terça-feira, 4 de outubro de 2011

Tânger, a bela

mohamed era já uma memória distante. O argelino Redwin(!) tinha-o substituído com grande agrado nosso. Era um guia diferente, quase amigo e sem trocas comerciais à mistura. Conquistámos Tânger. Redwin tinha-nos possibilitado o impensável: percorrer a medina sem o assédio de outros guias, conhecer com os nossos próprio olhos, com o nosso toque e com os cheiros que ousávamos cheirar. E Tânger era linda. Caía-lhe um calor baço e húmido que as cores das vestes marroquinas transfigurava em emoção e nos enchia o peito de uma saudade ausente quando o vento quente do fim da tarde nos soprava os cabelos em rebelde confusão (quase quase se cheirava ali D. Sebastião).
O entrelaçado da medina era nosso conhecido: aventurámo-nos nas ruelas para além dos mercadores, marcadas apenas pelas janelas estreitas, quase sempre fechadas para afastar o calor, com espaços estreitos onde apenas cabia uma pessoa, e das quais se contavam mirabolantes estórias de turistas assaltados em formatos ousados e por vezes inverosímeis.
Ah, bom! éramos autênticos, herói e heroína, portugueses amados depois de confundidos com "italiani; franchesi; spain e quê?!" e sabia-nos bem o abraço de "portuguesi, amiqui". Era por isso incompreensível o choro da jovem portuguesa, que no fundo da escada de acesso à medina, desesperada pedia ao marido para irem embora quanto antes melhor. A tentativa de irem à medina, sem aceitarem os préstimos de qualquer guia resultara num extremo desagrado que já não suportavam. Estranhas realidades aquelas, talvez não tivessem sentido Sebastião...
Nós entrávamos e saíamos sem entraves, na medina, na cidade nova e até nos arredores, menos afoitos aqui e por norma com a vigilância de Redwin. Sabemos hoje que os diferentes códigos dos guias emitiam passaportes de níveis diferenciados e o nosso era seguramente de elevado nível.

Redwin tinha-nos levado a um hotel quase na praça central da medina, numa das ruas de principal acesso. Construção seguramente antiga, encaixada num casario apertado que quase cerrava a nesga do céu, alargava-se logo após o átrio amplo num pátio circular de luminosidade palpável que aconchegava o jardim interior que com uma timidez exibicionista nos atirava ao olhar plantas de folhagem larga e verde por onde escorregavam finos tubos de luz facetados pela enorme clarabóia de vidro que protegia o interior. E nesse olhar lançado em altura, perdido naquela luz quase sem existência, descobrimos o varandim, de ferro forjado, que protegia todo o pátio do 1º piso de acesso aos quartos.
Foi neste que ficámos. O quarto era pequeno, com portada sobre a rua e uma ligeira e diminuta visão da praça da medina e quase em frente, mas distante, o torreão de uma mesquita. Na parede lateral à cama de ferro um guarda fato com espelho arrumou os nossos haveres e o lavatório aí encostado servia-nos para as lavagens curtas, porque chuveiro e sanita só na casa de banho comum do hotel, situada felizmente naquele piso, sendo também por isso cobrado um pequeno excedente na diária. Turistas, europeus, só nós. Misturados com todas as famílias marroquinas que ali permaneciam por mais ou menos dias éramos "estranhos em terra estranha" mas, mais permanentes.
E neste hotel habitámos, todo o tempo de Marrocos, todo o tempo de Tânger.
Com Redwin, o vento quente do fim de tarde, o cheiro forte do chá de menta, o sabor doce apimentado da sopa de 1 dirham, a dança da palavra mercantil entrámos numa aventura de sentidos, perdido o desejo de Fez e de Marraquexe, como se Sebastião ali nos tivesse inventado.
Seguramente ali se perdeu de amores, em Tânger, como nós...perdida Alcácer.

...a manhã começa clara e fresca. É a única altura do dia em que o corpo não está suado, e a vontade de sair à rua se despeja na multidão que por lá já circula, no linguarajar que não entendemos, e no apelo que o torreão emite em tom grave, gutural, certo, ritmado, igual, melódico, quase hipnótico. É hora de ir ter com Redwin.

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