sábado, 21 de junho de 2014

a mulher que ia à fonte

naquele tempo não havia melhor actividade social do que ir à bica. Benedita ficava logo agitada quando via a Maria do Carmo a chegar e a agarrar o vasilhame para ir à fonte.
A Maria do Carmo era a mulher, que na aldeia, ia à fonte.
Benedita acreditava que ela era um cântaro que se tinha transformado em pessoa, tal era a parecença física. Não fossem os pêlos que tinha sobre os beiços e nas pernas e a semelhança era perfeita. Comprida, maior que os homens da terra, usava um saco de pontas ajustadas, que arrumava sobre os cabelos apanhados num toutiço, de forma a proteger-se dos salpicos da água. Essa capa ensarapilhada caía-lhe sobre as ancas fazendo-lhe um bojo lateral no corpo, tal qual os cântaros. Dali pendia uma saia sem forma que lha caía a direito sobre as pernas altas tapando-as quase até ao meio da canela. Nesse intervalo que ia até `ponta das meias que desfaleciam sobre os pés saltavam uns pelos fartos e pretos que a tornavam diferente do sedoso brilho de latão das vasilhas que todos os dias transportava acima e abaixo para casa dos seus clientes. Era seca de carnes e o pescoço alto encimado por um rosto míudo,  de onde espantava um sorriso quase infantil, parecia a boca das bilhas. Levava sempre três cântaros: o maior assente na rodilha que punha à cabeça e os outros cada um em cada mão, fazendo um jogo de equilíbrio que criava uma constante ondulação entre o corpo e a cabeça como se uma cobra ali se ondulasse.
Benedita tinha uma rodilha das que se compravam nas lojas, já feita, mas a Maria do Carmo tinha-lhe ensinado a fazê-las dum pedaço de pano, que "essas é que eram boas" dizia ela, para se ajeitar o cântaro ao corpo. E lá ia, calçada abaixo até á bica, cantarinha na mão, que elas sem lastro desequilibravam-se mais depressa, pés a pular no empedrado, e o corpo a imitar o jeito ondulante do pescoço da aguadeira. Chegadas à bica havia que esperar a vez, os cântaros eram muitos e na espera trocavam-se as novidades, contavam-se segredos e desvendavam-se intimidades, que nas aldeias quase todos conheciam.
A Maria do Carmo não era nem de muitas, nem para muitas conversas, tinha uma vida exposta. todas lhe sabiam dos pais dos filhos e deles até se apiedavam. Por isso ali ficava postada, pernas meio abertas, braços cruzados à espera da sua vez, bem amada pelo mulherio da fonte.
Enchidos os cântaros lá seguia ladeira acima, corpo sem formas mas em equilibrio perfeito.
Benedita nem sempre voltava com ela. Por vezes ficava na galhofa com as garotas que iam já a buscar água e que carregavam  as bilhas em baloiço exótico, ainda um braço a amparar, invejando-lhes a quase perfeição.
Quando voltava sentia-lhe uma harmonia intensa como se a fonte fosse ela. Compenetrava-se então em carregar a sua cantarinha, mão sempre na asa que o jeito de pescoço parecia querer atirá-la ao chão e quase, quase conseguia breves segundos em que o vaso ondulava conforme o corpo.
"- Não s`apreocupe menina, c`o tempo vai a conseguir" dizia-lhe a Maria do Carmo.
Numca conseguiu, nunca como ela. A fonte era ela.

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