quarta-feira, 14 de agosto de 2013

memória 24

abriu a porta da memória 24.
O azul forte dos vasos da entrada quase lhe magoou o olhar de tão intenso. tocou de leve nas folhas verdes da planta que nunca dava flores e sentiu-as frescas. a passadeira de sisal vermelho debruada a azul estendeu-se pelos degraus e Benedita subiu: um, dois, três, quatro, cinco e ali estava a porta de vidrlhos a separá-la do imenso hall. encostou a testa à pequena vidraça, lá dentro fervia vida. a criada de servir cantava uma moda minhota enquanto esfregava o chão acompanhada por uma pequena imitação de pessoa grande que a par com ela passava a escova no soalho.
era cedo de mais para entrar, não fosse ficar presa na memória 24, e havia muitas outras para reencontrar.
o passadiço devolveu-lhe o som dos passos das brincadeiras que sozinha ali tecera. sentou-se no degrau e encostou ao peito a boneca princesa que costumava enfeitar a cama da mãe. Era a boneca dos dias de brincar sózinha às bonecas porque tinha sempre que voltar a sentar-se no meio da grande cama dos pais. Por isso só saía até ali, à entrada atrás da porta. Nessa altura as folhas verdes das plantas dos vasos azuis cresciam pelas paredes e pelas portas, que nunca abriam, dos salões dos dias diferentes.
Chamava-se Odete a boneca princesa, não era o nome mais apropriado mas era porque era uma boneca crescida e tinha que ter nome de gente grande. Falou com Odete, a ela podia contar-lhe coisas, ficavam com ela, atrás dos seus olhos azuis que fechavam quando a embalava, bem guardadas no sorriso que lhe atirava da colcha de tecido fresco e macio onde se sentava.
O tule da saia comprida de Odete cocegou-lhe o nariz. afastou-o com os dedos e deixou que o raio de sol das cinco horas, das tardes de Inverno, pintasse aquele caminho de partículas  soltas pelo ar e por ali escorregasse o príncipe de Odete.
O pó da memória 24 fê-la espirrar. Fechou a porta e pôs a chave no seu sítio secreto.

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