terça-feira, 19 de julho de 2011

O quarto dos sapatos e a engraxadora

era estreito e comprido. Frente à porta bem mesmo em linha estava outra: a porta de pequenos vidrados que se abria sobre uma sacada quase rente onde um gradeamento singular a separava da queda. De tão pequeno, era o maior quarto da casa . Ocupava-o um armário de portadas de vidro, onde uns cortinados de chita florida, escondiam o que ali se acoitava.
Soltava-se do chão por quatro pés, pouco menos que um palmo, que deixavam um bom espaço para a limpeza da vassoura, ou para por lá se perder algum objecto de brincadeira. Não era alto, o armário. Do topo ao tecto quase caberia outro, mas o espaço era mesmo do armário que por ali se agigantava, parecendo por vezes dobrar-se sobre Catarina sentada no seu banco de engraxadora.
Ali, Catarina era a engraxadora. Mergulhava nas profundezas das prateleiras e cá fora dispunha toda a sapataria que por lá encontrava: os sapatos de bico da mãe, os sapatos de laçada do pai, os de trabalho, os dos Domingos, os das festas, as botas de cano...Na banqueta pousava a caixa de papelão de onde sussurravam as escovas, para limpar o pó e a terra, para pôr a graxa, para dar brilho. As latas de graxas em pomada preta e castanha e os panos de espalhar e de polir saltavam de entre as escovas, para as mãos de Catarina que logo os colocava ordeiramente sobre a banqueta.
As portadas do armário abertas de par em par descobriam uns sapatos cansados, envelhecidos, sem brilho. Alguns ainda com um ou outro torrão de terra davam uma cor acinzentada ao conjunto só cortada pela brejeirice de uns "verniz" dos dias de festa, que apesar do pó garantiam uns brilhos ao fundo do armário.
Pelo quarto, em espiral, alargavam-se os cheiros das graxas, moles e doces, cortados aqui e ali por um certo acre do rícino, a que se juntavam os cheiros dos pés da mãe, do pai, do mano e dela. Eram cheiros cansados e brandos, os dos pés; enérgicos e vivos, os das graxas.
Catarina colocava o avental, sentava-se decidida e começava sistematicamente a limpar: primeiro o pó e a terra, depois a graxa, umas vezes com o pano, outras com a pequena escova de cabo. A lata de graxa castanha por vezes seca remediava-se com um bocadito de cuspo (e até que dava mais brilho, como bem sabia Catarina). Os sapatos iam-se reafileirando, como o mais limpo regimento, já esperando o remate final: o vigoroso polimento, quase carícia, do pano macio que os transformava em novos.
Catarina olhava deliciada para a coluna. Não resistia ao chinelar com os sapatos de Domingo da mãe, quando ela vestia aqueles lindos vestidos; ao rastejar dos pesados sapatos de trabalho do pai e a cheirar as suas botas de cano da escola. A graxa estava por todo lado, na ponta do nariz, nos dedos, no avental, no intenso e saboroso cheiro que se vinculava à sapataria.
O brilho, pois o brilho! Não era fácil porque Catarina queria ter a forma do sapato, como o engraxador de rua, o pé lá dentro e ver o olhar de satisfação do dono por se reflectir no espelhado do calçado. Mas, os joelhos serviam de torno, primeiro o lado do calcanhar, depois o espelho do sapato. Um bafo aqui, outro acolá, e os sapatos iam-se arrumando nas prateleiras, tão brilhantes e vivos como os "verniz". O cheiro ajeitava-se aos brilhos. Cheirava a fresco, a novo,cheirava a graxa preta e castanha, um acre doce e vivo por onde perpassavam os cheiros da casa, dos pés renovados da mãe, do pai e do mano. Os de Catarina também. E brilhavam, como brilhavam. Devagarinho ia-os encostando mais ao fundo, ao seu descanso, e no bico dos pés fechava as portadas de cortinas de chita floridas, onde acomodara a caixa de papelão.
Pela sacada entrava o Sol de fim de tarde.
O armário retrai-se para o seu espaço e Catarina sai, fechando devagarinho a porta, cabeça meia dentro, não fosse algum sapato fugir. A última espreitadela assegura-lhe que o seu segredo de brilhos e de cheiros está bem guardado, e clic, a porta fecha-se.
- Mãe, mãe, grita Catarina ofegante, descendo em corrida a escadaria da casa. Mãe tens que vir comigo ao quarto dos sapatos, está lá uma surpresa que eu fiz para ti!
Era o quarto dos sapatos, apenas dos sapatos. Uma vez uns gatinhos recém nascidos por lá se abrigaram, sob o armário, onde só cabia uma vassoura e a mão de Catarina.

Sem comentários:

Enviar um comentário