quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

apenas queremos seguir viagem

"mãe, porque é que quando ultrapassamos um carro olhamos sempre para as pessoas do outro carro?"

estavam no meio das curvas e contracurvas de uma serra doce. O carro era um mini desgastado, branco, a quem davam água a beber, várias vezes, durante a viagem. Estava frágil e para passarem a serrania isolada de uma só vez, tinham-lhe preparado as entranhas ao tempo em que prepararam as deles. No banco traseiro dormitava a criança bem encostada à cadela que os tinha já presenteado com uma desagradável má disposição. O rádio tocava intermitências que lhes davam a sensação de companhia. Para trás o Sol desaparecia no horizonte e para a frente os médios começavam a iluminar sem contraste a estrada. Esperavam não encontrar qualquer camião porque o troço do inultrapassável estava mesmo a seguir. E o mini seguia, na sua marcha contínua em bom andamento, adensando-se pela noite projectando os máximos por sobre as colinas carregadas de pinheiros, construindo um jogo de sombras algo perturbador. A intermitência musical e as palavras trocadas permitiam o conforto de uma mínima segurança de janelas e chapa. Nenhum carro em sentido inverso, nenhum carro no mesmo caminho, e aproximavam-se quase do final  do caracol de curvas.
uma segunda luz projecta-se pelas enseadas das colinas. Finalmente encontram gente, e logo após a curva lá está ele, cor azul leite, perfil dos anos 50, em marcha lenta...inultrapassável!!
um minuto, dois, três......os faróis fixam-se na sombra que a contraluz desenhava dos dois passageiros do carro. Completamente iguais, chapéus de abas, casacos aparentemente escuros que jogavam no sombreado uma perfeição completa, excessiva. O carro seguia lento, curvando esquerda direita mantendo hirtamente os seus passageiros na mesma posição.
Nenhum carro em sentido contrário, nenhum carro no mesmo sentido excepto o azul leite de dois passageiros, que não conseguiam passar, que queriam passar, que não queriam ver. As intermitências musicais não desfaziam o silêncio dos motores, ou o silêncio das respirações.
- E não passa mais nenhum carro....não os consegues ultrapassar? São estranhos, já viste, não se mexem. Não gosto de ir atrás deles.
- Nem eu.
Olhou para o banco traseiro a acariciou os caracóis louros do filho sentindo-se confortada com o roncar da cadela, já velhota. O mini arrancou numa terceira arrojada, lançou-lhe o olhar para a estrada que espreitava uma curva não muito distante e acelerou também, prendendo a respiração. Não olhou para os passageiros do outro carro, quis olhar mas não sabia se eram pessoas. Sentiu que olharam, que no mesmo instante os chapéus fizeram 90º e a viram.
Não os viu, não os viram, aceleraram. No fim da curva saía-se da serrania e mais além surgiam luzes de povoações. O carro azul leite não saiu.

"- Às vezes não olhamos, não queremos saber o que lá pode estar, apenas queremos seguir viagem."
Deu-lhe a mão e caminharam.

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