sexta-feira, 10 de junho de 2011

O areal a amanhecer

o areal prolongava-se por dunas suaves carregadas de plantas verdes rasteiras e turgidas, que na primavera abriam flores lilases intensas e brancas perladas, num jogo de cores envolvente. A areia era docemente cálida e sedosa ganhando uma aspereza vivificante quando se aproximava das águas que a rodeavam, as do mar e as da ria.
Mais acima, num planalto dunar, pousava um casario disperso, onde a tradicional casa em madeira era já rodeada de um ou outro casarão urbano a roubar a graciosidade do conjunto. A igreja, quase orada, congregava os olhares e permitia um respirar de espiritualidade que acompanhava os pescadores na sua faina diária.
A manhã estava carregada de neblina. As gostas de água não choviam, colavam-se no corpo, frescas e húmidas provocando o eriçar dos poros e a procura de um abrigo breve, numa barraca de praia, acabada de montar. O mar soava, neste silêncio falante, de forma ondulada movimentando vagas mansas e espessas que se derramavam languidamente no areal, e a ria sussurrava em pequenos estalidos provocados pelo leve roçar de encosto e desencosto nas areias envolventes, balançando os barcos que aí repousavam. E, cheirava a sal, a maresia.
Algumas gaivotas, no voo matinal, rasgavam estes sons de silêncio, com uns pios agudos anunciadores da entrada das primeiras embarcações no mar. Empurrados pela leva de homens e rapazes necessários, o "amor de mãe", o "maria antónia" ou o "vai com Deus" entre outros, largavam-se à faina da pesca artesanal, quase à hora do sol nascer por entre a névoa da madrugada. Soluçavam no embate com as vagas mansas, borbulhando pequenos remoinhos de sonoridade eruptiva que logo de seguida eram abafados pelo splash dos quatro pares de remos que em sincronia absoluta se absorviam no marulhar das águas. E, aos poucos, voltava o silêncio de sons macios, a pequena brisa que antecipava os primeiros raios de sol, o marulhar do mar e da ria e um eco distante do mestre que na embarcação marcava o ritmo da remada.
Na areia, junto ao mar, passeavam-se gaivotas e pequenos pássaros deixando trilhos de três dedos que não conduziam a parte nenhuma e que as águas apagavam na sua lenta subida de maré.
Alguns "criich" destoaram, por estranhos na sinfonia que tocava, mas logo integraram o jogo melódico pelo restolhar de tecidos que se lançavam pela estrutura de madeira das barracas. Os banheiros feriam a uniformidade da areia arrastando volumosos e pesados sacos que cheios de panos riscados iam criar o casario dos banhistas permanentes. Tisnados das horas de sol constantes, com cabelos de louro palha, tão pouco frequentes no lugar, eram o primeiro indício da invasão que mais tarde acontecia.
De repente o silêncio, uma densa quebra da melodia soou por tão forte ser o silêncio, e o primeiro raio de sol despontou, em breves traços por entre a névoa. Suspendeu-se a vida em adoração à luz, e o breve e suspenso instante eclodiu em pios e grasnidos, num vendaval de bater de asas, numa vaga de forte reverberação, no ondear vibrante das embarcações da ria e em inspirações profundas e amplas. A sinfonia ecoou em "vibrante allegro" temperada pelas carícias hesitantes do sol que aquecia as gotas de água que não choviam e que agora secavam sobre a pele.
Os banheiros despiram as camisolas e amarraram-nas na cabeça, continuando no arranjo do casario riscado, cada um na sua fiada de barracas.
E o dia começou.
- Eh, Tóino está na hora de fumarmos um cigarrito.

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