quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"Fur Elise" e o piano de cauda

os dedos pianavam em teclas brancas e pretas, marcando escalas, naquele ritmo entediante do aprendiz de feiticeiro a quem falta um pouco de audácia criativa. O piano não era da cauda, era de caixa alta, encostado à parede da pequena saleta de iniciação da escola de música com aspirações a conservatório. A ante sala era um enorme salão onde isolado como rei e senhor estava o piano de cauda que havia de ser usado nos recitais. Este, vestido de madeira mel, contrastava em suavidade com o de caixa alta de madeira escura, que recebia portentosamente os exercícios dos pequenos aprendizes, que normalmente suspiravam ao passar frente ao cauda sonhando com o dia em que poderiam escorregar os dedos por um teclado escondido onde as melodias haviam de ser maravilhosas.
O salão tinha também um piano velho, de caixa alta, menos bem tratado onde os alunos, sem piano em casa ou nos momentos antes da lição, podiam fazer o treino de escalas e melodias simples. Era o meu amigo piano, de onde invejava também a banqueta do piano mel, quando uma ou outra tecla produzia uma nota mais metálica ou em timbre tremido dando uma cor desarmónica ao meu momento de pianista.
É, cheirava a música, a papel de pauta. O dó e o fá sustenido da clave de sol giravam incessantemente pelas salas e salão, os acordes estalavam e as pausas geravam sinfonias contínuas...o mundo era a música, mesmo na odiada sala de solfejo.
Não sei como se chamava, a professora. Era de um feio belo, entre mozart e liszt, escandalosamente musical, uma opereta. Óculos finos e nariz adunco, dentes atirados para fora da boca, bem espaçados, estrutura quase equina do perfil do rosto, exibia por isso uma espécie de sorriso constante e uma simpatia perfeita pela humildade do estar: não era pianista, era professora de piano e embevecia-se com as nossas escalas e melodias mais ou menos bem tratadas e adorava tocar a quatro mãos, connosco.
O nuno era o que iria ser o grande pianista, pensava eu, que por ele nutria uma pequenina paixão secreta, construída no coração da nossa sinfonia. Não éramos muitos, os aprendizes e aprendizas de piano, naquele primeiro ano de iniciação, nossa e da escola. Era por isso fácil cruzar-mo-nos entre aulas e em pequenos momentos de espera ou na observação que por vezes a professora queria que uns dos outros fizéssemos para melhorar técnicas incentivando pequenos prelúdios de toques a quatro mãos.

Os pianos exalam aquele cheiro de uma mistura de cordas afinadas com os óleos conservantes das madeiras e o papel, o muito papel, tantas vezes já amarelecido onde as pautas primam por brincar com notas que teimam em saltar-nos para os dedos e que se soltam em sons e sons e sons....
Um dia ele estava no canto do piano mel meio de lado na pose da banqueta com postura de pensador e não de pianista, cotovelo apoiado na borda do piano, pousando a testa sobre a mão e com os dedos da mão direita tocava as primeiras notas de"Fur Elise", sem pauta. Parei a observá-lo, o maravilhoso pianista que se soltava sem regras, sem pautas...foram só as primeiras notas e passei a querer beber mais desses momentos, no piano de cauda.
Só voltaram a acontecer em recitais, onde a música transbordava mas tínhamos invasores dentro da casa.
A sinfonia de olhares sumidos e olás pouco audíveis nos breves momentos em que nos cruzávamos, foi preenchida pela aventura a quatro mãos, de uma tal sonata que não recordo o compositor onde a professora nos entendeu como par ideal.
A saleta de aprendizagem fazia então eco à respiração e ao palpitar do peito junto de quem tocava "Fur Elise" no piano de cauda, enchia-se de notas vibrantes aconchegadas pelo constante e belo sorriso equino da professora que de olhos fechados nos transformava em breves colcheias e coloria-se com o rubor fascinado que me aquecia as faces. Éramos a sinfonia.
Um dia desisti, não gostava do solfejo, parecia-me pouco sinfónico e acho que o nuno também. Tenho saudades da professora.

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