sempre que voltar a sentar-se no meio da grande cama dos pais. Por isso só saía até ali, à entrada atrás da porta. Nessa altura as folhas verdes das plantas dos vasos azuis cresciam pelas paredes e pelas portas, que nunca abriam, dos salões dos dias diferentes.
Chamava-se Odete a boneca princesa, não era o nome mais apropriado mas era porque era uma boneca crescida e tinha que ter nome de gente grande. Falou com Odete, a ela podia contar-lhe coisas, ficavam com ela, atrás dos seus olhos azuis que fechavam quando a embalava, bem guardadas no sorriso que lhe atirava da colcha de tecido fresco e macio onde se sentava.
O tule da saia comprida de Odete cocegou-lhe o nariz. afastou-o com os dedos e deixou que o raio de sol das cinco horas, das tardes de Inverno, pintasse aquele caminho de partículas soltas pelo ar e por ali escorregasse o príncipe de Odete.
O pó da memória 24 fê-la espirrar. Fechou a porta e pôs a chave no seu sítio secreto.
O azul forte dos vasos da entrada quase lhe magoou o olhar de tão intenso. tocou de leve nas folhas verdes da planta que nunca dava flores e sentiu-as frescas. a passadeira de sisal vermelho debruada a azul estendeu-se pelos degraus e Benedita subiu: um, dois, três, quatro, cinco e ali estava a porta de vidrlhos a separá-la do imenso hall. encostou a testa à pequena vidraça, lá dentro fervia vida. a criada de servir cantava uma moda minhota enquanto esfregava o chão acompanhada por uma pequena imitação de pessoa grande que a par com ela passava a escova no soalho.
era cedo de mais para entrar, não fosse ficar presa na memória 24, e havia muitas outras para reencontrar.
o passadiço devolveu-lhe o som dos passos das brincadeiras que sozinha ali tecera. sentou-se no degrau e encostou ao peito a boneca princesa que costumava enfeitar a cama da mãe. Era a boneca dos dias de brincar sózinha às bonecas porque tinha sempre que voltar a sentar-se no meio da grande cama dos pais. Por isso só saía até ali, à entrada atrás da porta. Nessa altura as folhas verdes das plantas dos vasos azuis cresciam pelas paredes e pelas portas, que nunca abriam, dos salões dos dias diferentes.
Chamava-se Odete a boneca princesa, não era o nome mais apropriado mas era porque era uma boneca crescida e tinha que ter nome de gente grande. Falou com Odete, a ela podia contar-lhe coisas, ficavam com ela, atrás dos seus olhos azuis que fechavam quando a embalava, bem guardadas no sorriso que lhe atirava da colcha de tecido fresco e macio onde se sentava.
O tule da saia comprida de Odete cocegou-lhe o nariz. afastou-o com os dedos e deixou que o raio de sol das cinco horas, das tardes de Inverno, pintasse aquele caminho de partículas soltas pelo ar e por ali escorregasse o príncipe de Odete.
O pó da memória 24 fê-la espirrar. Fechou a porta e pôs a chave no seu sítio secreto.
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
fez-se flor
agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!
---------o postigo batia lento na portada, era o silêncio do tempo quente que o alentava. dir-se -ia que esperava gente. aguardava que o viajante se lhe acercasse, espreitasse e gentilmente levantasse e lingueta do trinco.
o fresco da sombra de dentro puxou-o para o átrio forrado de madeiras claras. o postigo bateu lento. passou-lhe no olhar o eco rubro de um tecido e no rosto a macieza branca da pele. trancou-se o postigo, trancou-o com o corpo na porta.
o postigo bateu lento na portada.o viajante adormeceu os sentidos na manta de trapos sobre o soalho de cheiro a pinho. levantou a lingueta, soltou a sombra fresca na rua e saiu.-------------------------------------
agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!
---------o postigo batia lento na portada, era o silêncio do tempo quente que o alentava. dir-se -ia que esperava gente. aguardava que o viajante se lhe acercasse, espreitasse e gentilmente levantasse e lingueta do trinco.
o fresco da sombra de dentro puxou-o para o átrio forrado de madeiras claras. o postigo bateu lento. passou-lhe no olhar o eco rubro de um tecido e no rosto a macieza branca da pele. trancou-se o postigo, trancou-o com o corpo na porta.
o postigo bateu lento na portada.o viajante adormeceu os sentidos na manta de trapos sobre o soalho de cheiro a pinho. levantou a lingueta, soltou a sombra fresca na rua e saiu.-------------------------------------
agarrou no mundo como quem agarra as voltas da sua saia. Dançou com ele como quem traz o sol no colo. Avançou resoluta no mistério da terra. Prendeu-se nos véus da roupa, fez-se flor e encarnou de encarnado, vivo e latejante!
terça-feira, 6 de agosto de 2013
a tempestade
ousava ousar a tempestade. sem ela morria-lhe o corpo, apodrecia-lhe a mente. ousava acontecer-se. vagueava nua e, descalça, pisava a terra, a lama. logrou chegar ao sagrado quando o corpo, suado, gemeu de prazer e a névoa a envolveu num lençol aveludado. e adormeceu, assim mesmo, bem dentro da tempestade que ousou.
Cresceu uma folha verde água no ramo solar da casárvore. Balbuína tinha acontecido.
Cresceu uma folha verde água no ramo solar da casárvore. Balbuína tinha acontecido.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
caminho
envolve-me a emoção de sombras que o sol afaga. a carícia sopra-me a face e os teus dedos percorrem-me o peito. o mar encharca-me a alma e mareja-me o olhar. navego no sopro que os teus lábios desenham no meu ventre, nas vagas que as tuas mãos soltam no meu corpo. o mar alcança-me, belisca-me os pés e faz de mim sereia. Ah! meu amor, meu amado leva-me contigo, caminha comigo. abraça-me na areia, refesca-me a pele e faz de mim amada. o sol volta amanhã e eu quero caminhar contigo.
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