sábado, 23 de julho de 2011

Era um fim de tarde de Setembro...

Era um fim de tarde do mês de Setembro. A aldeia estava imbuída dos cheiros das colheitas. Estava aquele aprazível calor que a leve brisa nos aconchegava ao corpo. Não era ainda a hora do regresso do campo e, pelo casario, apenas circulavam algumas crianças engalfinhadas nas suas brincadeiras.

por baixo daquele ar franzino e quase frágil (a minha avó era pequenina, mesmo muito pequenina) coberto de uma constante cor preta desde a sua viuvez escondia-se uma dureza de pedra que eu julgava chegar-lhe ao coração. As palavras eram parcas, as carícias inexistentes e como não tinha dentes (nem sequer postiços) não sabia se alguma vez sorrira. Acho que adorava fazer tudo o que ela não gostava, brincar com a “canalha” da aldeia e fugir a sete pés quando ao longe, alguém de sobreaviso a via chegar de vergasta na mão a chamar pelo meu nome.

Maria Adelaide, oh Maria Adelaide, gritava, são horas de vires para casa… e a vergasta agitava-se de encontro às ervas… nunca me bateu mas também nunca me achou perdida nas brincadeiras com a canalha da aldeia.

Gostaria de mim? Eu não gostava dela, era a avó “má”, dura e seca que não me encostava ao peito. Não me preocupava muito com o assunto, no fundo ela era a minha brincadeira porque a enganava nas fugas à sua preocupação…Ah, sim eu era muito mais esperta do que ela!

Na aldeia não era amada mas também não era odiada, nem sequer temida. A sua secura repercutia-se nos sentimentos dos outros. Mas era respeitada e dignamente respeitada.

Não sei se recordo alguém com rugas tão fundas como as dela, com a face afogada na cavidade bocal onde os lábios finos se escondiam sobre um queixo avançado e um nariz adunco que fazia lembrar a bruxa da história de João e Maria.

A minha avó tinha casado aos dezasseis anos, com o meu avô, bastante mais velho e já viúvo e ao que contavam (porque não o conheci) muito bonacheirão e boa pinta. Teve a minha avó 12 filhos, 10 rapazes e 2 raparigas. Destes faleceram 6, 5 em criança entre os quais as duas meninas, situação que a levava a culpar a enteada do facto, e um já adulto. Esta coisa de ela ter sido mãe era para mim tão distante que nunca senti vontade em perceber bem o que ela poderia ter sentido (eu achava que não teria sido nada até porque estes tios e tias bebés eram quase o mesmo que bonecos na minha imaginação).

A casa tinha sido pobre e a luta pelo sustento foi dura e a minha avó nunca foi menina. O tempo para o pão consumia todo o seu amor e era por aí que com certeza ela amava.

A minha avó não comia peixe porque estes comiam os afogados, nem caranguejos nem camarão, só abria excepção para o bacalhau, porque era diferente, dizia ela. Nunca acreditou que o homem tivesse pousado na lua, porque se assim fosse tinha que se ver (e aqui já ela era bem velhinha). Mas acreditava na Ressurreição e em Jesus Cristo.

Aprendi com ela que as filhoses da beira se devem fritar ao lume, na lareira, numa frigideira de ferro e ajeitadas com um pau de vime bem descascado. Eram deliciosas e ela passava um dia inteiro a fritá-las, de manhã à noite e depois duravam do Natal ao Ano Novo. Aprendi com ela a enfeitar as campas dos entes queridos com flores campestres e umas bagas brancas de que não sei o nome.

Era um fim de tarde do mês de Setembro. A aldeia estava imbuída dos cheiros das colheitas. Estava aquele aprazível calor que a leve brisa nos aconchegava ao corpo. Não era ainda a hora do regresso do campo e, pelo casario, apenas circulavam algumas crianças engalfinhadas nas suas brincadeiras.

Atrás da minha avó seguíamos, talvez 3 a 4 endiabrados cachopos, que estavam endemoniados para tirar prazer de quem já não ouvia nem via bem.

A minha avó seguia, corcovada, na beira da estrada, numa tarde de Setembro, para ir até à leira de terra onde algumas árvores de frutos ainda precisavam de guardiã. Eis quando, pára, e encostando a mão ao muro fronteiro do caminho abre as pernas…

Agitados, os endemoniados cachopos (entre os quais eu), estacam, semi - escondidos, sem saber bem o que esperar….

Era um fim de tarde de Setembro, e o Sol começou a reflectir brilhos por entre as gotas de água, que abundantemente regavam o caminho sob as pernas da minha avó.

A minha avó não usava cuecas!

Que ousadia, que ultraje! E acompanhei o riso desproporcionado dos amigos de brincadeiras. Nunca contei aos meus pais, nem pedi para me explicarem. Era uma vergonha estranha e uma sensação de liberdade imensa.

E …passei a adorar a minha avó, ainda que nunca tenha tido a coragem, nem a oportunidade de docemente a abraçar.

1 comentário:

  1. Pensei num final diferente mas, ainda assim conseguiu surpreender! ;-)

    FL

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