sexta-feira, 27 de setembro de 2013

o malote vermelho

tinha um malote vermelho, e o malote tinha uma chavinha. Lá dentro o lencinho de mão a moeda para pôr na missa e a moeda para dar esmola.
Era domingo de manhã, dia do banho de imersão e do aparar das unhas dos pés e das mãos. a mãe vestia-lhe a combinação e a saia de pregas, branca. depois a blusa, os soquetes e os sapatos de domingo. o casaquinho de renda aconchegava o fresquito da manhã e após o passar do cheirinho no lóbulo da orelha agarrava no malote vermelho e descia a escadaria, como senhora crescida.
no caminho até à vila, de mão dada com a mãe, ia saltitando, malote a batucar-lhe nas pernas na evidência de uma chavita em oscilação pendular que guardava mirabolantes segredos e secretos objectos. "Que bonita malinha, Benedita" diziam-lhe as senhoras amigas da mãe na antecâmara de conversas antes da missa, sob o olhar de esguelha de algumas meninas da sua criação. E Benedita sorria e dizia "Foi a mãe que deu".
A missa iniciou, entre orações e pregações, com as vestes de ouro brilhante do pároco, na desenfreada ginástica entre estar de joelhos e estar de pé, até ao sermão, hora de descansar o corpo para estar atenta às palavras sábias do senhor padre. O malote descansou também, sobre os seus joelhos, bem vermelho na fila de crentes. Benedita agarrou na chaveta de duas línguas e abriu o fecho. devagarinho levantou o tampo, e retirou o pequeno espelho que estava na bolsinha interior. Mirou-se, vaidosa, lançando olhares laterais para as suas rivais e esfregou os lábios, como a mãe quando punha batôn. Vitoriosa começou a fechar criteriosamente o malote, dezenas de olhares colocados em si quando, no silêncio das consciências que pareciam ouvir o sermão, o esparvalhado do seu irmão disse:"- Mamã, hoje dá o Piruças?"
Até o malote lhe escorregou, toda a igreja sorriu e acabou-se a atenção.
Mas tinha um malote vermelho, que abriu e fechou dezenas de vezes durante as conversas do adro cheias de sorrisos ligados ao Piruças.
A mãe deu-lhe mais tarde um resto de batôn vermelho que, religiosamente, juntou ao espelho.

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