sábado, 4 de junho de 2011

O prado atrás do milheiral

A escola ficava ali, quase a dois passos. Não fosse o milheiral e o pequeno prado que o antecedia, vedados por um baixo murete de pedra irregular que os separava da estrada que cruzava a vila, era esse o caminho ideal para lá chegar.E, claro, havia a lama, que naqueles tempos de chuva imensa tornava impraticável o uso de calçado compatível para usar também na escola, especialmente para a professora. É claro que isto de passar o milheiral comportava riscos, bem mais desagradáveis do que os canículos de lama seca que se iam largando pelo páteo e às vezes pelo soalho da escola, provocando a ira da contínua de longa data. A canalha atrevia-se menos ou então cuidava de um percurso que rodeava a plantação evitando os estragos na produção e mais que tudo o bem provável "enxerto de pancada" que o pai ou a mãe haveriam de desencadear por tal comportamento.
A verdade é que a professora podia, de uma forma diferente. Era a professora, era estimada e tinha pedido ao dono do milheiral para por lá passar, pelo que o problema era tão só a lama. Comprou então umas galochas, pretas e sem cano, que calçava já com os sapatos e passou a atravessar, quase sempre, por entre a cana do milho aquele campo verdejante.
Não houve melhor dia, e esses eram sempre os melhores, que o dia em que a menina, puxada pela mão doce da professora, atravessou aquela floresta imaginária e tão misteriosa. O milho era alto e denso, tão alto que em alguma zonas nem o cabelo da professora se via. Tão alto, que para a menina, quase nem havia céu. Puxada neste passeio matinal, ouvia o restolhar das folhas que se entrechocavam pela sua passagem, olhava por entre os pequenos espaços das hastes de milho, imaginando o que estaria para além, e desejando quase a medo que talvez não fosse má ideia perderem o caminho e, em vez da escola, encontrarem um prado de flores amarelas atravessado por regatos cristalinos.... A mãe da menina, professora estimada, não se perdeu, nunca, pelo que a menina aprendeu o caminho, sem ver por sobre o cimo do milho e, sózinha, permitiu-se algumas vezes navegar neste verde mar, envolvendo as botas em lama mais ou menos ensopada, mais ou menos empedrada, conforme a chuva ali caía, e chegar sempre à escola. Esqueceu-se do prado e dos regatos, por estar atenta ao ligeiro curvar da haste que marcava a rota certa, até ao colher do milho e ao corte da cana.
Um dia não estava lá, o milheiral. Estava apenas uma cama de canas que alisava o espaço e até deixava ver o topo caiado da escola e, que pena, não parecia mesmo existir o mundo das flores.
Trepou o murete no sítio da falha de pedras, e com os olhos postos no branco longínquo pôs pés ao caminho. Nesse saltitar por sobre as canas buscando o melhor trajecto desatentou-se da terra até que sentiu uma suave cócega no tornozelo e olhou.
Estava lá, o prado de flores amarelas, estava lá. Ainda ontem não estava, mas ali se estendia, quase até ao caminho que com poldras levava as crianças à escola. O mais extraordinário é que as flores eram todas, mesmo todas, amarelas. Espécie de cachos sobre os quais a gravidade não actuava, como cálices de pétalas pequenas, sobre uma rama atapetada de folhas verdes...o prado mais lindo que a menina jamais vira e era preciso levar uma prova, um raminho de flores. Os regatos logo se procurariam, porque a novidade na escola levaria a que todos fossem em sua busca.
Que agitação levava a menina, o coração batia, as faces estavam rosadas, na mão bem apertado o raminho de flores amarelas que levaria sua mãe, professora estimada a orgulhar-se tanto dela...
-Mãe, afinal estava lá, o prado! Vês, estão aqui as flores são para ti. E o brilho no olho da professora estimada, sua mãe, e o sorriso que lhe aflorou os lábios foi logo interrompido pela boa/cruel contínua: Oh! minha menina então apanhou a flor do tremoço? Essa, flor não se apanha, precisamos do tremoço para dar de comer aos animais.
- Mas, são lindas, disse a menina com o lábio a tremer e a lágrima no canto do olho, e são tantas, são do prado, são para dar à mãe e irmos procurar os regatos, acrescentou ainda com a leve esperança de um sorriso aberto da senhora contínua.
- Não, minha menina, estas flores não se apanham, mas como não sabias não faz mal, não é senhora professora? Eu até vou pô-las em água.
E a professora estimada, sua mãe, abanou a cabeça, confirmando e puxou com a sua doce mão a menina encostando-a ao regaço e disse: Não faz mal filha, havemos de o encontrar, o teu prado. E a menina soluçou olhando o ramo que a contínua zelosamente tinha colocado num copo com água.
Hoje em dia a menina sabe que o tremoço começa numa flor, linda, e ainda anda à procura do prado.

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